sábado, 14 de janeiro de 2017


 A Senhora do Chão de Calvos e as Invasões Francesas, ou, mais um erro histórico do Dr. Assis Santos

       Já noutras publicações dei conta de afirmações escritas pelo Dr. José de Andrade Assis e Santos que não correspondem à verdade. Hoje vou escrever sobre a Senhora do Chão de Calvos e o que sobre ela diz.
       Num artigo publicado na revista “Beira Alta” 1, em 1944, diz Assis e Santos:   

 “ Conta-se que os franceses respeitaram a imagem de Santo Amaro, na Aveleira, sob o pretexto de que era um santo de nacionalidade francesa.
    Mas não foi essa a atitude habitual dos franceses, na sua generalidade impregnados de impiedade revolucionária. Alguns sacerdotes foram desacatados- cita-se o exemplo dum padre de Santa Cristina que teve de marchar na frente de um destacamento francês ajoujado debaixo dum pipo de vinho…
     Aqui como em outras partes do país, foi necessário retirar dos templos as imagens e todos os objectos do culto mais preciosos, para salvá-los da rapacidade sacrílega dos soldados e oficiais franceses. Algumas dessas imagens se perderam, por morte de quem as escondeu em algures solitários. O achado de uma dessas imagens, pertencente à igreja do Sobral, que a devoção dum paroquiano pôs a salvo no Chão de Calvos, foi origem de uma lenda local que inspirou a construção dum novo templo.
     A capela de Nossa Senhora de Chão de Calvos, objecto duma romaria de fama, é o símbolo perdurável dos desacatos que os altares houveram de sofrer da parte da soldadesca e da oficialidade francesa, extraída da escória da Revolução de 1796. “

     A história parece lógica, mas não é verdadeira. Quase cem anos antes das Invasões Francesas, em 1712, já Frei Agostinho de Santa Maria no seu livro “Santuario Mariano e Historia das Imagens milagrosas  de Nossa Senhora…” 2, nos  dá conta do aparecimento da imagem, do santuário construído em sua honra, e dos milagres que já operara.

Vale a pena ler na íntegra, e com a saborosa linguagem da época, a descrição de Frei Agostinho

  TITULO LXXVIII.
Da  Imagem de N. Senhora de Chão de Calvo , ou Chão de Calvos, no termo da Villa de Mortagua.

