segunda-feira, 1 de agosto de 2022

 

Regimento de Caçadores nº 4

Uma representação enganadora.

 

O Batalhão de Caçadores da Beira, nº4, foi organizado na cidade de Viseu, em 1908, pelo então major Luís Rêgo Barreto, que o comandou durante toda a guerra peninsular.

Em 21 de Janeiro de 1809, Luís Rêgo foi promovido a Tenente-Coronel.

Durante a 3ª Invasão Francesa, o Batalhão de Caçadores nº4 passou por Mortágua, e bateu-se com grande valentia contra o 2º Corpo do exército francês, comandado pelo General Reynier, em Santo António do Cântaro.

Essa valentia valeu-lhes os maiores elogios de Lord Beresford, no Oficio que dírigiu ao Governo em 30 de Setembro de 1810, se exprime pela seguinte linguagem : « A conducta do Batalhão de Caçadores Nº 4 merece ser particularmente mencionada , assim pelo seu valor no ataque, como pela constância, com que supportou por todo o dia o inimigo.»   Na Ordem do dia 28 de Setembro, Beresford   apelida de “ Bravos” o Comandante Luiz do Rego Barreto juntamente com os Soldados e Oficiais sob o seu comando.

Lord Wellíngton, comandante das forças anglo-lusas , no Oficio que  em 30 de Setembro de 1810 dirige ao general Miguel Pereira Forjaz, o membro mais influente do Conselho de Regência, que assumiu a governação do Reino de Portugal, após  a partida da Corte para o Brasil, não regateia elogios à actuação do Batalhão e do seu comandante.

O dr. Assis Santos num artigo intitulado  Os Franceses em Mortágua: 23-30 de Setembro de 1810”, publicado na Revista “Beira Alta” em 1944, fala de uma batalha de Mortágua que não encontramos descrita em nenhum dos mais de cem livros e artigos que consultamos.

Ainda segundo o Dr. Assis, o Regimento de Caçadores nº 4, era comandado pelo “major” Luís Rêgo, que já era Tenente-Coronel há mais de um ano.

Pois bem, o Dr. Assis fez escola, e outros pseudo- historiadores tomaram as suas afirmações como definitivas, e o Batalhão de Caçadores nº4 passou a ser o orgulho de Mortágua, e quase um símbolo da resistência da população local ao invasor.

A autarquia local, a partir de certa altura entrou num entusiasmo frenético sobre as invasões francesas, chegando a receber como convidado especial um descendente do comandante dos invasores.

Criou “centros interpretativos”, encomendou pinturas murais, deu patrocínios à edição de livros, promoveu reconstituições históricas, passeios noturnos, conferências, exposições, etc.

Para rematar esta azáfama, colocaram um boneco que pretende representar o Batalhão de Caçadores nº4, defronte do “centro interpretativo”.


 Ora este militar, com o fardamento que apresenta,  nunca poderia pertencer ao Batalhão de Caçadores nº 4.

Ninguém nasce ensinado, mas com as iniciativas que patrocinaram, e em que participaram, deviam ter aprendido qualquer coisa.

Em 2016, o Centro de Animação Cultural de Mortágua manteve durante mais de um mês uma exposição de aguarelas da autoria do General Ribeiro Artur, ilustrativas dos fardamentos militares na época das invasões francesas


Se tivessem olhado com um pouco de atenção para as aguarelas tinham visto que o fardamento dos “Caçadores” nada tinha de comum com o nosso “boneco interpretativo”.

O general Ribeiro Artur representou-os na figura acima.

Os uniformes eram feitos num tecido de lã grossa, de cor acastanhada, fabricado nas Beiras. O tecido era conhecido por Saragoça, ou, numa designação mais popular, Surrobeco.

Os soldados usavam polainas de pano preto. Os oficiais usavam botas de cano alto.

Durante o Verão era autorizado o uso de calças brancas, de linho ou algodão.

