A história enviesada
pelo preconceito,
ou as leituras pouco cuidadas…
Nas pesquisas que vou fazendo na Internet sobre os assuntos
referentes a Mortágua, só muito recentemente dei conta da existência de um blog
com o título “A bem da Nação”, http://abemdanacao.blogs.sapo.pt, que nos recorda um formalismo muito do agrado
do Estado Novo .
O blog pertence a Henrique Salles da Fonseca, neto do nosso
conterrâneo Tomás da Fonseca. Na edição de 27 de Maio de 2009 apresenta uma
publicação subordinada ao título “
Heróis de Cá -8 ; TOMÁS DA FONSECA - IV” em que faz afirmações deveras
surpreendentes, que nos levam a pensar que o senhor Henrique não leu os livros
do seu avô.
Vejamos: Afirma “Em 1910 foi chefe de gabinete do primeiro
Presidente do Ministério republicano, Dr. Teófilo Braga e em 1916 foi eleito
Senador pelo Distrito de Viseu. ….”
Se tivesse lido o livro «Memórias
dum Chefe de Gabinete», Lisboa 1949, de TOMÁS DA FONSECA, encontraria na
página XXII, no prefácio escrito por
Lopes de Oliveira:
“O Doutor António Luiz Gomes, como Ministro
do Fomento, escolheu para o seu Gabinete um só homem- Tomás da Fonseca. Não
teve outro auxiliar.”
Mais adiante, a páginas 35 e 36, Tomás da Fonseca recorda:
“ O Dr. Luís Gomes rebateu
rapidamente os meus escrúpulos, passando logo a traçar o seu programa de
governo, que terminou com estas palavras, ditas com a firmeza e precisão que
punha em tudo, mormente na defesa dos princípios que, desde largos anos, lhe
ocupavam o espírito e norteavam a vida:
- Auxiliar e louvar tudo o que tenda
a fazer progredir a Nação; atender todas as reclamações justas, mas repelir,
implacavelmente, tudo o que vá de encontro à moral e aos interesses nacionais.
Bem sei que vamos tomar conta de um
lugar de comando da maior responsabilidade. Nele encontraremos numerosos
problemas a que é necessário dar solução imediata. Para lá vamos. E, ou
cumpriremos o programa que acabo de traçar-lhe, ou deixaremos tudo, voltando
com o mesmo nome honrado e limpo. Garante-o o passado de nós ambos.
Dei-lhe a minha inteira concordância
e apertámos a mão, selando assim um contrato que havia de cumprir-se
integralmente.
- Nesse caso, até amanhã, no
Ministério, às 8 horas. “
Fica
claro que Tomás da Fonseca não foi chefe de gabinete de Teófilo Braga, mas de
António Luís Gomes, Ministro do Fomento.
A
afirmação de que Tomás da Fonseca foi eleito para o Senado em 1916, também é
incorreta. De facto esteve presente a primeira vez numa sessão do Senado em
25-06-1915, como se pode ver no Diário do Senado. A sua última presença foi em
23-08-1817.
Em
1911 já Tomás da Fonseca pertencera à Assembleia Nacional Constituinte, com
participação nas sessões entre 15-06 -1911 e 25-08-1911, conforme consta do Diário da
Assembleia Nacional Constituinte.
Entre
26-08-1911 e 29-05-1915 fez parte da Câmara dos Deputados,
na sua primeira legislatura.
Mais
adiante, Henrique Salles da Fonseca afirma:
“Em 1918, por se opor à ditadura de Sidónio Pais, foi
preso durante dois meses na cadeia civil de Coimbra em simultâneo com o seu
cunhado José Lopes de Oliveira, período em que se dedicou a ensinar as
primeiras letras aos presos de delito comum analfabetos seus companheiros de
cela.”
Mais uma vez sou levado a supor que não leu o livro de TOMÁS DA FONSECA: Memórias do Cárcere (Subsídios para a Historia Contemporanea), Coimbra 1919
Se o tivesse lido, saberia que o avô foi preso a 3 de
Novembro de 1918 e libertado no dia 29 de Novembro de 1918, o que não chega a
um mês.
Saberia também que José Lopes de Oliveira, não foi
preso nessa altura, e os companheiros de cela eram mortaguenses não
analfabetos.
Entre as páginas 16 e 21, Tomás da Fonseca apresenta os seus
companheiros:
“Vejamos agora as circunstâncias em
que o facto se deu. Para isso basta apresentar, um por um, os meus companheiros
de cárcere.