No termo da Villa de Mortagua ha huma Freguesia, ou lugar chamado Palla, que distará huma legoa da Villa para a parte do Occidente. Nesta Freguesia ha hum valle, que ainda que he solitário, he fresco, & abundante de arvoredos frutíferos, & silvestres, regados de duas fontes, & com quantidade de oliveyras. Aqui neste destrito guardava a Divina Providencia hum celestial tesouro, & tão grande, que com elle se enriqueceu a terra toda; & nesta occasião em que hum venturoso camponez o descubrio, fez com elle ricos a todos aquelles contornos. Porque neste ameno, e fresco valle descubrio aquella celeste Arvore, que produzio aquelle esplendido , & fermoso fruto de onde se sustentão todos os fieis, como a acclamão os Gregos no seu Hymno:  Arbor fructum ferens splendidum, unde fidelis alluntur. Este dito camponez, de quem já não lembra o nome, mas consta sim , que era calvo ( & creio que nunca este se ofenderia de lho chamarem, como lá se sentio o Profeta Eliseo ao entrar das portas da Cidade de Bethel, quando os rapazes zombando delle lhe disseram por mofa, & escarneo: Ascende calve, ascende calve; aos quais os usios despedaçárão em castigo da sua zombaria) pois por esta que os homens julgão imperfeição no humano composto, mereceu ser elle conhecido. Porque com este defeyto, que o não he, se deu à Raínha dos Anjos o título, & a invocação, invocando-se nossa Senhora do Chão do Calvo, aludindo ao inventor, que a descubrio em seu campo.
Refere-se por tradição, (que a incúria dos homens, & o seu descuydo nos faz agora referir por tradiçoens, & conjecturas, aquellas maravilhas, & prodígios que mereciam toda a lembrança, & firmeza das escrituras) que andando hum homem naquelle valle, encontrara a sua boa sorte a dita de descubrir no coração de hum antigo castanheiro ( porque havia muitos por aquelle sítio naqueles tempos; & era este homem morador na Freguesia do Sobral, que fica mística com a de Palla) uma imagem da Soberana Raínha dos Anjos. Deu o venturoso homem conta da sua dita aos moradores do lugar de Palla , & também aos do seu lugar; que o gosto da sua dita o fazia manifestalla a todos. Os de Palla lhe quizerão alli logo edificar uma Ermida, mas os do Sobral invejosos, & por entenderem que a eles lhes pertencia o tesouro; porque o seu patrício o havia descuberto no seu chão; se introduzirão na posse, & levaram a Imagem da Senhora para o seu lugar, & assim com effeyto a collocarão na sua Parochia.
Satisfeytos, & alegres os moradores do Sobral, por se considerarem de posse daquela preciosa joya, pela manhãa se virão muy tristes, & desconsolados, por se acharem despojados della. Feytas as diligencias, se soube, que a Senhora estava no seu antigo lugar, & no mesmo cavernoso nicho do seu castanheyro, de onde a levarão segunda vez para a Parochia; & isto dizem succedera varias vezes. E porque entenderão os do Sobral, que os de Palla lhe havião feyto o furto, guardarão toda a noyte armados a Santíssima Imagem, para a defenderem , se sucedesse que os de Palla voltassem para lha furtarem, como eles imaginavam o havião feito na antecedente noyte. Mas como pela manhãa a não acharão, vieram a entender, que os Anjos havião sido, os que lhe haviam feyto o furto, & os havião despojado da sua joya, & que a Senhora não queria deyxar os moradores de Palla, em cujo destrito  se havia manifestado; & assim desistirão nas diligencias, & consentiram, que os de Palla lhe edifassem Casa, pois a eles pertencia o tesouro descuberto na sua terra, & no seu destrito; os quais logo com effeyto o fezerão no mesmo sítio, em que a Senhora se manifestou. Foi esta manifestação feyta há tantos anos, que já não lembra o tempo, nem o nome do ditoso homem. Porém dizem, que pelo que ouvirão a seus pais, & avós, se entendia , que a Senhora se manifestára havia mais de trezentos annos. E como não podemos chegar a este Santuario, tambem não pudemos inquirir se havia alguma inscripção, que declarasse os seus princípios, ou livros da Irmandade, de que se pudesse alcançar alguma cousa a este intento.
Obrigados os moradores do lugar de Palla do favor, que a Senhora lhes fizera em os preferir  a todos os mais, lhe erigirão huma devota Irmandade, que a serve ainda ao presente com fervorosa devoção, & lhe solemniza a sua festividade. Instituirão estes Irmãos hum bodo, movidos da pobreza, & falta de frutos que então se experimentava. Para o que concorrerião os devotos das Freguesias circumvizinhas  com as suas esmolas, & no terceiro Domingo de Outubro se ajuravão naquelle valle mais de duas, ou três mil pessoas, & a todos se repartia com abundancia, assim de comer, como de beber, às horas do jantar. Era o Juiz, & os Mordomos, ( que para esta função erão eleitos)os que repartião o comer. Vinha em primeyro lugar o Parocho no Domingo pela manhãa, com sobrepeliz, & estola a benzer o pão, que ali tinhão junto, o qual cobrião com toalhas depois de bento; e passado algum espaço de tempo descobrindo-se outra vez achavão, que Deus o tinha multiplicado em outra tanta quantidade. O mesmo se experimentava nas pipas de vinho, que ali tinhão trazido, para dar de beber aos convidados , ou àquella grande multidão que havia concorrido; porque  quando já nellas parecia não havia nada, tapado o botoque por algum espaço de tempo, corria outra vez novamente. Neste Domingo he que se faz a festividade da Senhora, e bem poderá ser, que nesse dia fosse a sua manifestação.

Esta devoção, que a alguns pareceria rustica, & escusada, mostrou a Senhora ser muito do seu agrado, pois se fazia em seu obsequio, & por seu louvor, por quanto em huma ocasião entrando um grande çapo em hum daqueles grandes azados, em que se cozia a carne, sem se advertir no que nelle estava, se encheu della, e depois de cozida repartindo-se, & juntamente o caldo, se achou no fim o çapo inteyro, sem que a algum dos muytos, que do tal azado comerão, fizesse o menor damno. Com este , & outros muytos prodígios, que se experimentavam cada dia entendiam todos, que a Senhora se agradava daquele obsequio, que lhe faziam cõ o bodo. Muytas vezes se experimentou, que o pão que ficava era tão milagroso, que dando-o a quem estava doente de cezoens, imediatamente livrava dellas. Lançado nos celeyros os preservava do bicho, que lhe consumia o grão, que tinham; & ainda o mesmo pão , affirmão, se conservava incorrupto.