Um regulamento de 14 de Outubro de 1810, estabeleceu alguns elementos distintivos dos diversos Batalhões. Além da placa metálica com o número do batalhão, exibido no barrete,

a distinção era feita pela cor dos colarinhos e dos punhos.

O Batalhão de Caçadores nº 4 tinha colarinho e punhos de cor azul claro. Os caçadores nº5 tinham punhos e colarinhos vermelhos, e os Caçadores nº6, amarelos.

Os Batalhões de Caçadores 1, 2 e 3  usavam colarinhos castanhos, sendo os punhos azul claro, vermelho ou amarelo, respectivamente.

O autor da pintura mural efectuada no Barril, teve o cuidado de se esclarecer sobre o trabalho a fazer, e representou um Caçador do Batalhão nº 4 com o uniforme adequado.


Uma nota final sobre o armamento:


Em 1810 os Batalhões de Caçadores foram equipados com a carabina Baker.

Anteriormente estavam equipados com mosquete Land Pattern, também conhecido como Brown Bess. 

***

Consta por aí que o boneco-interpretativo de fardamento azul, foi considerado suspeito de ligações às forças invasoras e condenado ao exílio no Parque Urbano.



sábado, 30 de julho de 2022

 

A Batalha de Mortágua,

O Combate da Serra do Meiral,

O Major Luís Rêgo, e outras mentiras convenientes

 

Quem pretende escrever sobre acontecimentos históricos tem a obrigação de tentar ser o mais rigoroso possível. Para isso deve socorrer-se do melhor conhecimento existente no momento em que escreve. É certo que o conhecimento histórico nunca é definitivo, podendo em qualquer momento surgir um documento, ou um indício, que venha alterar o que anteriormente era dado como certo.

Uma atitude diferente, mas muito comum, é a que tomam algumas pessoas que escrevem coisas que só existiram na sua imaginação, como se fossem factos históricos indiscutíveis. O problema torna-se mais grave quando misturam essas “fantasias” com   factos realmente ocorridos e documentados.  Frequentemente, essas pessoas essas pessoas ganham prestígio entre os seus contemporâneos, que não tem conhecimento, nem acesso a documentação, nem disponibilidade de tempo para destrinçar o que tem valor real.

Um problema importante é que a partir do momento em que uma destas “fantasias” é publicada em livro, os futuros divulgadores de história passam a considerá-la como uma verdade irrefutável, e actualmente, com as redes sociais, a rápida difusão pode torná-la uma fonte repetida à exaustão, até ser quase universalmente aceite.
A agravar este quadro tem sido frequente procederem à reedição das obras destes “historiadores”, por iniciativa das autarquias, solicitando a pessoas de reconhecido mérito como professores universitários que prefaciem as obras. A facilidade com que caucionam essas obras e, naturalmente, o seu conteúdo, é verdadeiramente surpreendente.  Isto não deixa de me entristecer, porque tinha por algumas dessas pessoas elevado apreço.

Um caso ilustrativo é a reedição do livro “O Pelourinho de Mortágua”. Como já escrevi noutra publicação neste blog, trata-se de um trabalho muito imaginativo do Dr. Assis, mas desprovido de rigor. Aliás, num discurso proferido numa homenagem que lhe foi feita em 1969, o Dr. Assis conta-nos sobre a origem do livro:

«O Pelourinho de Mortágua». Esse livrinho tem uma história que vou expor em poucas palavras. Em 1940, comemoraram-se os dois centenários – o da fundação da nacionalidade (1140) e a restauração da independência (1640).

Era Presidente da Câmara, o Dr. António de Abreu….

 Não quis ele que o concelho de Mortágua deixasse de estar representado no certame das publicações centenárias de todo o País. E fui eu o indigitado para escrever alguma coisa que figurasse nesse certame.

Claro que o palestrador de serviço das forças do poder, logo tratou de escrever coisas mirabolantes que deixaram boquiabertos os leitores, perante tanta sabedoria.

