sábado, 30 de julho de 2022

 

A Batalha de Mortágua,

O Combate da Serra do Meiral,

O Major Luís Rêgo, e outras mentiras convenientes

 

Quem pretende escrever sobre acontecimentos históricos tem a obrigação de tentar ser o mais rigoroso possível. Para isso deve socorrer-se do melhor conhecimento existente no momento em que escreve. É certo que o conhecimento histórico nunca é definitivo, podendo em qualquer momento surgir um documento, ou um indício, que venha alterar o que anteriormente era dado como certo.

Uma atitude diferente, mas muito comum, é a que tomam algumas pessoas que escrevem coisas que só existiram na sua imaginação, como se fossem factos históricos indiscutíveis. O problema torna-se mais grave quando misturam essas “fantasias” com   factos realmente ocorridos e documentados.  Frequentemente, essas pessoas essas pessoas ganham prestígio entre os seus contemporâneos, que não tem conhecimento, nem acesso a documentação, nem disponibilidade de tempo para destrinçar o que tem valor real.

Um problema importante é que a partir do momento em que uma destas “fantasias” é publicada em livro, os futuros divulgadores de história passam a considerá-la como uma verdade irrefutável, e actualmente, com as redes sociais, a rápida difusão pode torná-la uma fonte repetida à exaustão, até ser quase universalmente aceite.
A agravar este quadro tem sido frequente procederem à reedição das obras destes “historiadores”, por iniciativa das autarquias, solicitando a pessoas de reconhecido mérito como professores universitários que prefaciem as obras. A facilidade com que caucionam essas obras e, naturalmente, o seu conteúdo, é verdadeiramente surpreendente.  Isto não deixa de me entristecer, porque tinha por algumas dessas pessoas elevado apreço.

Um caso ilustrativo é a reedição do livro “O Pelourinho de Mortágua”. Como já escrevi noutra publicação neste blog, trata-se de um trabalho muito imaginativo do Dr. Assis, mas desprovido de rigor. Aliás, num discurso proferido numa homenagem que lhe foi feita em 1969, o Dr. Assis conta-nos sobre a origem do livro:

«O Pelourinho de Mortágua». Esse livrinho tem uma história que vou expor em poucas palavras. Em 1940, comemoraram-se os dois centenários – o da fundação da nacionalidade (1140) e a restauração da independência (1640).

Era Presidente da Câmara, o Dr. António de Abreu….

 Não quis ele que o concelho de Mortágua deixasse de estar representado no certame das publicações centenárias de todo o País. E fui eu o indigitado para escrever alguma coisa que figurasse nesse certame.

Claro que o palestrador de serviço das forças do poder, logo tratou de escrever coisas mirabolantes que deixaram boquiabertos os leitores, perante tanta sabedoria.

Mais difícil de perceber é o que leva uma Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, reconhecida como investigadora de História, a escrever no prefácio da reedição:

Ou seja, trocando em miúdos : dispensamos o Dr. Assis de qualquer exigência de rigor histórico, mas reconhemos, 80 anos depois, que os seus escritos são “a base para o conhecimento” do passado de Mortágua. Convenhamos que existe aqui uma estranha elasticidade dos conceitos.

Passando adiante, o Dr. Assis e Santos publicou em 1944 um artigo na Revista “Beira Alta” intitulado:


Para além de outras coisas de credibilidade duvidosa, escreve dois parágrafos que estão na origem desta publicação:

      No dia 25, os 15.000 homens do general Reynier avançaram pela estrada real – Vale de Açores, Cortegaça, Santo António do Cântaro… Em Cortegaça deparou-se-lhes um pequeno contratempo: um fidalgo vianense, o major Luís Rêgo postou o regimento nº4 de caçadores no alto da serra do Meiral e mandou fazer fogo sobre a vanguarda do 2º exército.

     Depois de causar baixas nas fileiras francesas e não pequena inquietação ao comando inimigo, o major Rêgo retirou para o Buçaco; todavia este pequeno combate, que ficou conhecido historicamente com o nome de batalha de Mortágua valeu-lhe e à sua unidade o mais rasgado louvor da parte do general em chefe do exército anglo-português. O 2º exército prosseguiu a sua marcha, alcançando ainda no dia 25 à tarde a planura de Santo António do Cântaro, apenas a 500m das forças anglo-portuguesas que ocupavam o cume da serra do Buçaco.