Este bodo se acabou, & em seu lugar substituhio huma feyra, que se faz no mesmo Domingo terceyro de Outubro, a qual dura até o presente, aonde concorre  huma grande multidão de gente, & nesta ocasião concorrem  também os devotos da Senhora a satisfazer os seus votos, que lhe fizeram, & a pagar as suas ofertas, que lhe prometerão. E se vê que mais gente vem  a esta diligencia, do que a comprar o que na feyra se vende. A festa deste dia se faz com grande solemnidade; tem Missa cantada de órgão, Sermão, & de tarde procissão, em que tiram a Senhora. Tem este Santuario outros vários concursos de gente, & romagens, em que vem a festejar, & a louvar aquella Senhora. Eles se vem no primeyro Sabbado da Quaresma: o segundo concurso he no Sabbado de Lazaro; & o terceyro na segunda Oytava da Paschoa da Ressurreyção. Além destes dias he sempre continua, & frequente a romagem de devotos em todo o anno; porque todos se desejão valer dos grandes favores, que esta Senhora reparte.

He tão grande, & tão affectuosa a devoção dos Irmãos, que servem à Senhora na sua Irmandade, que andam com muyto desvelo, & cuydado, só a fim de lograrem verdadeyramente o titulo de Irmãos da Senhora, & de militarem debayxo da bandeyra de huma tão singular Protectora. São estes em numero oytenta & oyto seculares, cujas divisas são vestes brancas, e murças azuis, & doze sacerdotes.