Mais difícil de perceber é o que leva uma Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, reconhecida como investigadora de História, a escrever no prefácio da reedição:

Ou seja, trocando em miúdos : dispensamos o Dr. Assis de qualquer exigência de rigor histórico, mas reconhemos, 80 anos depois, que os seus escritos são “a base para o conhecimento” do passado de Mortágua. Convenhamos que existe aqui uma estranha elasticidade dos conceitos.

Passando adiante, o Dr. Assis e Santos publicou em 1944 um artigo na Revista “Beira Alta” intitulado:


Para além de outras coisas de credibilidade duvidosa, escreve dois parágrafos que estão na origem desta publicação:

      No dia 25, os 15.000 homens do general Reynier avançaram pela estrada real – Vale de Açores, Cortegaça, Santo António do Cântaro… Em Cortegaça deparou-se-lhes um pequeno contratempo: um fidalgo vianense, o major Luís Rêgo postou o regimento nº4 de caçadores no alto da serra do Meiral e mandou fazer fogo sobre a vanguarda do 2º exército.

     Depois de causar baixas nas fileiras francesas e não pequena inquietação ao comando inimigo, o major Rêgo retirou para o Buçaco; todavia este pequeno combate, que ficou conhecido historicamente com o nome de batalha de Mortágua valeu-lhe e à sua unidade o mais rasgado louvor da parte do general em chefe do exército anglo-português. O 2º exército prosseguiu a sua marcha, alcançando ainda no dia 25 à tarde a planura de Santo António do Cântaro, apenas a 500m das forças anglo-portuguesas que ocupavam o cume da serra do Buçaco.

(SANTOS, José de Andrade Assis e : Os Franceses em Mortágua: 23-30 de Setembro de 1810. Revista “Beira Alta”. Viseu.3:3 (1944) pg.261-271.) (Sublinhados nossos)

Claro que ficamos curiosos com este episódio e tratamos de procurar em tudo quanto era obra sobre as Invasões Francesas alguma informação sobre o assunto, mas o esforço foi em vão. Não há qualquer referência a qualquer emboscada e muito menos a combate ou a batalha que tivesse ficado “conhecido historicamente com o nome de batalha de Mortágua”.

Encontramos  no entanto várias discrepâncias:

- à data referida, Luís Rêgo não era major, mas sim Tenente-Coronel, por Decreto de 21 de Janeiro de 1809.

- ao contrário do que o autor afirma não foi “este pequeno combate, que ficou conhecido historicamente com o nome de batalha de Mortágua que lhe “valeu e à sua unidade o mais rasgado louvor da parte do general em chefe do exército anglo-português.”, mas sim a valentia com que enfrentaram os franceses na proximidade de Santo António do Cântaro.

É fácil encontrar a prova disso na Gazeta de Lisboa, de que mostramos os excertos elucidativos.





E não encontramos qualquer outra alusão à Batalha de Mortágua, até que em 2001 a licenciada em História, Maria Zília Gonçalves, publica na obra “Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua”, um artigo intitulado  “O Concelho e as Invasões Francesas”




Nesse artigo, a autora faz um plágio vergonhoso do artigo de Assis e Santos, a que acrescenta depois algumas coisas que diz ter recolhido localmente.




Tudo o que está sublinhado é cópia directa do texto de Assis e Santos, sem qualquer referência à origem.

A saga não ficou por aqui.

Em 2016, João Paulo de Almeida e Sousa, publica um livro intitulado “ ANDARAM POR AQUI OS FRANCESESA 3ª Invasão Francesa em Mortágua(22 a 30 de Setembro de 1810) ” , que aceita sem hesitações as publicações anteriores, embora referindo as fontes.

Sob o ponto de vista militar, também me aguçou o interesse o que de relevante se passou no conhecido “Combate de Mortágua”, em 25 de Setembro de 1810, na Serra do Meiral, a que adiante farei referência.

