sexta-feira, 29 de julho de 2022

 

Fernanda de Paiva Tomás

A revolucionária mortaguense que quase todos pretendem esquecer


Era filha de Augusto César Tomás, irmão de José Tomás da Fonseca.

José Augusto Paiva Tomás,  funcionário das Finanças em Mortágua, e responsável pela biblioteca da Fundação Gulbenkian, era seu irmão.

Em 1950, era estudante na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e fazia parte do MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil;  foi presa pela primeira vez, em 11 de Novembro de 1950  quando ia depositar flores no monumento aos mortos da Grande Guerra, numa manifestação pela Paz, realizada em Lisboa. Enviada para a prisão de Caxias,  seria libertada três dias depois.

Tornou-se depois militante do Partido Comunista Português.

Em 1952, terminou o seu curso de Filologia Românica  e passou à clandestinidade.

A partir de 1952, desempenhou funções importantes no partido comunista. Foi responsável pelo sector intelectual no Porto, pertenceu à Direcção da Organização Regional de Lisboa, controlando o sector oriental da capital, foi membro da Comissão de Imprensa  colaborando na imprensa clandestina, nomeadamente no Militante (órgão teórico do PCP);  em 1957, deu apoio técnico à realização do V Congresso do PCP,  e  chegou mesmo a ser cooptada para membro suplente do Comité Central, em 1960.

Teve por companheiro Joaquim Augusto da Cruz Carreira, operário vidreiro da Marinha Grande, que entrou na clandestinidade em 1951, e de quem teve um filho. Viveram  entretanto separados, por comum acordo, dado terem tarefas diferentes que se não conjugavam;  Fernanda Tomás e Joaquim Carreira chegaram a protestar com a Direcção do Partido, por aparentemente não facilitar os encontros entre os dois, mesmo cumprindo as precauções necessárias à segurança da organização.

Em 1958 Joaquim Carreira é preso, e condenado a quatro anos de prisão maior. Nessa altura terá sido sugerido a Fernanda Tomás, pelo PCP,  deixar  a clandestinidade, para visitar o pai de seu filho, o que ela não aceitou, considerando ser uma militante comunista, e não a companheira de um militante comunista.

Em 6 de Fevereiro de 1961, foi novamente presa e enviada para o Forte de Caxias. Recusou-se a identificar o local onde residia.

Teve um tratamento violento por parte da PIDE, como até então não se tinha visto em relação a mulheres.

O seu testemunho pessoal é elucidativo:

 « Uma primeira experiência de 80 horas sem dormir, guardada por pides e tratada constantemente por eles com o cinismo e a baixeza de que a PIDE é capaz.

Depois uma segunda experiência. Exactamente do mesmo tipo, mas de 94 horas. A polícia política tudo pretendeu enxovalhar, desde a minha vida política à minha vida particular. Nem a minha qualidade de mãe foi poupada por uma agente que também se dizia mãe. Umas vezes velada, outras vezes descaradamente, eram-me feitas propostas de negociação – que o mesmo é dizer traição, de desonra (…) Durante 19 dias não me foi permitido, contra todas as leis estabelecidas, contactar com a minha família (…).»

 Julgada em 28 de Novembro de 1961, recusa novamente informar qual a sua residência, e denuncia em tribunal as torturas aplicadas aos presos. O juiz presidente, João António Silva Caldeira, manda-a recolher  aos calabouços, enquanto ela ergue o punho e grita:

«Viva o PCP! Viva o Povo Português, que um dia julgará este Tribunal!»

Foi condenada a oito anos de prisão maior, 15 anos de suspensão dos direitos políticos, e medidas de segurança.

Em Março de 1961 o jornal Avante saúda os presos políticos do PCP, entre os quais Fernanda Paiva Tomás.


Em Março de 1968, a propósito do falecimento de Tomás da Fonseca, o Avante envia condolências a Fernanda Paiva Tomás (que permanecia  presa) , e à restante família.


“ A morte de Tomás da Fonseca, com 90 anos de idade, em 12 de Fevereiro do corrente ano, não representa apenas uma perda para a cultura nacional, para a vida intelectual portuguesa. Representa, igualmente, uma lacuna nas fileiras do Partido Comunista Português a que ele aderiu quando contava 70 anos (1947). Preso várias vezes, manteve diante dos esbirros salazaristas a atitude de coragem e desassombro que foi uma das características da sua vida.

