A Batalha de Mortágua,
O Combate da Serra do
Meiral,
O Major Luís Rêgo, e
outras mentiras convenientes
Quem pretende escrever sobre acontecimentos históricos tem
a obrigação de tentar ser o mais rigoroso possível. Para isso deve socorrer-se
do melhor conhecimento existente no momento em que escreve. É certo que o
conhecimento histórico nunca é definitivo, podendo em qualquer momento surgir
um documento, ou um indício, que venha alterar o que anteriormente era dado
como certo.
Uma atitude diferente, mas muito comum, é a que tomam
algumas pessoas que escrevem coisas que só existiram na sua imaginação, como se
fossem factos históricos indiscutíveis. O problema torna-se mais grave quando
misturam essas “fantasias” com factos realmente
ocorridos e documentados.
Frequentemente, essas pessoas essas pessoas ganham prestígio entre os
seus contemporâneos, que não tem conhecimento, nem acesso a documentação, nem
disponibilidade de tempo para destrinçar o que tem valor real.
Um problema importante é que a partir do momento em que uma
destas “fantasias” é publicada em livro, os futuros divulgadores de história
passam a considerá-la como uma verdade irrefutável, e actualmente, com as redes
sociais, a rápida difusão pode torná-la uma fonte repetida à exaustão, até ser
quase universalmente aceite.
A agravar este quadro tem sido frequente procederem à reedição das obras destes
“historiadores”, por iniciativa das autarquias, solicitando a pessoas de
reconhecido mérito como professores universitários que prefaciem as obras. A
facilidade com que caucionam essas obras e, naturalmente, o seu conteúdo, é
verdadeiramente surpreendente. Isto não
deixa de me entristecer, porque tinha por algumas dessas pessoas elevado
apreço.
Um caso ilustrativo é a reedição do livro “O Pelourinho de
Mortágua”. Como já escrevi noutra publicação neste blog, trata-se de um trabalho
muito imaginativo do Dr. Assis, mas desprovido de rigor. Aliás, num discurso
proferido numa homenagem que lhe foi feita em 1969, o Dr. Assis conta-nos sobre
a origem do livro:
… «O Pelourinho de Mortágua». Esse livrinho tem uma história que vou expor
em poucas palavras. Em 1940, comemoraram-se os dois centenários – o da fundação
da nacionalidade (1140) e a restauração da independência (1640).
Era Presidente da Câmara, o Dr. António de
Abreu….
Não
quis ele que o concelho de Mortágua deixasse de estar representado no certame
das publicações centenárias de todo o País. E fui eu o indigitado para escrever
alguma coisa que figurasse nesse certame.
Claro que o palestrador de serviço das forças do poder,
logo tratou de escrever coisas mirabolantes que deixaram boquiabertos os
leitores, perante tanta sabedoria.
Mais difícil de perceber é o que leva uma Professora
Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, reconhecida como
investigadora de História, a escrever no prefácio da reedição:
Ou seja, trocando em miúdos : dispensamos o Dr. Assis de
qualquer exigência de rigor histórico, mas reconhemos, 80 anos depois, que os
seus escritos são “a base para o conhecimento” do passado de Mortágua.
Convenhamos que existe aqui uma estranha elasticidade dos conceitos.
Passando adiante, o Dr. Assis e Santos publicou em 1944 um artigo
na Revista “Beira Alta” intitulado:
No dia 25, os 15.000 homens do general
Reynier avançaram pela estrada real – Vale de Açores, Cortegaça, Santo António
do Cântaro… Em Cortegaça deparou-se-lhes um pequeno contratempo: um fidalgo
vianense, o major Luís Rêgo postou o regimento nº4 de caçadores no alto
da serra do Meiral e mandou fazer fogo sobre a vanguarda do 2º exército.
Depois de causar baixas nas fileiras
francesas e não pequena inquietação ao comando inimigo, o major Rêgo
retirou para o Buçaco; todavia este pequeno combate,
que ficou conhecido historicamente com o nome de batalha de Mortágua
valeu-lhe e à sua unidade o mais rasgado louvor da parte do general em chefe do
exército anglo-português. O 2º exército prosseguiu a sua marcha, alcançando
ainda no dia 25 à tarde a planura de Santo António do Cântaro, apenas a 500m
das forças anglo-portuguesas que ocupavam o cume da serra do Buçaco.