Repare-se que, com algum aparente pudor, a Batalha deu lugar ao Combate.

Também nos confessa:

Existem apenas duas publicações que fazem referência dedicada às invasões francesas em Mortágua; a primeira é um trabalho da autoria do Dr. Assis e Santos, publicado em 1944 na revista trimestral Beira Alta (SANTOS,1944); este mortaguense, notável pesquisador da História local, não podia deixar de ser referido neste trabalho! A segunda é a edição de 2001 dos “Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua”, onde consta um capítulo sobre o tema ( SÁ, 2001)

Não estou certo de ter compreendido a razão de ser evitada na bibliografia, a referência à autora do capítulo acima referido como se pode ver:


Um pouco mais adiante, João Paulo de Almeida e Sousa volta à carga com as citações do artigo de Assis e Santos, acrescentando que os acontecimentos tiveram lugar “em plena região da Irmânia” , algo que Assis e Santos nunca disse ou escreveu.

Para terminar, encontramos no site da Câmara Municipal de Mortágua uma notícia que no dia 6 de Março de 1922 se realizou uma palestra no Nucleo Museológico da Irmânia, intitulada:

“Os sacrifícios e o sofrimento das populações - Mortágua sob a Invasão de Massena”,

proferida pela Professora Doutora Maria Alegria Marques.

A introdução ao tema foi da responsabilidade do Dr. João Paulo de Almeida e Sousa.

Após a palestra, os participantes inauguraram um marco histórico referente ao “Combate da Serra do Meiral”.


Pela fotografia publicada não conseguimos perceber se o marco foi colocado ao cimo, ou ao fundo do Meiral. Ficamos até com a ideia que a fotografia não foi tirada no Meiral... Talvez no Irmanai…

sexta-feira, 29 de julho de 2022

 

Fernanda de Paiva Tomás

A revolucionária mortaguense que quase todos pretendem esquecer


Era filha de Augusto César Tomás, irmão de José Tomás da Fonseca.

José Augusto Paiva Tomás,  funcionário das Finanças em Mortágua, e responsável pela biblioteca da Fundação Gulbenkian, era seu irmão.

Em 1950, era estudante na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e fazia parte do MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil;  foi presa pela primeira vez, em 11 de Novembro de 1950  quando ia depositar flores no monumento aos mortos da Grande Guerra, numa manifestação pela Paz, realizada em Lisboa. Enviada para a prisão de Caxias,  seria libertada três dias depois.

Tornou-se depois militante do Partido Comunista Português.

Em 1952, terminou o seu curso de Filologia Românica  e passou à clandestinidade.

A partir de 1952, desempenhou funções importantes no partido comunista. Foi responsável pelo sector intelectual no Porto, pertenceu à Direcção da Organização Regional de Lisboa, controlando o sector oriental da capital, foi membro da Comissão de Imprensa  colaborando na imprensa clandestina, nomeadamente no Militante (órgão teórico do PCP);  em 1957, deu apoio técnico à realização do V Congresso do PCP,  e  chegou mesmo a ser cooptada para membro suplente do Comité Central, em 1960.

Teve por companheiro Joaquim Augusto da Cruz Carreira, operário vidreiro da Marinha Grande, que entrou na clandestinidade em 1951, e de quem teve um filho. Viveram  entretanto separados, por comum acordo, dado terem tarefas diferentes que se não conjugavam;  Fernanda Tomás e Joaquim Carreira chegaram a protestar com a Direcção do Partido, por aparentemente não facilitar os encontros entre os dois, mesmo cumprindo as precauções necessárias à segurança da organização.

Em 1958 Joaquim Carreira é preso, e condenado a quatro anos de prisão maior. Nessa altura terá sido sugerido a Fernanda Tomás, pelo PCP,  deixar  a clandestinidade, para visitar o pai de seu filho, o que ela não aceitou, considerando ser uma militante comunista, e não a companheira de um militante comunista.