(SANTOS, José de Andrade Assis e : Os Franceses em Mortágua: 23-30 de Setembro de 1810. Revista “Beira Alta”. Viseu.3:3 (1944) pg.261-271.) (Sublinhados nossos)

Claro que ficamos curiosos com este episódio e tratamos de procurar em tudo quanto era obra sobre as Invasões Francesas alguma informação sobre o assunto, mas o esforço foi em vão. Não há qualquer referência a qualquer emboscada e muito menos a combate ou a batalha que tivesse ficado “conhecido historicamente com o nome de batalha de Mortágua”.

Encontramos  no entanto várias discrepâncias:

- à data referida, Luís Rêgo não era major, mas sim Tenente-Coronel, por Decreto de 21 de Janeiro de 1809.

- ao contrário do que o autor afirma não foi “este pequeno combate, que ficou conhecido historicamente com o nome de batalha de Mortágua que lhe “valeu e à sua unidade o mais rasgado louvor da parte do general em chefe do exército anglo-português.”, mas sim a valentia com que enfrentaram os franceses na proximidade de Santo António do Cântaro.

É fácil encontrar a prova disso na Gazeta de Lisboa, de que mostramos os excertos elucidativos.





E não encontramos qualquer outra alusão à Batalha de Mortágua, até que em 2001 a licenciada em História, Maria Zília Gonçalves, publica na obra “Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua”, um artigo intitulado  “O Concelho e as Invasões Francesas”




Nesse artigo, a autora faz um plágio vergonhoso do artigo de Assis e Santos, a que acrescenta depois algumas coisas que diz ter recolhido localmente.




Tudo o que está sublinhado é cópia directa do texto de Assis e Santos, sem qualquer referência à origem.

A saga não ficou por aqui.

Em 2016, João Paulo de Almeida e Sousa, publica um livro intitulado “ ANDARAM POR AQUI OS FRANCESESA 3ª Invasão Francesa em Mortágua(22 a 30 de Setembro de 1810) ” , que aceita sem hesitações as publicações anteriores, embora referindo as fontes.

Sob o ponto de vista militar, também me aguçou o interesse o que de relevante se passou no conhecido “Combate de Mortágua”, em 25 de Setembro de 1810, na Serra do Meiral, a que adiante farei referência.

Repare-se que, com algum aparente pudor, a Batalha deu lugar ao Combate.

Também nos confessa:

Existem apenas duas publicações que fazem referência dedicada às invasões francesas em Mortágua; a primeira é um trabalho da autoria do Dr. Assis e Santos, publicado em 1944 na revista trimestral Beira Alta (SANTOS,1944); este mortaguense, notável pesquisador da História local, não podia deixar de ser referido neste trabalho! A segunda é a edição de 2001 dos “Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua”, onde consta um capítulo sobre o tema ( SÁ, 2001)

Não estou certo de ter compreendido a razão de ser evitada na bibliografia, a referência à autora do capítulo acima referido como se pode ver:


Um pouco mais adiante, João Paulo de Almeida e Sousa volta à carga com as citações do artigo de Assis e Santos, acrescentando que os acontecimentos tiveram lugar “em plena região da Irmânia” , algo que Assis e Santos nunca disse ou escreveu.

Para terminar, encontramos no site da Câmara Municipal de Mortágua uma notícia que no dia 6 de Março de 1922 se realizou uma palestra no Nucleo Museológico da Irmânia, intitulada:

“Os sacrifícios e o sofrimento das populações - Mortágua sob a Invasão de Massena”,

proferida pela Professora Doutora Maria Alegria Marques.

A introdução ao tema foi da responsabilidade do Dr. João Paulo de Almeida e Sousa.

Após a palestra, os participantes inauguraram um marco histórico referente ao “Combate da Serra do Meiral”.


Pela fotografia publicada não conseguimos perceber se o marco foi colocado ao cimo, ou ao fundo do Meiral. Ficamos até com a ideia que a fotografia não foi tirada no Meiral... Talvez no Irmanai…

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