sábado, 15 de outubro de 2016


INVASÕES FRANCESAS
ESTRAGOS NO CONCELHO DE MORTÁGUA-

Confissão de um erro meu, por ignorância, e tentativa de o reparar.



Em 28 de Junho de 1916, comentei o quadro-resumo  publicado em Memória breve dos estragos causados em Coimbra pelo exercito francez ,comandado pelo general Massena, etc., Lisboa, Impressão Régia, anno de 1812. , duvidando  da sua correcção por não conceber que o arciprestado de Mortágua pudesse ter 30 paróquias.

 

Graças à informação que o Dr. David Almeida teve a amabilidade de me fornecer, constatei que errei completamente nas considerações que teci sobre o quadro-resumo .

A ignorância é sempre atrevida e eu desconhecia totalmente que o Arciprestado de Mortágua, cujo concelho era composto nessa altura por 9 paróquias (Cercosa pertencia a Penacova), pudesse incluir outras 20 pertencentes a concelhos vizinhos e até a alguns sem contacto directo. Daí decorre que os 108 mortos e as destruições que são descritas correspondem a uma área muito mais vasta que o concelho de Mortágua, a que pensávamos corresponder.


O Relatório feito pelo Arcipreste de Mortágua, Joaquim Lebre Teixeira em 1811, de que existe um manuscrito no Arquivo da Universidade de Coimbra (como me informou o Dr. David Almeida), consta de uma intervenção da  Professora Maria Alegria Fernandes Marques no Congresso Internacional Comemorativo da Batalha do Bussaco, em Outubro de 2010, e publicada nas Actas do Congresso, pela Academia Portuguesa de História.
Esse documento, relata-nos os acontecimentos ocorridos em 29 freguesias, que constituiriam o Arciprestado de Mortágua – menos uma do que consta do quadro fornecido pelo Bispado de Coimbra.

ALMAÇA, BOTÃO, BRASFEMES, CARVALHO, CERCOSA, CORTEGAÇA , COUTO DE MOSTEIRO, EIRAS, ESPINHO, FIGUEIRA DE LORVÃO, LORVÃO, LUSO , MARMELEIRA, MORTÁGUA, PALA, PAMPILHOSA , PENACOVA, S. JOANINHO, S. PAULO DE FRADES, SANTA COMBA DÃO, SAZES DE LORVÃO, SOBRAL DE MORTÁGUA, SOUSELAS , TORRE DE VILELA, TREZOI, VACARIÇA, VALE DE REMÍGIO, VILA NOVA DE MONSARROS e VIMIEIRO.


Também existe disparidade no número de mortos e incêndios no Arciprestado de Mortágua. Enquanto o Relatório do Bispado refere 108 assassinatos e incêndios em 47 casas e 19,5 Póvos, o Relatório do Arciprestado assinala 105 assassinatos, 81 casas  e 17 Povos incendiados.

 

Restringindo a informação só ao Concelho de Mortágua, considerando a sua composição actual, as informações do Arcipreste de Mortágua, estão resumidas no quadro seguinte:

Freguesia
Mortos
Casas
Povos
incend.
Vasos
sagrados
Ambulas
Custódias
Cálices
Mortágua
0
1
 
 
 
 
5
Almaça
1
 
 
 
1
 
 
Cortegaça
0
 
 
1
 
1
2
Cercosa
3
 
 
1
 
 
1
Sobral
4
9
1
 
 
 
7
Pala
7
34
 
 
 
 
 
Vale de Remigio
3
5
 
1
 
 
3
Espinho
1
 
8
1
 
 
1
Trezoi
0
 
3
 
 
 
2
Marmeleira
5
 
 
1
1
 
2
TOTAL
24
49
12
5
2
1
23

 

Sendo que os mortos apresentavam a seguinte distribuição por sexo e idade:

 

Freguesia
Homens mortos
Mulheres mortas
Total
1-10
anos
10-20
anos
20-50
anos
>50
anos
1-10
anos
10-20
anos
20-50
anos
>50
anos
Mortágua
 
 
 
 
 
 
 
 
0
Almaça
 
1
 
 
 
 
 
 
1
Cortegaça
 
 
 
 
 
 
 
 
0
Cercosa
 
 
 
1
 
 
 
2
3
Sobral
 
 
2
 
 
 
 
2
4
Pala
 
 
2
3
 
 
2
 
7
Vale de Remigio
 
 
1
2
 
 
 
 
3
Espinho
 
 
 
1
 
 
 
 
1
Trezoi
 
 
 
 
 
 
 
 
0
Marmeleira
 
 
2
1
 
 
 
2
5
TOTAL
0
1
7
8
0
0
2
6
24

 