Em 6 de Fevereiro de 1961, foi novamente presa e enviada para o Forte de Caxias. Recusou-se a identificar o local onde residia.

Teve um tratamento violento por parte da PIDE, como até então não se tinha visto em relação a mulheres.

O seu testemunho pessoal é elucidativo:

 « Uma primeira experiência de 80 horas sem dormir, guardada por pides e tratada constantemente por eles com o cinismo e a baixeza de que a PIDE é capaz.

Depois uma segunda experiência. Exactamente do mesmo tipo, mas de 94 horas. A polícia política tudo pretendeu enxovalhar, desde a minha vida política à minha vida particular. Nem a minha qualidade de mãe foi poupada por uma agente que também se dizia mãe. Umas vezes velada, outras vezes descaradamente, eram-me feitas propostas de negociação – que o mesmo é dizer traição, de desonra (…) Durante 19 dias não me foi permitido, contra todas as leis estabelecidas, contactar com a minha família (…).»

 Julgada em 28 de Novembro de 1961, recusa novamente informar qual a sua residência, e denuncia em tribunal as torturas aplicadas aos presos. O juiz presidente, João António Silva Caldeira, manda-a recolher  aos calabouços, enquanto ela ergue o punho e grita:

«Viva o PCP! Viva o Povo Português, que um dia julgará este Tribunal!»

Foi condenada a oito anos de prisão maior, 15 anos de suspensão dos direitos políticos, e medidas de segurança.

Em Março de 1961 o jornal Avante saúda os presos políticos do PCP, entre os quais Fernanda Paiva Tomás.


Em Março de 1968, a propósito do falecimento de Tomás da Fonseca, o Avante envia condolências a Fernanda Paiva Tomás (que permanecia  presa) , e à restante família.


“ A morte de Tomás da Fonseca, com 90 anos de idade, em 12 de Fevereiro do corrente ano, não representa apenas uma perda para a cultura nacional, para a vida intelectual portuguesa. Representa, igualmente, uma lacuna nas fileiras do Partido Comunista Português a que ele aderiu quando contava 70 anos (1947). Preso várias vezes, manteve diante dos esbirros salazaristas a atitude de coragem e desassombro que foi uma das características da sua vida.

Foi a enterrar em Mortágua, onde decorreu uma grande parte da sua vida, entre filas do povo que amou.

À sua família e em particular à sua sobrinha, a corajosa militante comunista Fernanda Tomás, o «Avante!»  envia as suas sentidas condolências.”

Fernanda tornar-se-ia a mulher portuguesa que permaneceu mais tempo presa por motivos políticos – 9 anos e 9 meses.

Durante este longo cativeiro, Fernanda Tomás teve várias companheiras de cárcere, mas viria a desenvolver uma relação amorosa com uma delas –Julieta Gandra.

São José Almeida fala-nos dela :

 Nascida a 16 de Setembro de 1917, em Oliveira de Azeméis, Maria Julieta Guimarães Gandra era filha de Aurora e Mário Gandra, solicitador e pequeno comerciante, e tinha três irmãos, Fernanda, mais velha e ainda viva, Ângela, e Hernâni, arquitecto que militou no PCP.
Julieta cursou medicina, em Lisboa, onde conheceu Ernesto Cochat Osório, oposicionista e poeta, natural de Angola. Depois de casados e de ter nascido, em 1944, o seu filho Miguel (que não quis colaborar neste trabalho), rumam de barco a Luanda. Julieta é então especialista em medicina tropical. Irá interessar-se por obstetrícia e ginecologia e será ela a introdutora do parto sem dor em Angola. Médica das jovens brancas da elite de Luanda, dá também consulta a mulheres pobres, brancas e pretas.
Em Luanda, priva com intelectuais não afectos ao regime e frequenta o Cine-Clube e a Sociedade Cultural de Angola. O que fora uma aproximação à oposição na faculdade torna-se ligação ao PCP em Angola. (Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, III vol. pp. 517-526). Em meados dos anos 50, participa na formação do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Vem de então a sua amizade com Agostinho Neto, Lúcio Lara, Paulo Jorge e Arménio Santos.  (…)