Antonio José Gonçalves. Este republicano antigo e proprietário da mais concorrida farmácia do
concelho. …
Alfredo Sousa…. A sua inteligência, auxiliada por uma vasta cultura mental, adquirida
em vários países (esteve 5 anos em Paris, tirando um curso) fez dele nesta
crise terrível, o médico assistente e o enfermeiro de quasi todos os doentes da
sua freguesia, sem exclusão dos inimigos.
…
Outra vítima: o professor da
Marmeleira, José Nunes Cordeiro…
Outro criminoso: Antonio Baptista. O que fez ele? A vileza de ter sido sempre um
funcionário zeloso e cumpridor, administrando com rara solicitude ,o celeiro
municipal. ….
Criminoso numero 5: Antonio Barbosa…Operário decorador, foi
sempre um republicano dedicado. …
É verdade que também cá temos os
irmãos dr. Basílio e Serafim Lopes
Pereira…
O oitavo e ultimo criminoso é o autor destas linhas. Pela primeira vez
foi preso e pela primeira vez, também, entrou numa cadeia. E contudo, no tempo
da monarquia, e por mais que uma vez, arriscou gestos audaciosos, pronunciou
falas contundentes, realisou coisas atrevidas, redigiu artigos artigos
incendiários e escreveu livros que demoliram e confundiram e irritaram. Pois
nunca o prenderam nem vexaram…”
Na mesma ocasião foram presos três cidadãos de Santa Comba Dão:
“César Anjo, professor
oficial
Aníbal de Brito, sub-chefe
fiscal de impostos
e Casimiro Neves, chefe de secretaria da
Camara”, com quem os prisioneiros de Mortágua tomaram posições conjuntas.
Na realidade,
Tomás da Fonseca não chegou a dar aulas a ninguém. No dia 15 de Novembro, os professores
aprisionados dirigiram ao Director da
Penitenciária o seguinte documento, que consta na página 73:
“Ex.mo Sr. Director da
Penitenciária de Coimbra
Os abaixo assinados, José Nunes
Cordeiro e César Anjo de Deus, professores primários oficiais, e José Tomaz da
Fonseca, professor de ensino normal e ex-director da Escola Normal de Lisboa,
tendo verificado que existe nesta Penitenciária uma escola primária para ensino
dos presos, escola que, dizem-lhes, não funciona por falta de pessoal docente,
vem por este meio pôr à disposição de V. Ex.a e dos presos
analfabetos os seus serviços profissionais, sem quebra do regímen a que estão
sujeitos, como prisioneiros políticos.
Coimbra, 15-11-918
Saude e Fraternidade
Os professores
(seguem-se as assinaturas)”
E na página 74, Tomás da Fonseca comenta:
“ Não
sabemos se este ofício, aliás cortez, chegou ou não ao seu destino. Nós é que
nunca dele conseguimos resposta.”
Nas páginas 31
e 32 relata:
“ Dia 6
Às 7 da manhã, sou despertado por um
guarda , que me anuncia estar alguém chamando por mim, ao telefone. Salto da
cama, num pulo, visto-me num minuto e desço as escadas a galope. Pressinto
coisa má.
Minha mulher piorou ,de certo. É
alguém que chegou de Mortágua e quer falar-me. Pego no auscultador com o
coração aos pulos.
- Quem é ?
- Lopes de Oliveira.
-Minha mulher?
- Não é coisa grave… É certo que não
está bem…O dr. Augusto tem ido sempre…Ontem esteve lá o dr. Bernardo Pais….Vim
por causa de um soro que um deles receitou…Já procurei vários médicos e as
opiniões divergem…”
Na página 167:
“ Dia 27
O Lopes d’Oliveira voltou hoje a
visitar-nos, sendo logo cercado e abraçado e beijado pelos reconhecidos
prisioneiros. Findos os cumprimentos, dele ouvimos tudo o que nosso respeito se
há passado: as suas altivas entrevistas com o Tamagnini, os seus telegramas
insistindo com o administrador de Mortágua para que oficie, dando os
esclarecimentos que superiormente lhe pedem, acerca do complot arquitectado
pelo ódio dos monárquicos e dos padres; as saudações que enviou em nosso nome ,
aos ministros da França e da Inglaterra; a resposta que deram; etc. etc……”
Na página177:
“ Dia 28
O Lopes d’Oliveira, que há 5 dias
veio instalar-se num hotel, continua a visitar-nos. Hoje vinha sorridente,
distribuindo esperanças a todo o mundo. Que finalmente, íamos sair. Era uma
questão de um dia ou dois. Tinham-lh’o garantido e jurado.”