Foram muitos os roubos e destruições, conforme poderemos ver no seguinte quadro que elaboramos a partir das informações do Arcipreste de Mortágua:

Freguesia
Roubos e destruições
Mortágua
“Todos os frutos pendentes nas propriedades desta freguesia foram consumidos pelas tropas francesas e também os frutos que acharam nas casas e roupas principalmente brancas”
“Queimaram São Francisco e Santo António. Despedaçaram Nossa Senhora do Rosário com o Seu Menino. Quebraram quatro pedras de ara e todas as cruzes e arrombaram o sacrário”
“Roubos sacrílegos – Na igreja, seis vestimentas novas, cinco frontais também novos  e de seda, palio, umbela, quatro alvas e quatro amitos, duas capas de asperges novas, bolsas, corporais, alvas, e quinze alqueires de azeite da confraria do Santíssimo. Destruíram e queimaram as grades da pia batismal, os estrados de toda a igreja , uma urna e os confessionários. Roubaram mais três coroas de prata e dois panos do púlpito novos.
Na capela do lugar do Freixo um cálice e uma vestimenta e alva.
No lugar de Almacinha um cálice.
No lugar de Vale de Açores cálice e uma vestimenta.
Na capela do Senhor do Mundo cálice, as toalhas do altar, missal e mais paramentos pertencentes à sobredita capela. ”
“Incendiaram tão somente parte da residência do R. Pároco.”
 
Almaça
“Foi roubada totalmente esta freguesia porque os fregueses não pensavam que iria aí tropa alguma. Ficou pobríssima.”
“Roubos sacrílegos – Roubaram a ambula dos santos óleos, lançando-os por terra, e cinquenta mil reis do cofre e levaram o livro das pastorais.”
 
