terça-feira, 15 de novembro de 2016


 A história enviesada pelo preconceito,

ou as leituras pouco cuidadas…

 Nas pesquisas que vou fazendo na Internet sobre os assuntos referentes a Mortágua, só muito recentemente dei conta da existência de um blog com o título  “A bem da Nação”, http://abemdanacao.blogs.sapo.pt,  que nos recorda um formalismo muito do agrado do Estado Novo .

O blog pertence a Henrique Salles da Fonseca, neto do nosso conterrâneo Tomás da Fonseca. Na edição de 27 de Maio de 2009 apresenta uma publicação  subordinada ao título “ Heróis de Cá -8 ; TOMÁS DA FONSECA - IV” em que faz afirmações deveras surpreendentes, que nos levam a pensar que o senhor Henrique não leu os livros do seu avô.

Vejamos: Afirma Em 1910 foi chefe de gabinete do primeiro Presidente do Ministério republicano, Dr. Teófilo Braga e em 1916 foi eleito Senador pelo Distrito de Viseu. ….”

 Se tivesse lido o livro «Memórias dum Chefe de Gabinete», Lisboa 1949, de TOMÁS DA FONSECA, encontraria na  página XXII, no prefácio escrito por Lopes de Oliveira:
O Doutor António Luiz Gomes, como Ministro do Fomento, escolheu para o seu Gabinete um só homem- Tomás da Fonseca. Não teve outro auxiliar.”

Mais adiante, a páginas 35 e 36, Tomás da Fonseca recorda:
“ O Dr. Luís Gomes rebateu rapidamente os meus escrúpulos, passando logo a traçar o seu programa de governo, que terminou com estas palavras, ditas com a firmeza e precisão que punha em tudo, mormente na defesa dos princípios que, desde largos anos, lhe ocupavam o espírito e norteavam a vida:

- Auxiliar e louvar tudo o que tenda a fazer progredir a Nação; atender todas as reclamações justas, mas repelir, implacavelmente, tudo o que vá de encontro à moral e aos interesses nacionais. Bem sei que  vamos tomar conta de um lugar de comando da maior responsabilidade. Nele encontraremos numerosos problemas a que é necessário dar solução imediata. Para lá vamos. E, ou cumpriremos o programa que acabo de traçar-lhe, ou deixaremos tudo, voltando com o mesmo nome honrado e limpo. Garante-o o passado de nós ambos.
Dei-lhe a minha inteira concordância e apertámos a mão, selando assim um contrato que havia de cumprir-se integralmente.

- Nesse caso, até amanhã, no Ministério, às 8 horas. “

Fica claro que Tomás da Fonseca não foi chefe de gabinete de Teófilo Braga, mas de António Luís Gomes, Ministro do Fomento.

A afirmação de que Tomás da Fonseca foi eleito para o Senado em 1916, também é incorreta. De facto esteve presente a primeira vez numa sessão do Senado em 25-06-1915, como se pode ver no Diário do Senado. A sua última presença foi em 23-08-1817.
Em 1911 já Tomás da Fonseca pertencera à Assembleia Nacional Constituinte, com participação nas sessões entre 15-06 -1911  e 25-08-1911, conforme consta do Diário da Assembleia Nacional Constituinte.

Entre  26-08-1911  e 29-05-1915 fez parte da Câmara dos Deputados, na sua primeira legislatura.

 Mais adiante, Henrique Salles da Fonseca afirma:
“Em 1918, por se opor à ditadura de Sidónio Pais, foi preso durante dois meses na cadeia civil de Coimbra em simultâneo com o seu cunhado José Lopes de Oliveira, período em que se dedicou a ensinar as primeiras letras aos presos de delito comum analfabetos seus companheiros de cela.”

 Mais uma vez sou levado a supor que não leu o livro de TOMÁS DA FONSECA: Memórias do Cárcere (Subsídios para a Historia Contemporanea), Coimbra 1919

Se o tivesse lido, saberia que o avô foi preso a 3 de Novembro de 1918 e libertado no dia 29 de Novembro de 1918, o que não chega a um mês.

Saberia também que José Lopes de Oliveira, não foi preso nessa altura, e os companheiros de cela eram mortaguenses não analfabetos.

Entre as páginas 16 e 21, Tomás da Fonseca apresenta os seus companheiros:
“Vejamos agora as circunstâncias em que o facto se deu. Para isso basta apresentar, um por um, os meus companheiros de cárcere.