A 29 de Março de 1959, Julieta Gandra é presa pela PIDE. Em Agosto, realiza-se o primeiro julgamento político de nacionalistas angolanos, "o processo dos 50". No final, os presos brancos serão enviados para a metrópole, enquanto os negros irão reabrir o Campo do Tarrafal.
A sua prisão causa polémica e constrangimento na Luanda branca. Era uma intelectual influente e médica da elite. Chegou a sair da prisão para ir assistir a um parto da filha de um engenheiro belga, responsável de uma petrolífera, que assim o exigiu.
O seu tempo de prisão em Luanda foi de cela aberta. Primeiro na PSP, onde a sua detenção incomodava, pois era médica da instituição. Depois, na ala feminina do hospital psiquiátrico, que funcionou como prisão, pois não havia cadeias para presas políticas. O director acaba por exigir mesmo a retirada do pide que vigia a porta, argumento: perturba as doentes da ala feminina. (…)

Foi condenada a 12 meses de prisão. Pena que foi agravada para dois anos de prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos, após recurso do Ministério Público. Julieta recorre também e realiza-se novo julgamento, já em Lisboa, mas a pena aumenta: quatro anos de prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos. (…)

No início de Julho de 1965, Julieta Gandra abandona finalmente a prisão de Caxias, onde chegara a 8 de Novembro de 1960”.

É com esta mulher, considerada extraordinária pelas pessoas que com ela privaram, que Fernanda Tomás inicia uma relação afectiva que durou enquanto estiveram presas, e se prolongou até ao falecimento de Fernanda.

Este relacionamento será motivo de crítica por parte das camaradas presas, e mal aceite pelo PCP, avesso a aceitar homossexuais no seu seio, pelo menos nessa época.

Em Abril de 1969, a Amnistia Internacional iniciou uma campanha de solidariedade visando pressionar a sua libertação. 


Em Setembro de 1969, tendo cumprido a pena de prisão de 8 anos,  interrogada para a determinação das medidas de segurança, declarou:

Que, mantendo indefectivelmente as suas ideias políticas e tencionando continuar como militante oposicionista ao actual regime em actividade legal de acordo com essas ideias, não fará qualquer discriminação nem em relação ao partido comunista português nem a qualquer outra organização como forças de carácter democrático e oposicionista”.

Passado um ano, Alberto Augusto Tomás Carreira, filho de Fernanda Tomás, já com 15 anos de idade, escreve a Marcello Caetano pedindo a sua libertação.

Após consultar a PIDE, Marcello responde:

“Presidência do Conselho
Lisboa
29 de Outubro de 1970

Ex.mo Senhor Alberto Augusto Tomas Carreira
Marinha Grande

Meu caro Alberto Augusto

Li a sua carta e por ela soube da existência de sua mãe. As pessoas pensam às vezes que os presidentes mandam prender pessoas e que está na sua mão soltá-las. Não é exacto. A sua mãe, por exemplo, foi presa pela polícia por estar a agir contra a lei – e não por ter ideias diferentes das do governo. Foi julgada e condenada pelos tribunais. Informei-me do que se poderia agora fazer para a restituir à família: basta que ela se comprometa a dedicar-se ao filho a não voltar a praticar acções proibidas por lei. Já há meses lhe perguntaram se queria sair nessas condições, que são as da sentença, e ela respondeu que não, Vão fazer-lhe outra vez a pergunta.
Compreendo muito bem os seus sentimentos de filho, e desejo-lhe as maiores felicidades.