Cortegaça
Pela estada de sete dias nesta freguesia facilmente se pode colegir o estrago que fariam. Foi inteiramente roubada nos frutos pendentes. Houve fregueses em que se avalia a perda em mais de três mil cruzados e assim a proporção dos mais fregueses”
“Quebraram um braço à imagem de Santo Cristo que estava na cruz na cruz procissional juntamente com a mesma cruz.”
“Roubos sacrílegos – Roubaram o vaso das sagradas formas, a custódia, dois cálices e o relicário. Levaram todas as toalhas dos altares. Três alvas, duas capas de asperges, duas vestimentas. Estragaram o palio, que tinha custado sessenta mil reis, pano do púlpito e a umbela”
Cercosa
“Esta freguesia foi das mais roubadas” “Roubaram todos os frutos pendentes e tudo que acharam pelas casas, principalmente roupas brancas”
“Arrombando as portas da igreja, quebraram as cruzes de todos os altares com as suas imagens de Santo Cristo, sendo a do altar mor de marfim. Quebraram a fechadura do altar, digo, do sacrário e casula.”
“ Furtos sacrílegos – Não do sacrário, mas sim de um carro que ia fugindo, o vaso das sagradas formas, um cálice com a sua patena. Furtaram mais oito alvas com seus cordões e amitos, doze véus de corporais, trinta toalhas dos altares, comunhão e de água às mãos. Rasgaram seis vestimentas de damasco novas, um manto muito bom, de Nossa Senhora, também de seda e novo. Furtaram o palio, o pano do púlpito, três frontais e um véu de ombros, tudo em bom eu de seda. Furtaram a lâmpada, banqueta de castiçais e caldeirinha , tudo obra de cobre branco e de Macau, que a tinha dado um bispo que foi natural daquela terra e bispo na China, na cidade de Macau, além de outras preciosidades que o mesmo deu e escaparam enterradas, peças na verdade muito estimáveis. Furtaram mais uma bandeira de damasco nova, de seda, e rasgaram uma armação muito estimável que servia para armar a capela mor quando haviam funções solenes.
Na capela do lugar de Linhaça furtaram sete toalhas e uma vestimenta e na capela das Almas, do lugar de Cercosa, quebraram a pedra d’ara e furtaram uma vestimenta:”
Sobral
“ Foram roubados todos os frutos que se achavam pelas propriedades que neste tempo estavam por recolher e também os que já estavam recolhidos e que os lavradores não puderam levar consigo quando fugiram. Furtaram também muito gado miúdo e colmeias que estragaram. Furtaram também muitas roupas, principalmente de linho e carnes de porco”
“ Roubos sacrílegos – Roubaram um palio, uma vestimenta e duas dalmáticas de velum de ouro. Inutilizaram um paramento de damasco de seda encarnado, novo, e outro em meio uso, de damasco branco, três alvas, três amitos e três cordões e algumas toalhas.”
“Há nesta freguesia dez capelas que todas foram roubadas e só três ficaram os cálices e em uma só ficaram as vestimentas e mais alfaias. As banquetas das sobreditas capelas que eram de estanho ficaram quebradas e juntamente as imagens de Nossa Senhora e de alguns santos.”
“Incêndios – Incendiaram todo o lugar da Breda ficando somente uma casa. No lugar de Vila Nova incendiram cinco casas ou moradas e no lugar de Vila Gosendo incendiaram quatro moradas de casas.
Bem entendido que os lugares que ficavam mais próximos à estrada real são os que padeceram mais, advertindo que esta freguesia tem três léguas de Norte a sul, isto é, desde o lugar da Tojeira na serra do Caramulo á Breda são as três léguas, e este lugar com o demais próximos da estrada real padeceram incrivelmente.
Pala
“Esta freguesia de Pala sofreu os maiores incómodos que se podem imaginar em razão de que ficando mal o exército francês na batalhado Bussaco e retrocedendo por esta freguesia para a estrada de Boialvo ali fizeram os maiores estragos causando perdas indizíveis.”
“Os lugares de Monte de Lobos, Montinhal, Pala, Palinha, Macieira, Tarrastal, Vila Pouca e Carvalhal, ficaram inteiramente roubados; porque como vinham desesperados do Bussaco tudo quanto operam tanto nos campos como em casa tudo se foi, muito trigo, centeio, vinho feijões, colmeias, gados miúdos carnes de porco. Queimaram portas, caixas e casas trinta e quatro.”
“ Arrombaram a porta do sacrário, queimaram o altar mor e parte retábulo, queimaram as pedras d’ara, potas da igreja, confessionários, armários, caixões, bancos, solhos, grades do baptistério, tudo ardeu.”
“Roubos sacrílegos – Na igreja roubaram um cálice, seis alvas finas e três grossas, muitas toalhas dos altares, duas umbelas com galão de prata, e destruíram muitos ornamentos que necessitam de consertos.
Na capela da Senhora Santa Ana, do lugar de Pala, furtaram o cálice e ornamentos e queimaram o altar esquerdo do retábulo.
Na capela do lugar dos Palheiros furtaram o cálice e uma alva.”
“Incendiaram trinta e quatro casas nos lugares da estrada por onde passou o exército quando descia a Boialvo para a Bairrada.”
Vale de Remigio
“Esta freguesia nela esteve uma parte do exercito acampado enquanto durou o ataque de Bussaco e por isso padeceu muito.”
“ Roubos sacrílegos – Roubaram da igreja toda a prata, a saber, o vaso dourado das sagradas formas, três cálices e custódia, digo, custódia não, mas sim o cálice que serviu na mesma custódia. Um palio de damasco encarnado de seda com suas sanefas de damasco de ouro quase novo, seis alvas, cordões, amitos. Todas as toalhas dos altares, cera, três capas de asperges, uma de damasco de cor quase nova e duas rotas de damasco de seda já usada e quebram uma banqueta de estanho.
Na capela do Cruzeiro quebraram o sino e levaram as toalhas.
Na capela de S. João  da Gândara furtaram as toalhas e ornamento.”
“Incendiaram nesta freguesia cinco moradas de casas.”
 
 
Espinho
“ Nesta freguesia se demoraram os franceses nove dias enquanto estiveram combatendo no Bussaco. São incalculáveis os estragos que causaram.”
“Não ficou coisa alguma de frutos nesta freguesia, tudo roubaram, não só o que estava pelas propriedades como muito trigo, centeio, vinho, azeite, colmeias, gados miúdos, galinhas, porcos, etc, tudo o que se achava escondido tudo foi achado porque estando algumas pessoas estes, a poder de martírios, as faziam confessar aonde estavam as coisas escondidas e as ali iam buscar ficando tão pobres os fregueses desta freguesia que a maior parte se sustentam de ervas cosidas sem azeite.”
“Roubos sacrílegos – Roubaram o vaso, o relicário de prata da igreja, toda a roupa de linho e de lã, uma capa de asperges de damasco nova, um pano do esquife de damasquino preto, uma manga da cruz processional com franja de prata, uma dalmática e outra que deixaram estragada e queimada.
Levaram toda a roupa branca que acharam nas capelas, quebraram as pedras d’ara tirando das mesmas todas as relíquias que as mesmas tinham e furtaram um cálice.”
“Incendiaram oito povos desta freguesia ardendo assuas moradas com quanto estava nelas.”
 