Foi a enterrar em Mortágua, onde decorreu uma grande parte da sua vida, entre filas do povo que amou.

À sua família e em particular à sua sobrinha, a corajosa militante comunista Fernanda Tomás, o «Avante!»  envia as suas sentidas condolências.”

Fernanda tornar-se-ia a mulher portuguesa que permaneceu mais tempo presa por motivos políticos – 9 anos e 9 meses.

Durante este longo cativeiro, Fernanda Tomás teve várias companheiras de cárcere, mas viria a desenvolver uma relação amorosa com uma delas –Julieta Gandra.

São José Almeida fala-nos dela :

 Nascida a 16 de Setembro de 1917, em Oliveira de Azeméis, Maria Julieta Guimarães Gandra era filha de Aurora e Mário Gandra, solicitador e pequeno comerciante, e tinha três irmãos, Fernanda, mais velha e ainda viva, Ângela, e Hernâni, arquitecto que militou no PCP.
Julieta cursou medicina, em Lisboa, onde conheceu Ernesto Cochat Osório, oposicionista e poeta, natural de Angola. Depois de casados e de ter nascido, em 1944, o seu filho Miguel (que não quis colaborar neste trabalho), rumam de barco a Luanda. Julieta é então especialista em medicina tropical. Irá interessar-se por obstetrícia e ginecologia e será ela a introdutora do parto sem dor em Angola. Médica das jovens brancas da elite de Luanda, dá também consulta a mulheres pobres, brancas e pretas.
Em Luanda, priva com intelectuais não afectos ao regime e frequenta o Cine-Clube e a Sociedade Cultural de Angola. O que fora uma aproximação à oposição na faculdade torna-se ligação ao PCP em Angola. (Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, III vol. pp. 517-526). Em meados dos anos 50, participa na formação do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Vem de então a sua amizade com Agostinho Neto, Lúcio Lara, Paulo Jorge e Arménio Santos.  (…)

A 29 de Março de 1959, Julieta Gandra é presa pela PIDE. Em Agosto, realiza-se o primeiro julgamento político de nacionalistas angolanos, "o processo dos 50". No final, os presos brancos serão enviados para a metrópole, enquanto os negros irão reabrir o Campo do Tarrafal.
A sua prisão causa polémica e constrangimento na Luanda branca. Era uma intelectual influente e médica da elite. Chegou a sair da prisão para ir assistir a um parto da filha de um engenheiro belga, responsável de uma petrolífera, que assim o exigiu.
O seu tempo de prisão em Luanda foi de cela aberta. Primeiro na PSP, onde a sua detenção incomodava, pois era médica da instituição. Depois, na ala feminina do hospital psiquiátrico, que funcionou como prisão, pois não havia cadeias para presas políticas. O director acaba por exigir mesmo a retirada do pide que vigia a porta, argumento: perturba as doentes da ala feminina. (…)

Foi condenada a 12 meses de prisão. Pena que foi agravada para dois anos de prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos, após recurso do Ministério Público. Julieta recorre também e realiza-se novo julgamento, já em Lisboa, mas a pena aumenta: quatro anos de prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos. (…)

No início de Julho de 1965, Julieta Gandra abandona finalmente a prisão de Caxias, onde chegara a 8 de Novembro de 1960”.

É com esta mulher, considerada extraordinária pelas pessoas que com ela privaram, que Fernanda Tomás inicia uma relação afectiva que durou enquanto estiveram presas, e se prolongou até ao falecimento de Fernanda.

Este relacionamento será motivo de crítica por parte das camaradas presas, e mal aceite pelo PCP, avesso a aceitar homossexuais no seu seio, pelo menos nessa época.

Em Abril de 1969, a Amnistia Internacional iniciou uma campanha de solidariedade visando pressionar a sua libertação. 


Em Setembro de 1969, tendo cumprido a pena de prisão de 8 anos,  interrogada para a determinação das medidas de segurança, declarou:

Que, mantendo indefectivelmente as suas ideias políticas e tencionando continuar como militante oposicionista ao actual regime em actividade legal de acordo com essas ideias, não fará qualquer discriminação nem em relação ao partido comunista português nem a qualquer outra organização como forças de carácter democrático e oposicionista”.

Passado um ano, Alberto Augusto Tomás Carreira, filho de Fernanda Tomás, já com 15 anos de idade, escreve a Marcello Caetano pedindo a sua libertação.

