Fernanda de Paiva Tomás
A revolucionária
mortaguense que quase todos pretendem esquecer
Era filha de Augusto César Tomás, irmão de José Tomás da Fonseca.
José Augusto Paiva Tomás, funcionário das Finanças em Mortágua, e responsável pela biblioteca da Fundação Gulbenkian, era seu irmão.
Em 1950, era estudante na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e fazia parte do MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil; foi presa pela primeira vez, em 11 de Novembro de 1950 quando ia depositar flores no monumento aos mortos da Grande Guerra, numa manifestação pela Paz, realizada em Lisboa. Enviada para a prisão de Caxias, seria libertada três dias depois.
Tornou-se depois militante do Partido Comunista Português.
Em 1952,
terminou o seu curso de Filologia Românica e passou à clandestinidade.
A partir de 1952,
desempenhou funções importantes no partido comunista. Foi responsável pelo sector
intelectual no Porto, pertenceu à Direcção da Organização Regional de Lisboa,
controlando o sector oriental da capital, foi membro da Comissão de
Imprensa colaborando na imprensa
clandestina, nomeadamente no Militante (órgão teórico do PCP); em 1957, deu apoio técnico à realização do V
Congresso do PCP, e chegou mesmo a ser
cooptada para membro suplente do Comité Central, em 1960.
Teve por
companheiro Joaquim Augusto da Cruz Carreira, operário vidreiro da Marinha
Grande, que entrou na clandestinidade em 1951, e de quem teve um filho.
Viveram entretanto separados, por comum
acordo, dado terem tarefas diferentes que se não conjugavam; Fernanda Tomás e Joaquim Carreira chegaram a
protestar com a Direcção do Partido, por aparentemente não facilitar os
encontros entre os dois, mesmo cumprindo as precauções necessárias à segurança
da organização.
Em 1958 Joaquim
Carreira é preso, e condenado a quatro anos de prisão maior. Nessa altura terá
sido sugerido a Fernanda Tomás, pelo PCP, deixar
a clandestinidade, para visitar o pai de seu filho, o que ela não
aceitou, considerando ser uma militante comunista, e não a companheira de um
militante comunista.
Em 6 de Fevereiro
de 1961, foi novamente presa e enviada para o Forte de Caxias. Recusou-se a
identificar o local onde residia.
Teve um
tratamento violento por parte da PIDE, como até então não se tinha visto em
relação a mulheres.
O seu testemunho pessoal é elucidativo:
« Uma primeira experiência de
80 horas sem dormir, guardada por pides e tratada constantemente por eles com o
cinismo e a baixeza de que a PIDE é capaz.
Depois uma segunda experiência. Exactamente do mesmo tipo, mas de 94
horas. A polícia política tudo pretendeu enxovalhar, desde a minha vida
política à minha vida particular. Nem a minha qualidade de mãe foi poupada por
uma agente que também se dizia mãe. Umas vezes velada, outras vezes
descaradamente, eram-me feitas propostas de negociação – que o mesmo é dizer
traição, de desonra (…) Durante 19 dias não me foi permitido, contra todas as
leis estabelecidas, contactar com a minha família (…).»
Julgada em 28 de Novembro de 1961, recusa
novamente informar qual a sua residência, e denuncia em tribunal as torturas
aplicadas aos presos. O juiz presidente, João António
Silva Caldeira, manda-a recolher aos
calabouços, enquanto ela ergue o punho e grita:
«Viva o PCP! Viva o Povo Português, que um dia julgará
este Tribunal!»
Foi
condenada a oito anos de prisão maior, 15 anos de suspensão dos direitos
políticos, e medidas de segurança.
Em
Março de 1961 o jornal Avante saúda os presos políticos do PCP, entre os quais
Fernanda Paiva Tomás.
Em
Março de 1968, a propósito do falecimento de Tomás da Fonseca, o Avante envia
condolências a Fernanda Paiva Tomás (que permanecia presa) , e à restante família.
“ A morte de Tomás da Fonseca, com 90 anos de idade, em 12 de Fevereiro do corrente ano, não representa apenas uma perda para a cultura nacional, para a vida intelectual portuguesa. Representa, igualmente, uma lacuna nas fileiras do Partido Comunista Português a que ele aderiu quando contava 70 anos (1947). Preso várias vezes, manteve diante dos esbirros salazaristas a atitude de coragem e desassombro que foi uma das características da sua vida.
Foi a enterrar em Mortágua, onde decorreu uma grande parte da sua vida, entre filas do povo que amou.