Marcello Caetano.”     (Fonte: PIDE / DGS Proc. Cn. 386 / 61, NT 5369)

Diana Andringa, refere que “no mês seguinte, Fernanda Paiva Tomás é de novo interrogada e assina um documento declarando que se absteria «de actos cuja realização possa interessar» quer ao PCP, quer a outras organizações políticas não consentidas pela lei que visem os mesmos fins, «desde que ilegais».

A 16 de Novembro, a DGS propõe a sua libertação condicional, referindo que a «delinquente» havia experimentado uma «modificação acentuada em relação aos motivos determinantes da sua anterior conduta criminosa» e que se mostrava «possuída de vontade bastante para manter uma futura submissão à ordem jurídica estabelecida».

Fernanda Tomás sai em liberdade condicional três dias depois, 19 de Novembro de 1970. Acabava de fazer 42 anos e faltavam três meses para completar dez anos de prisão.”

Pacheco Pereira afirma que continuou a militar no PCP.

Foi residir para Mortágua (com a obrigação de se apresentar no posto da GNR), onde permaneceu até Agosto de 1971, data em que se deslocou para Lisboa, passando a residir na rua Ilha do Príncipe, em casa  de Julieta Gandra.

Em 14 de Novembro de 1972 , passou de liberdade condicional a liberdade definitiva.

Em 1975 acompanhou Julieta Gandra, que se deslocou para Angola com o objectivo de lançar as bases de um Sistema Nacional de Saúde. Fernanda Tomás trabalhou como cooperante no Ministério da Educação.

Voltou para Lisboa quando Julieta Gandra regressou a Portugal, em 1978, por razões de saúde, tendo feito  algumas deslocações a Londres para exames médicos.

Faleceu em 15 de Setembro de 1984, vítima de um tumor cerebral.

Sobre esta corajosa lutadora anti-fascista, disse João Tunes:

O PCP esqueceu-a e esquece-a, deliberadamente, … , apesar de à causa comunista Fernanda Paiva Tomás ter dedicado o mais vivo da sua vida.

É verdade o que diz.

Mas acrescento eu que, além do PCP, também a ignora Mortágua, a terra que a viu nascer, e que homenageia a toda a hora figuras locais, algumas de duvidosa valia.

Até  a própria família a esconde, talvez porque não seja conveniente, ou prestigiante para as aspirações políticas pessoais, ter uma figura desta dimensão com o duplo “defeito” de ser comunista consequente, e ter uma orientação sexual diversa do considerado “normal”.

BIBLIOGRAFIA:

Por Almeida, São José . Amor numa cadeia da PIDE https://www.publico.pt/2009/07/17/sociedade/noticia/amor-numa-cadeia-da-pide-1392260 ,

ANDRINGA, Diana: Fernanda Paiva Tomás ; Caminhos da Memória.

MADEIRA, João: Os engenheiros de almas- o Partido Comunista e os intelectuais;  Estampa. Lisboa, 1996.

MELO, Rose Nery Nobre de: Mulheres portuguesas na Resistência; Seara Nova, Lisboa 1975.

PEREIRA, José Pacheco: Estudos sobre o comunismo -  9 -6 -2006, 16 - 5 -2004

http://irenepimentel.blogspot.pt/

http://www.diarioliberdade.org/index.php :O PCP, a PIDE e a homossexualidade

TAVARES, Manuela: Feminismos: Percursos e Desafios. Texto Editores L.da , Lisboa 2010



domingo, 24 de julho de 2022

 

São Nicolau Tolentino

  cerca de um ano, uma senhora amiga  falou-me de uma imagem de um santo que tinha em casa. Pela forma como o descreveu, despertou em mim intensa curiosidade, o que me levou a pedir que me deixasse ver essa peça.

A curiosidade foi satisfeita, permitindo-me a proprietária fotografar o santo que guardava sobre uma pequena mesa num dos cantos da sua sala de jantar.




A estatueta tem cerca de 1,20 m de altura, é extremamente pesada, e, embora pintada, tudo nos leva a crer que é de pedra maciça.