Está colocada esta Santíssima Imagem no meio do Altar mòr em hum nicho, & não se põem mais adornos, que coroa, & manto, & estes são de varias cores, segundo os tempos , & festividades; & ordinariamente se vem também cobertos de preciosas prendas, com que os seus devotos a prendem, ou com que mostrão o seu agradecimento,  & o muyto que a desejão servir. Tem muyto bons ornamentos, & o Altar se vê adornado de ricos ramos. He de escultura formada em pedra; a sua estatura são dous palmos, & meyo; tem nos braços ao Divino Infante Jesus, a quem está oferecendo seus virginaes peytos, que elle toma com muyta graça; tem o menino em a mão direita hum passarinho. Não se lembram os Freguezes daquele lugar de Palla, que a Senhora fosse encarnada em nenhum tempo; mas antes affirmão todos se conserva nella a primeira encarnação, com que se manifestou. Mas quem se atreveria a tocalla, tendo-se por indubitável, que esta sagrada Imagem he Angelical, & formada pelas mãos dos Anjos, que a fabricarião por mandado da mesma Senhora, & a collocarião naquele castanheyro, para daquele lugar repartir frutos, & consolaçoens a todos.
Tem-se observado, que não há vento, nem ar, nem pó, que pudesse diminuir a fermosura das cores da sua pintura, & estofado; porque se vê tão viva, e fresca, como se se acabasse de pouco tempo.
Os milagres, os prodígios, & as maravilhas , que obra, & tem obrado esta poderosa Senhora, não seria fácil numerallos; porque só dá vista aos cegos, falla aos mudos, & aos surdos desempede os orgaons do ouvir; mas aos mancos, & aleyjados lhes dá tão perfeita saúde em seus membros, que da Casa da Senhora sahem apregoando os seus poderes, & saltando de alegria, por se verem sem o impedimento, que os embaraça, deyxando penduradas as moletas na Casa da Senhora  em testemunho do beneficio que receberão. São muitos também aquelles, a quem a Senhora dá vida, como o publicão  as muytas mortalhas, &  aonde se vem pender outros muytos sinaes, & memorias de cera em todas as paredes daquele Santuario, os quais como troféos das vitorias, que a Senhora alcançou, nos dizem a todos o quanto he poderosa a nosso favor. O devoto que nos fez esta notícia  confessa de si, que estando à morte, & já destituído de todos os alentos da vida, sem que lhe aproveytassem os remedios da medicina; mas tanto que recorreo à poderosa Senhora de Chão de Calvos, que he a medicina do mundo, como diz São Boaventura: Medicina mundi; logo no mesmo instante recuperou a vida.
Junto à Casa da Senhora está huma fonte, que querem com muyta razão, que seja fonte sua; porque he tão grande a fé com que se valem da sua agua, que sendo a das mais fontes veneno para as febres, esta se converte em cordial tão eficaz, que as desterra. Muytos são os milagres, que se achão escritos, dos que esta Senhora tem obrado, & outros se vem à vista em quadros, aonde se declarão as pessoas a quem a Senhora os fez; & porque isto não fique só em generalidades, referirey os de alguns quadros. E seja o primeyro.
Maria, filha de Manoel Simoens da Villa de Agueda, em o anno de 1669, estava á morte, sem que os remedios aplicados por diligentes, & peritos Medicos lhe pudessem ser de alguma utilidade. Nesta desesperação das medicinas humanas, recorreo aos poderes de Maria Santissima; porque ella he o eficaz medicamento das nossas dores, & enfermidades, & o alivio das nossas moléstias, como a saúda S. João Damasceno: Ave unicum molestiarum levamen, Ave omnium cordium medicamentum; & saúde firme, & perfeyta, como diz Santo Epifanio: Salus firma. A Senhora lhe deu repentina saúde, & em memoria da mercê, que recebeo, lhe dedicou hum quadro, que se vê pendente na sua Igreja.
O mesmo Manoel Simoens ( & seja o segundo) da Villa de Agueda, estava gravissimamente enfermo; porque depois de padecer quatro enfermidades todas perigosas, estando em cada huma dellas desconfiado, & desamparado da medicina, pela pouca esperança que já fazião os Medicos da sua vida, na ultima o deixarão já por morto. De todas o livrou a Senhora de Chão de Calvos, logo que a invocou, & convalescendo brevemente lhe dedicou outro quadro, aonde se refere o favor, que da Senhora recebeo.
Seja o terceyro, & ultimo, o milagre que a Senhora fez no anno de 1698, em hum moço chamado Agostinho, filho de João Lopes do Cardal, que estava quebrado de ambas as verilhas; via-se este moço todos os dias às portas da morte; nesta sua grande moléstia recorreo à Senhora do Chão de Calvos, invocando-a em seu favor: não pode a piedosa Mãy dos pecadores deyxar de se compadecer logo delle, dando-lhe perfeyta saúde. Desta Senhora dizia Santo Ignacio Martyr em sua Epistola, que sempre se condohia, afligindo-se com os miseráveis, & afflictos, socorrendo-os com toda a pressa: Maria miseris,& afflictis condolebat, coafflicta nec segniter subveniebat. Bem o experimentou assim este moço, & em sinal de agradecimento lhe dedicou outro quadro.
No primeyro Sabbado da Quaresma, & no Sabbado de Lazaro, & na segunda Oytava da Paschoa (de que já fallamos) são obrigadas a visitar a Rainha dos Anjos nove Freguesias , que contem em si aquelle Concelho de Mortagua. As quaes vão com os seus Parochos, & com as suas cruzes levantadas; & os Parochos tomão na Casa da Senhora conta dos que faltão, e a estes condenão gravemente. Fazem-se estas procissoens por voto, que fizerão à Senhora em acção de graças, por particulares benefícios que della receberão; & se ouvessemos de referir as maravilhas deste Santuario, fora nunca acabar. Seja ella muyto bendita, pois com tanta piedade se compadece dos miseráveis pecadores.”

1  SANTOS, José de Andrade Assis e : Os Franceses em Mortágua: 23-30 de Setembro de 1810. Revista “Beira Alta”. Viseu.3:3 (1944) pg.261-271

2SANTA MARIA Fr. Agostinho de:  “ Santuario Mariano e Historia das Imagens milagrosas  de Nossa Senhora, e das milagrosamente apparecidas, que se venerão em o Arcebispado Primás de Braga, & nos Bispados seus suffraganeos” Tomo Quarto; Officina de António Pedrozo Galram, Lisboa, 1712.  (Pág. 582 – 589)