Ainda na página 178:
“… Ao que o Lopes d’Oliveira
respondeu, repetindo a frase da véspera:
- Pois se vos não soltarem amanhã,
hão de me prender a mim , nesse mesmo dia.
E saiu para a rua…”
Terminando na página 185:
“ (29 de Novembro de 1918)
Pampilhosa, 11 da noite
Finalmente: os presos de Mortágua
estão em liberdade, graças aos esforços do Lopes d’Oliveira que soube, com
altivez e com nobreza, concluir essa difícil operação política.”
Para terminar, Henrique Salles da Fonseca manifesta-se
muito indignado com o facto do Partido Comunista Português ter referido no
Jornal “Avante”, Tomás da Fonseca como seu militante:
“Associá-lo a qualquer regime totalitário como o PCP
tentou, é denegri-lo, apanhá-lo à traição, não respeitar os seus ideais de
liberdade absoluta, democracia pluralista, cultura crítica e anti-dogmática.”
Transcrevemos, na íntegra, a notícia publicada no Avante,VI(389) Março de 1968, p.2 :
“ A morte de Tomás da Fonseca, com 90
anos de idade, em 12 de Fevereiro do corrente ano, não representa apenas uma
perda para a cultura nacional, para a vida intelectual portuguesa.
Representa, igualmente, uma lacuna
nas fileiras do Partido Comunista Português a que ele aderiu quando contava 70
anos (1947).
Preso várias vezes, manteve diante
dos esbirros salazaristas a atitude de coragem e desassombro que foi uma das
características da sua vida.
Foi a enterrar em Mortágua, onde
decorreu uma grande parte da sua vida, entre filas do povo que amou.
À sua família e em particular à sua
sobrinha, a corajosa militante comunista Fernanda Tomás, o Avante! envia as suas sentidas condolências.”
De tudo o que lemos de Tomás da Fonseca não nos parece que
fosse um homem ideologicamente enquadrável na filosofia do PCP, mas a verdade é
que nessa época eram poucas as alternativas a quem quisesse lutar
organizadamente contra o regime, e esse era um objectivo que Tomás da Fonseca
nunca perderia de vista.
Por outro lado, não tenho conhecimento que o PCP alguma vez
tenha reivindicado como seus militantes, quaisquer figuras públicas que o não
tenham sido. Porque haveria de fazer uma excepção logo no caso de Tomás da
Fonseca? Seria assim tão importante para o PCP? Sinceramente, não acreditamos.
Outro dado significativo é a carta que José Augusto Paiva
Tomás, sobrinho de Tomás da Fonseca, escreveu em resposta ao Dr. Alberto Vilaça,
advogado em Coimbra, em 5/2/2002, que a publicou no seu livro RESISTÊNCIAS CULTURAIS E POLÍTICAS
NOS PRIMÓRDIOS DO SALAZARISMO, Realidades coimbrãs e outras; Campo das Letras,
Porto 2003 :
“Realmente
o meu tio José Tomás da Fonseca pertenceu ao PCP mais ou menos de 1945/46 até
morrer. Era através de mim que eram feitos os contactos em sua casa, em
Mortágua.”
Alberto Vilaça faz um reparo:
“ Na verdade estes contactos ter-se-iam realizado até cerca de três anos
antes de Tomás da Fonseca falecer, uma vez que por motivo de doença foi viver
para Lisboa, onde se encontrava o seu filho.”
Pessoalmente não tive oportunidade de conviver com Tomás da
Fonseca, mas conheci muito bem o Sr. José Augusto Paiva Tomás, que era um homem
honesto e cordato, e que, em caso algum, afirmaria uma coisa desta importância,
se ela não fosse verdadeira.
Não sei se Tomás da Fonseca estava em sintonia perfeita com o PCP, mas não tenho dúvidas que foi seu militante, o que nessa
altura era só para pessoas corajosas e firmemente decididas a combater o
salazarismo.
Termino com palavras de Salles
da Fonseca, publicadas na edição de 26/10/2014 do blog” A bem da nação”:
“ Não há dúvida de que as ocorrências nem sempre são efectivamente alvo de
descrições objectivas e que «quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto» mas
seria intolerável que pactuássemos com quem deturpa a matéria factual pois uma
coisa é a interpretação, outra o desvirtuamento da realidade. Nada justifica o
esbatimento das linhas de demarcação entre o facto, a opinião e a
interpretação.”
Finalmente vejo-me obrigado a concordar com alguma coisa do
que afirma.