Após consultar a PIDE, Marcello responde:

“Presidência do Conselho
Lisboa
29 de Outubro de 1970

Ex.mo Senhor Alberto Augusto Tomas Carreira
Marinha Grande

Meu caro Alberto Augusto

Li a sua carta e por ela soube da existência de sua mãe. As pessoas pensam às vezes que os presidentes mandam prender pessoas e que está na sua mão soltá-las. Não é exacto. A sua mãe, por exemplo, foi presa pela polícia por estar a agir contra a lei – e não por ter ideias diferentes das do governo. Foi julgada e condenada pelos tribunais. Informei-me do que se poderia agora fazer para a restituir à família: basta que ela se comprometa a dedicar-se ao filho a não voltar a praticar acções proibidas por lei. Já há meses lhe perguntaram se queria sair nessas condições, que são as da sentença, e ela respondeu que não, Vão fazer-lhe outra vez a pergunta.
Compreendo muito bem os seus sentimentos de filho, e desejo-lhe as maiores felicidades.

Marcello Caetano.”     (Fonte: PIDE / DGS Proc. Cn. 386 / 61, NT 5369)

Diana Andringa, refere que “no mês seguinte, Fernanda Paiva Tomás é de novo interrogada e assina um documento declarando que se absteria «de actos cuja realização possa interessar» quer ao PCP, quer a outras organizações políticas não consentidas pela lei que visem os mesmos fins, «desde que ilegais».

A 16 de Novembro, a DGS propõe a sua libertação condicional, referindo que a «delinquente» havia experimentado uma «modificação acentuada em relação aos motivos determinantes da sua anterior conduta criminosa» e que se mostrava «possuída de vontade bastante para manter uma futura submissão à ordem jurídica estabelecida».

Fernanda Tomás sai em liberdade condicional três dias depois, 19 de Novembro de 1970. Acabava de fazer 42 anos e faltavam três meses para completar dez anos de prisão.”

Pacheco Pereira afirma que continuou a militar no PCP.

Foi residir para Mortágua (com a obrigação de se apresentar no posto da GNR), onde permaneceu até Agosto de 1971, data em que se deslocou para Lisboa, passando a residir na rua Ilha do Príncipe, em casa  de Julieta Gandra.

Em 14 de Novembro de 1972 , passou de liberdade condicional a liberdade definitiva.

Em 1975 acompanhou Julieta Gandra, que se deslocou para Angola com o objectivo de lançar as bases de um Sistema Nacional de Saúde. Fernanda Tomás trabalhou como cooperante no Ministério da Educação.

Voltou para Lisboa quando Julieta Gandra regressou a Portugal, em 1978, por razões de saúde, tendo feito  algumas deslocações a Londres para exames médicos.

Faleceu em 15 de Setembro de 1984, vítima de um tumor cerebral.

Sobre esta corajosa lutadora anti-fascista, disse João Tunes:

O PCP esqueceu-a e esquece-a, deliberadamente, … , apesar de à causa comunista Fernanda Paiva Tomás ter dedicado o mais vivo da sua vida.

É verdade o que diz.

Mas acrescento eu que, além do PCP, também a ignora Mortágua, a terra que a viu nascer, e que homenageia a toda a hora figuras locais, algumas de duvidosa valia.

Até  a própria família a esconde, talvez porque não seja conveniente, ou prestigiante para as aspirações políticas pessoais, ter uma figura desta dimensão com o duplo “defeito” de ser comunista consequente, e ter uma orientação sexual diversa do considerado “normal”.

BIBLIOGRAFIA:

Por Almeida, São José . Amor numa cadeia da PIDE https://www.publico.pt/2009/07/17/sociedade/noticia/amor-numa-cadeia-da-pide-1392260 ,

ANDRINGA, Diana: Fernanda Paiva Tomás ; Caminhos da Memória.

MADEIRA, João: Os engenheiros de almas- o Partido Comunista e os intelectuais;  Estampa. Lisboa, 1996.

MELO, Rose Nery Nobre de: Mulheres portuguesas na Resistência; Seara Nova, Lisboa 1975.

PEREIRA, José Pacheco: Estudos sobre o comunismo -  9 -6 -2006, 16 - 5 -2004

http://irenepimentel.blogspot.pt/

http://www.diarioliberdade.org/index.php :O PCP, a PIDE e a homossexualidade

TAVARES, Manuela: Feminismos: Percursos e Desafios. Texto Editores L.da , Lisboa 2010



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