Antonio José Gonçalves. Este republicano antigo e proprietário da mais concorrida farmácia do concelho. …

Alfredo Sousa…. A sua inteligência, auxiliada por uma vasta cultura mental, adquirida em vários países (esteve 5 anos em Paris, tirando um curso) fez dele nesta crise terrível, o médico assistente e o enfermeiro de quasi todos os doentes da sua freguesia, sem exclusão dos inimigos. 

Outra vítima: o professor da Marmeleira, José Nunes Cordeiro

Outro criminoso: Antonio Baptista. O que fez ele? A vileza de ter sido sempre um funcionário zeloso e cumpridor, administrando com rara solicitude ,o celeiro municipal.  ….

Criminoso numero 5: Antonio Barbosa…Operário decorador, foi sempre um republicano dedicado. …

É verdade que também cá temos os irmãos dr. Basílio e Serafim Lopes Pereira…

O oitavo e ultimo criminoso é o autor destas linhas. Pela primeira vez foi preso e pela primeira vez, também, entrou numa cadeia. E contudo, no tempo da monarquia, e por mais que uma vez, arriscou gestos audaciosos, pronunciou falas contundentes, realisou coisas atrevidas, redigiu artigos artigos incendiários e escreveu livros que demoliram e confundiram e irritaram. Pois nunca o prenderam nem vexaram…”

Na mesma ocasião foram presos  três cidadãos de Santa Comba Dão:

“César Anjo, professor oficial

Aníbal de Brito, sub-chefe fiscal de impostos

e Casimiro Neves, chefe de secretaria da Camara”, com quem os prisioneiros de Mortágua tomaram posições conjuntas.

 Na realidade, Tomás da Fonseca não chegou a dar aulas a ninguém.  No dia 15 de Novembro, os professores aprisionados dirigiram ao Director  da Penitenciária o seguinte documento, que consta na página 73:

“Ex.mo Sr. Director da Penitenciária de   Coimbra

        Os abaixo assinados, José Nunes Cordeiro e César Anjo de Deus, professores primários oficiais, e José Tomaz da Fonseca, professor de ensino normal e ex-director da Escola Normal de Lisboa, tendo verificado que existe nesta Penitenciária uma escola primária para ensino dos presos, escola que, dizem-lhes, não funciona por falta de pessoal docente, vem por este meio pôr à disposição de V. Ex.a e dos presos analfabetos os seus serviços profissionais, sem quebra do regímen a que estão sujeitos, como prisioneiros políticos.

        Coimbra, 15-11-918

                                                   Saude e Fraternidade

                              Os professores (seguem-se as assinaturas)”

 
E na página 74, Tomás da Fonseca comenta:

“ Não sabemos se este ofício, aliás cortez, chegou ou não ao seu destino. Nós é que nunca dele conseguimos resposta.”

 Nas páginas 31 e 32 relata:

“ Dia 6
Às 7 da manhã, sou despertado por um guarda , que me anuncia estar alguém chamando por mim, ao telefone. Salto da cama, num pulo, visto-me num minuto e desço as escadas a galope. Pressinto coisa má.

Minha mulher piorou ,de certo. É alguém que chegou de Mortágua e quer falar-me. Pego no auscultador com o coração aos pulos.

- Quem é ?

- Lopes de Oliveira.

-Minha mulher?

- Não é coisa grave… É certo que não está bem…O dr. Augusto tem ido sempre…Ontem esteve lá o dr. Bernardo Pais….Vim por causa de um soro que um deles receitou…Já procurei vários médicos e as opiniões divergem…”

 Na  página 167:

“ Dia 27

O Lopes d’Oliveira voltou hoje a visitar-nos, sendo logo cercado e abraçado e beijado pelos reconhecidos prisioneiros. Findos os cumprimentos, dele ouvimos tudo o que nosso respeito se há passado: as suas altivas entrevistas com o Tamagnini, os seus telegramas insistindo com o administrador de Mortágua para que oficie, dando os esclarecimentos que superiormente lhe pedem, acerca do complot arquitectado pelo ódio dos monárquicos e dos padres; as saudações que enviou em nosso nome , aos ministros da França e da Inglaterra; a resposta que deram; etc. etc……”

Na página177:
“ Dia 28

O Lopes d’Oliveira, que há 5 dias veio instalar-se num hotel, continua a visitar-nos. Hoje vinha sorridente, distribuindo esperanças a todo o mundo. Que finalmente, íamos sair. Era uma questão de um dia ou dois. Tinham-lh’o garantido e jurado.”