Na mão direita tem um tubo oco, onde estaria inserido outra peça entretanto desaparecida.

Na mão esquerda, uma ave (aparente uma perdiz) pousada sobre um livro.

A imagem já não tem a pintura original. Foi  “recuperada” por curiosos pouco respeitadores das cores iniciais.

Perguntamos à actual proprietária como é que a imagem tinha chegado à sua posse. Contou-nos que no fim do séc. XIX, ou no início do séc. XX, o avô do seu marido tinha encontrado a imagem nuns pinhais próximos da Mata do Bussaco e levou-a para sua casa onde permaneceu muitos anos. 

A imagem esteve em risco de ser destruída por volta dos anos 90 do séc. XX porque alguns descendentes do homem que a encontrara aderiram às  Testemunhas de Jeová. Valeu a decisão do marido da nossa amiga, que impediu a destruição e trouxe para sua casa a peça em causa, onde permaneceu até hoje.

A atual proprietária terá descrito a imagem a um antigo patrão em França, que depois de investigar nos seus livros lhe disse tratar-se de S. Nicolau Tolentino, e lhe ofereceu uma considerável quantia de dinheiro para o adquirir, mesmo sem nunca o ter visto.

Confessamos que a nossa literacia em matéria religiosa é bastante limitada, pelo que decidimos mostrar as fotografias ao Sr. Pedro Cancela de Abreu, reconhecida autoridade em matéria de arte e do seu restauro. Com grande simpatia, deu-nos a opinião de tratar-se de uma peça antiga, possivelmente do sec. XVII ou XVIII e concorda que se trata de S. Nicolau Tolentino. Cedeu-nos também alguns extratos de livros da sua biblioteca privada que aqui transcrevemos. 





Tomando como certa a identificação da imagem, surgiu-nos a dúvida sobre o motivo que levaria à descoberta da imagem de S. Nicolau Tolentino em zona de arborizada, próxima da mata do Bussaco. É claro que não dispomos de informações que nos permitam estabelecer uma teoria minimamente fundamentada, mas não resistimos à tentação de adiantar uma hipótese, sem esperança de a poder desenvolver.

Sabemos que Luís Rodrigues, natural de Santa Cristina, da freguesia de Espinho do concelho de Mortágua era  um fervoroso crente que, não sendo monge,  prestava assistência secular ao Convento dos Carmelitas do Bussaco. Mandou construir uma capela, exterior aos muros do “deserto”, denominada Capela do Encarnadouro (ou Emcarradouro), também conhecida por Capela das Almas, próxima da Porta da Rainha.

S. Nicolau Tolentino é conhecido como advogado das Almas do Purgatório, pelo que lhe seria provavelmente consagrada a Capela das Almas. É possível que a imagem de que atrás falamos, fosse adquirida com a finalidade de ser colocada na capela.

Ao que sabemos, Luís Rodrigues faleceu sem ver concluída a sua obra. Poucos anos depois, em 1810, durante a 3ª invasão francesa, a Capela das Almas foi utilizada para tratamento pelos frades dos feridos de guerra de ambos os exércitos.

A capela foi depois votada ao abandono e degradou-se progressivamente, até que em 1871 foi recuperada e construído o Museu Militar no terreno adjacente. Foi benzida em 1876, consagrada a N.ª Sr.ª da Vitória e às Almas.

Quanto ao nosso S. Nicolau Tolentino é bem possível que o seu detentor à data da 3ª invasão francesa, temendo a rapina ou a barbárie do exército invasor, a tenha escondido na mata, em local bem recatado, só conhecido dos intervenientes. O seu falecimento, natural ou resultante da guerra, equivalia ao desaparecimento dos objetos por tempo indeterminado, até que alguém acidentalmente os encontrasse, por vezes ao fim de muitos anos, quando já ninguém deles tivesse memória.

Sem certeza, pensamos ser esta a história desta imagem de S. Nicolau Tolentino.