(SANTOS, José de Andrade Assis e : Os Franceses em Mortágua: 23-30 de Setembro de 1810. Revista “Beira
Alta”. Viseu.3:3 (1944) pg.261-271.) (Sublinhados nossos)
Claro que ficamos curiosos com este episódio e
tratamos de procurar em tudo quanto era obra sobre as Invasões Francesas alguma
informação sobre o assunto, mas o esforço foi em vão. Não há qualquer
referência a qualquer emboscada e muito menos a combate ou a batalha que
tivesse ficado “conhecido historicamente com o nome de batalha de
Mortágua”.
Encontramos
no entanto várias discrepâncias:
- à data referida, Luís
Rêgo não era major, mas sim Tenente-Coronel, por
Decreto de 21 de Janeiro de 1809.
- ao contrário do que o autor afirma não foi “este
pequeno combate, que ficou conhecido historicamente com o nome de batalha de
Mortágua “ que lhe “valeu e à sua unidade o mais
rasgado louvor da parte do general em chefe do exército anglo-português.”, mas
sim a valentia com que enfrentaram os franceses na proximidade de Santo António
do Cântaro.
É
fácil encontrar a prova disso na Gazeta de Lisboa, de que mostramos os excertos
elucidativos.
E não encontramos qualquer outra alusão à Batalha de Mortágua, até que em 2001 a licenciada em História, Maria Zília Gonçalves, publica na obra “Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua”, um artigo intitulado “O Concelho e as Invasões Francesas”
Nesse artigo, a autora faz um plágio
vergonhoso do artigo de Assis e Santos, a que acrescenta depois algumas coisas
que diz ter recolhido localmente.
Tudo o que está sublinhado é cópia directa do texto de
Assis e Santos, sem qualquer referência à origem.
A saga não ficou por aqui.
Em 2016, João Paulo de Almeida e Sousa, publica um livro
intitulado “ ANDARAM POR AQUI OS FRANCESES…A 3ª Invasão
Francesa em Mortágua(22 a 30 de Setembro de 1810) ” , que
aceita sem hesitações as publicações anteriores, embora referindo as fontes.
Sob o ponto de vista militar, também me
aguçou o interesse o que de relevante se passou no conhecido “Combate de
Mortágua”, em 25 de Setembro de 1810, na Serra do Meiral, a que adiante farei
referência.
Repare-se que, com algum aparente pudor, a Batalha deu
lugar ao Combate.
Também nos confessa:
Existem apenas duas publicações que fazem
referência dedicada às invasões francesas em Mortágua; a primeira é um trabalho
da autoria do Dr. Assis e Santos, publicado em 1944 na revista trimestral Beira
Alta (SANTOS,1944); este mortaguense, notável pesquisador da História
local, não podia deixar de ser referido neste trabalho! A segunda é a edição de
2001 dos “Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua”, onde consta
um capítulo sobre o tema ( SÁ, 2001)
Não estou certo de ter compreendido a razão de ser evitada na
bibliografia, a referência à autora do capítulo acima referido como se pode ver:
Um pouco mais adiante, João Paulo de Almeida e Sousa volta à carga com as citações do artigo de Assis e Santos, acrescentando que os acontecimentos tiveram lugar “em plena região da Irmânia” , algo que Assis e Santos nunca disse ou escreveu.
Para terminar, encontramos no site da Câmara Municipal de
Mortágua uma notícia que no dia 6 de Março de 1922 se realizou uma palestra no
Nucleo Museológico da Irmânia, intitulada:
“Os sacrifícios e o sofrimento das populações - Mortágua sob a Invasão de Massena”,
proferida pela Professora Doutora Maria Alegria Marques.
A introdução ao tema foi da
responsabilidade do Dr. João Paulo de Almeida e Sousa.
Após a palestra, os participantes inauguraram um marco histórico referente ao “Combate da Serra do Meiral”.
Pela fotografia publicada não conseguimos perceber se o marco foi colocado ao cimo, ou ao fundo do Meiral. Ficamos até com a ideia que a fotografia não foi tirada no Meiral... Talvez no Irmanai…
Sem comentários:
Enviar um comentário