Trezoi
“Esta freguesia é aonde acampou o exército francês no ataque de Bussaco. É a mais danificada de todas as que tiveram a desgraças de serem calcadas pelo exército inimigo.”
“ Não ficaram frutos alguns pelos campos nem colmeias e não só nos campos mas nem também em casa à excepção de alguns pouco frutos que levaram consigo quando fugiram os lavradores e mais pessoas da sobredita freguesia.”
“Quebraram o sacrário da igreja, pedra d’ara, os crucifixos de todos os altares, uma veneranda imagem chamada o Senhor da Via Sacra, e na capela do lugar da Moura não se sabe o que fizeram à Senhora da Conceição porque não aparece.
“Roubos sacrílegos- Na igreja furtaram um cálice que só tinha o copo de prata e patena, o palio, a umbela, quebraram o turíbulo de metal novo. Levaram e laceraram os ornamentos, de sorte que se estão servindo com uma vestimenta emprestada do Bussaco.
Na capela do lugar de Meligioso levaram todo o ornamento e toalhas.
Na capela do lugar de Sula quebraram a pedra d’ara e pedra do retábulo.
No lugar da Moura roubaram cálice, missal, ornamentos, toalhas e queimaram o altar e o retábulo e na capela de Cerdeirinha roubaram todo o ornamento.”
“O lugar de Algido ficou todo por terra e ninguém habita nele.
O lugar de Sula queda todo por terra e da mesma sorte o lugar da Moura.”
 
Marmeleira
“ Nesta freguesia da Marmeleira, próxima à serra do Bussaco, nela esteve uma parte do exército inimigo acampado sendo a igreja a que padeceu mais com a sua estada.”
“Mataram nesta freguesia os franceses cinco pessoas, a saber, três da freguesia e duas de fora.”
“ Roubaram totalmente esta freguesia tanto nos campos como em tudo o que acharam nas casas e como ali permanecessem até à fuga do Bussaco queimaram portas, armários, arcas, bancos, tudo, tendo ficado as casas absolutamente nuas de tudo e a igreja da mesma sorte, não ficando banco nem portas nem coisa alguma combustível.”
“ Roubos sacrílegos – Na igreja, o vaso das sagradas formas que estava escondido mas eles o acharam, um cálice com sua paterna de prata, um resplendor de prata de uma imagem, uma Senhora da Conceição pequena com seu manto bordado de ouro, a sua coroa de prata, as ambolas dos santos óleos, um frontal de damasco branco com sua franja de ouro, uma vestimenta de damasco branco, vinte toalhas, seis alvas com seus amitos competentes e cordões, duas estolas de paroquiar, os livros de assentos, dois rituais, uma bolsa do relicário de damasco de ouro com suas borlas do mesmo, três bolsas de corporais cinco mesas de corporais, a umbela de damasco de seda nova, um véu de ombros de damasco de ouro, um frontal de damasco branco novo, dois panos de púlpito de damasco, um guião de damasco de seda novo, e mais outro estragado e roto, duas ordens de cortinas dos altares, de seda, uma capa de asperges de damasco de seda, as cortinas do sacrário de damasco de ouro com sua franja também de ouro e cinco alqueires de azeite.
Na capela da Senhora da Ribeira roubaram um cálice de prata com a sua patena, sete toalhas de altar, sete alvas com seus amitos e cordões competentes, duas vestimentas de damasco de seda novas, uma bandeira de damasco da mesma Senhora, um frontal de damasco novo, um véu de ombros de seda encarnada com seu galão de ouro, uma capa de asperges de damasco de seda quase nova, quatro vasos de corporais finos, três mantos de seda com renda de ouro fino, uma coroa de prata da mesma Senhora, um fio de contas de ouro, uma pia do mesmo, outra também de ouro com dez diamantes.
Na capela da Senhora do Carmo do mesmo lugar da Marmeleira quebraram os franceses a pedra d’ara, furtaram um manto de seda, quatro alqueires de azeite, duas toalhas do altar e uma arroba de cera.
Na capela do Espírito Santo do lugar da Lourinha furtaram uma vestimenta de damasco em bom uso, seis toalhas do altar, uma alva com seu amito e cordão e quebraram a pedra d’ara e levaram quatro vasos de corporais.
Na capela da Senhora do Amparo quebraram a pedra d’ara, levaram duas toalhas e frontal.”
 

 

Com esta publicação espero corrigir um pouco o meu momento de arrogância e ajudar a conhecer melhor os contornos da passagem dos Franceses por Mortágua.

 

Bibliografia:

Memória breve dos estragos causados em Coimbra pelo exercito francez ,comandado pelo general Massena, etc., Lisboa, Impressão Régia, anno de 1812

 

MARQUES, Maria Alegria Fernandes; Os Franceses do Buçaco: Homens que Passam, Memórias que Ficam, Actas do Congresso Internacional Comemorativo da batalha do Bussaco, Academia Portuguesa de História, Lisboa 2011