À sua família e em particular à sua sobrinha, a corajosa militante comunista Fernanda Tomás, o «Avante!» envia as suas sentidas condolências.”
Fernanda tornar-se-ia a mulher portuguesa que
permaneceu mais tempo presa por motivos políticos – 9 anos e 9 meses.
Durante este longo cativeiro, Fernanda Tomás teve
várias companheiras de cárcere, mas viria a desenvolver uma relação amorosa com
uma delas –Julieta Gandra.
São José Almeida fala-nos dela :
Nascida a 16 de Setembro de 1917, em
Oliveira de Azeméis, Maria Julieta Guimarães Gandra era filha de Aurora e Mário
Gandra, solicitador e pequeno comerciante, e tinha três irmãos, Fernanda, mais
velha e ainda viva, Ângela, e Hernâni, arquitecto que militou no PCP.
Julieta cursou medicina, em Lisboa, onde conheceu Ernesto Cochat Osório,
oposicionista e poeta, natural de Angola. Depois de casados e de ter nascido,
em 1944, o seu filho Miguel (que não quis colaborar neste trabalho), rumam de
barco a Luanda. Julieta é então especialista em medicina tropical. Irá
interessar-se por obstetrícia e ginecologia e será ela a introdutora do parto
sem dor em Angola. Médica das jovens brancas da elite de Luanda, dá também
consulta a mulheres pobres, brancas e pretas.
Em Luanda, priva com intelectuais não afectos ao regime e frequenta o
Cine-Clube e a Sociedade Cultural de Angola. O que fora uma aproximação à
oposição na faculdade torna-se ligação ao PCP em Angola. (Pacheco Pereira,
Álvaro Cunhal, III vol. pp. 517-526). Em meados dos anos 50, participa na
formação do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Vem de então a
sua amizade com Agostinho Neto, Lúcio Lara, Paulo Jorge e Arménio Santos. (…)
A 29 de Março de 1959, Julieta Gandra é presa pela PIDE. Em Agosto,
realiza-se o primeiro julgamento político de nacionalistas angolanos, "o
processo dos 50". No final, os presos brancos serão enviados para a
metrópole, enquanto os negros irão reabrir o Campo do Tarrafal.
A sua prisão causa polémica e constrangimento na Luanda branca. Era uma
intelectual influente e médica da elite. Chegou a sair da prisão para ir
assistir a um parto da filha de um engenheiro belga, responsável de uma
petrolífera, que assim o exigiu.
O seu tempo de prisão em Luanda foi de cela aberta. Primeiro na PSP, onde a sua
detenção incomodava, pois era médica da instituição. Depois, na ala feminina do
hospital psiquiátrico, que funcionou como prisão, pois não havia cadeias para
presas políticas. O director acaba por exigir mesmo a retirada do pide que
vigia a porta, argumento: perturba as doentes da ala feminina. (…)
Foi condenada a 12 meses de prisão. Pena que foi agravada para dois anos de
prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos, após recurso do
Ministério Público. Julieta recorre também e realiza-se novo julgamento, já em
Lisboa, mas a pena aumenta: quatro anos de prisão maior e medidas de segurança
de seis meses a três anos. (…)
No início de Julho de 1965, Julieta Gandra abandona finalmente a prisão de Caxias, onde chegara a 8 de Novembro de 1960”.
É com esta mulher, considerada extraordinária pelas
pessoas que com ela privaram, que Fernanda Tomás inicia uma relação afectiva
que durou enquanto estiveram presas, e se prolongou até ao falecimento de
Fernanda.
Este relacionamento será motivo de crítica por parte
das camaradas presas, e mal aceite pelo PCP, avesso a aceitar homossexuais no
seu seio, pelo menos nessa época.
Em Abril de 1969, a Amnistia Internacional iniciou uma
campanha de solidariedade visando pressionar a sua libertação.
Em
Setembro de 1969, tendo cumprido a pena de prisão de 8 anos, interrogada para a determinação das medidas
de segurança, declarou:
“Que, mantendo indefectivelmente as suas ideias
políticas e tencionando continuar como militante oposicionista ao actual regime
em actividade legal de acordo com essas ideias, não fará qualquer discriminação
nem em relação ao partido comunista português nem a qualquer outra organização
como forças de carácter democrático e oposicionista”.
Passado um ano, Alberto
Augusto Tomás Carreira, filho de Fernanda Tomás, já com 15 anos de idade,
escreve a Marcello Caetano pedindo a sua libertação.