Ainda na página 178:
“… Ao que o Lopes d’Oliveira respondeu, repetindo  a frase da véspera:

- Pois se vos não soltarem amanhã, hão de me prender a mim , nesse mesmo dia.

E saiu para a rua…”

 Terminando na página 185:

“ (29 de Novembro de 1918)

Pampilhosa, 11 da noite

Finalmente: os presos de Mortágua estão em liberdade, graças aos esforços do Lopes d’Oliveira que soube, com altivez e com nobreza, concluir essa difícil operação política.”

 
Para terminar, Henrique Salles da Fonseca manifesta-se muito indignado com o facto do Partido Comunista Português ter referido no Jornal “Avante”, Tomás da Fonseca como seu militante:

 “Associá-lo a qualquer regime totalitário como o PCP tentou, é denegri-lo, apanhá-lo à traição, não respeitar os seus ideais de liberdade absoluta, democracia pluralista, cultura crítica e anti-dogmática.”

 Transcrevemos, na íntegra, a  notícia  publicada no Avante,VI(389) Março de 1968, p.2 :

“ A morte de Tomás da Fonseca, com 90 anos de idade, em 12 de Fevereiro do corrente ano, não representa apenas uma perda para a cultura nacional, para a vida intelectual portuguesa.
Representa, igualmente, uma lacuna nas fileiras do Partido Comunista Português a que ele aderiu quando contava 70 anos (1947).

Preso várias vezes, manteve diante dos esbirros salazaristas a atitude de coragem e desassombro que foi uma das características da sua vida.
Foi a enterrar em Mortágua, onde decorreu uma grande parte da sua vida, entre filas do povo que amou.

À sua família e em particular à sua sobrinha, a corajosa militante comunista Fernanda Tomás, o Avante! envia as suas sentidas condolências.”

De tudo o que lemos de Tomás da Fonseca não nos parece que fosse um homem ideologicamente enquadrável na filosofia do PCP, mas a verdade é que nessa época eram poucas as alternativas a quem quisesse lutar organizadamente contra o regime, e esse era um objectivo que Tomás da Fonseca nunca perderia de vista.
Por outro lado, não tenho conhecimento que o PCP alguma vez tenha reivindicado como seus militantes, quaisquer figuras públicas que o não tenham sido. Porque haveria de fazer uma excepção logo no caso de Tomás da Fonseca? Seria assim tão importante para o PCP? Sinceramente, não acreditamos.

Outro dado significativo é a carta que José Augusto Paiva Tomás, sobrinho de Tomás da Fonseca, escreveu em resposta ao Dr. Alberto Vilaça, advogado em Coimbra, em 5/2/2002, que a publicou no seu livro RESISTÊNCIAS CULTURAIS E POLÍTICAS NOS PRIMÓRDIOS DO SALAZARISMO, Realidades coimbrãs e outras; Campo das Letras, Porto 2003 :
Realmente o meu tio José Tomás da Fonseca pertenceu ao PCP mais ou menos de 1945/46 até morrer. Era através de mim que eram feitos os contactos em sua casa, em Mortágua.”

Alberto Vilaça faz um reparo:
Na verdade estes contactos ter-se-iam realizado até cerca de três anos antes de Tomás da Fonseca falecer, uma vez que por motivo de doença foi viver para Lisboa, onde se encontrava o seu filho.”

Pessoalmente não tive oportunidade de conviver com Tomás da Fonseca, mas conheci muito bem o Sr. José Augusto Paiva Tomás, que era um homem honesto e cordato, e que, em caso algum, afirmaria uma coisa desta importância, se ela não fosse verdadeira.
Não sei se Tomás da Fonseca estava em sintonia perfeita com o PCP, mas não tenho dúvidas que foi seu militante, o que nessa altura era só para pessoas corajosas e firmemente decididas a combater o salazarismo.

Termino com palavras de Salles da Fonseca, publicadas na edição de 26/10/2014 do blog” A bem da nação”:

  Não há dúvida de que as ocorrências nem sempre são efectivamente alvo de descrições objectivas e que «quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto» mas seria intolerável que pactuássemos com quem deturpa a matéria factual pois uma coisa é a interpretação, outra o desvirtuamento da realidade. Nada justifica o esbatimento das linhas de demarcação entre o facto, a opinião e a interpretação.”

 Finalmente vejo-me obrigado a concordar com alguma coisa do que afirma.

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