Após consultar a PIDE, Marcello
responde:
“Presidência do Conselho
Lisboa
29 de Outubro de 1970
Ex.mo Senhor Alberto Augusto Tomas Carreira
Marinha Grande
Meu caro Alberto Augusto
Li a sua carta e por ela soube da existência de sua
mãe. As pessoas pensam às vezes que os presidentes mandam prender pessoas e que
está na sua mão soltá-las. Não é exacto. A sua mãe, por exemplo, foi presa pela
polícia por estar a agir contra a lei – e não por ter ideias diferentes das do
governo. Foi julgada e condenada pelos tribunais. Informei-me do que se poderia
agora fazer para a restituir à família: basta que ela se comprometa a
dedicar-se ao filho a não voltar a praticar acções proibidas por lei. Já há
meses lhe perguntaram se queria sair nessas condições, que são as da sentença,
e ela respondeu que não, Vão fazer-lhe outra vez a pergunta.
Compreendo muito bem os seus sentimentos de filho, e desejo-lhe as maiores
felicidades.
Marcello Caetano.”
(Fonte: PIDE / DGS Proc. Cn.
386 / 61, NT 5369)
Diana Andringa, refere que “no mês seguinte, Fernanda
Paiva Tomás é de novo interrogada e assina um documento declarando que se
absteria «de actos cuja realização possa interessar» quer ao PCP, quer a
outras organizações políticas não consentidas pela lei que visem os mesmos
fins, «desde que ilegais».
A 16 de Novembro, a DGS propõe a sua libertação
condicional, referindo que a «delinquente» havia experimentado uma «modificação
acentuada em relação aos motivos determinantes da sua anterior conduta
criminosa» e que se mostrava «possuída de vontade bastante para manter
uma futura submissão à ordem jurídica estabelecida».
Fernanda Tomás sai em liberdade condicional três dias
depois, 19 de Novembro de 1970. Acabava de fazer 42 anos e faltavam três meses
para completar dez anos de prisão.”
Pacheco Pereira afirma que continuou a militar no PCP.
Foi residir para Mortágua (com a obrigação de se
apresentar no posto da GNR), onde permaneceu até Agosto de 1971, data em que se
deslocou para Lisboa, passando a residir na rua Ilha do Príncipe, em casa de Julieta Gandra.
Em 14 de Novembro de 1972 , passou de liberdade
condicional a liberdade definitiva.
Em 1975 acompanhou Julieta Gandra, que se deslocou
para Angola com o objectivo de lançar as bases de um Sistema Nacional de Saúde.
Fernanda Tomás trabalhou como cooperante no Ministério da Educação.
Voltou para
Lisboa quando Julieta Gandra regressou a Portugal, em 1978, por razões de
saúde, tendo feito algumas deslocações a
Londres para exames médicos.
Faleceu em 15 de Setembro de 1984, vítima de um tumor
cerebral.
Sobre esta corajosa lutadora anti-fascista, disse
João Tunes:
O PCP esqueceu-a
e esquece-a, deliberadamente, … , apesar de à causa comunista Fernanda Paiva Tomás ter
dedicado o mais vivo da sua vida.
É verdade o que diz.
Mas acrescento eu que, além do PCP, também a
ignora Mortágua, a terra que a viu nascer, e que homenageia a toda a hora
figuras locais, algumas de duvidosa valia.
Até a
própria família a esconde, talvez porque não seja conveniente, ou prestigiante
para as aspirações políticas pessoais, ter uma figura desta dimensão com o
duplo “defeito” de ser comunista consequente, e ter uma orientação sexual
diversa do considerado “normal”.
BIBLIOGRAFIA:
Almeida, São José . Amor numa cadeia da
PIDE https://www.publico.pt/2009/07/17/sociedade/noticia/amor-numa-cadeia-da-pide-1392260 ,
ANDRINGA, Diana: Fernanda
Paiva Tomás ; Caminhos da Memória.
MADEIRA, João: Os
engenheiros de almas- o Partido Comunista e os intelectuais; Estampa. Lisboa, 1996.
MELO, Rose Nery Nobre de: Mulheres
portuguesas na Resistência; Seara Nova, Lisboa 1975.
PEREIRA, José Pacheco: Estudos sobre o comunismo - 9 -6 -2006, 16 - 5 -2004
http://irenepimentel.blogspot.pt/
http://www.diarioliberdade.org/index.php :O PCP, a PIDE e a homossexualidade
TAVARES, Manuela: Feminismos:
Percursos e Desafios. Texto Editores L.da , Lisboa 2010
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