Dr.
Assis e Santos e a História de Mortágua
Depois de alguns anos de esquecimento, temos
assistido recentemente ao reavivamento da memória do Dr. Assis dos Santos, por
iniciativa da autarquia, pretendendo salientar a sua actividade como médico e
como historiador do
concelho de Mortágua.
Como médico, pretende-se evidenciar a sua
permanente disponibilidade e bondade, referindo que ia ver doentes a todo lado,
deslocando-se a pé, e nunca cobrava dinheiro a ninguém.
A verdade é que era o único médico de Mortágua que tinha
ordenado pago pelo Estado, dada a sua função de Subdelegado de Saúde. Antes de
vir para a vila de Mortágua, esteve colocado como médico de partido em Espinho,
e como tal recebia da autarquia.
Como historiador de Mortágua, escreveu vários livros
que temos alguma dificuldade em avaliar, uma vez que não temos formação
suficiente em Geologia e História. No entanto notamos que nos seus escritos
nunca cita as fontes que alimentam a sua sabedoria em campos que não são os seus, o que não costuma ser bom
sinal. Temos a certeza que não teria tempo, nem meios, para investigar tudo
aquilo que afirma, sem recorrer a textos de outros autores especializados.
Não deixa de ser interessante verificar que alguma
da produção intelectual de Assis dos Santos é sistemática e voluntariamente
omitida pelos actuais biógrafos. De facto, Assis e Santos foi durante muitos
anos o escriba de serviço dos salazaristas de Mortágua, que lhe encomendavam escritos
e discursos. Um deles “O Nacionalismo
Português na História Contemporânea”, é uma conferência lida em 28 de Maio
de 1947 na Câmara Municipal de Mortágua, por solicitação do seu presidente. Outro
trabalho “Comunicações Rodoviárias entre
a Beira Alta e a Beira Litoral Através de Mortágua”, escrito por ele, foi
entregue ao Ministro das Obras Públicas em 10 de Julho de 1947, em sessão
solene na Câmara Municipal. Podemos
também referir “As primeiras navegações oceânicas”, uma conferência pronunciada em
4 de Março de 1960, por solicitação do Presidente da Câmara de Mortágua, Artur
de Gouveia Leitão.
O próprio “O pelourinho de Mortágua” foi escrito
por encomenda do presidente da Câmara, Dr. António Abreu, em 1940, para
integrar as comemorações dos centenários da fundação da nacionalidade (1140) e
a restauração da independência (1640).
Homenageado em 7 de Dezembro de 1969, proferiu um
discurso que merece leitura atenta, até porque nos dá ideia da sua
personalidade e o do seu percurso de vida.
Por agora vamos centrar a nossa atenção unicamente
sobre algumas passagens do seu discurso, relativas a médicos de Mortágua:
« Espero que os promotores desta
manifestação compreendam a delicada posição em que me deixam perante a minha
classe tão bem representada neste concelho e que eu não posso exceder em
dedicação, nem na competência, nem na operosidade, para ter direito a especial
consagração pública. Isto quanto aos vivos; porque dos antigos, recordarei três
nomes: o Dr. João Lopes de Morais, Dr. Joaquim Tavares Festas e Dr. Teixeira
Gordo».
«O Dr. Lopes de Morais foi estrénuo lutador
da ideologia liberal na agitada época de D. Maria II. Mas acima de tudo um
abalizado clínico cuja fama chegou à capital. Foi o único médico provinciano
que teve a honra de ser chamado para observar e tratar a rainha. O doutoramento
honorário premiou a cura espectacular da régia enferma».
Logo aqui constatamos várias alusões que não são
verdadeiras. Lopes de Morais não foi um médico provinciano que atingiu um
doutoramento honorário. Antes pelo contrário, seguiu a carreira universitária
que só foi interrompida por motivos políticos.
Uma junta expurgatória, criada pela carta régia de
5 de Dezembro de 1923, propôs a sua exclusão da Universidade em 21 de Junho de
1824, com a seguinte fundamentação:
« João
Lopes de Moraes, opositor em medicina. Reconhecendo a pluralidade da juncta que
este opositor é dos mais distinctos da sua faculdade, não poude resistir á fama
das notícias, de que elle é tido por impio no districto de Mortagua, onde elle
costuma residir; e por isso fez tirar informações por alguns membros da juncta,
e viu que todas coincidiam com aquellas primeiras notícias , e acrescentavam
factos demonstrativos das suas opiniões em assumptos religiosos.»
(Carvalho, Joaquim Martins de :“Apontamentos para a Historia Contemporanea”. Imprensa da
Universidade. Coimbra 1868)
Esta exclusão não viria a
acontecer, nessa altura, por entretanto ter sido publicada uma amnistia em 5 de
Junho de 1824.
Em 1928, os docentes que
defendiam ideias liberais foram demitidos da Universidade, encontrando-se entre
eles Lopes de Morais.
Em Julho de 1834 foram exonerados
os professores promovidos por D. Miguel, e readmitidos os lentes e opositores
que a intolerância política tinha afastado da Universidade, e perseguido.
João Lopes de Morais é
reintegrado como lente e passa a reger a cadeira de Aforismos.
Solicitou e obteve a jubilação em
1855.
Sobre as suas qualidades como
clínico, escreve Bernardo Mirabeau:
«Já por então era o dr. João Lopes conhecido em quasi todo o reino como
practico, de quem se contavam successos clínicos de muita felicidade. Os
serviços médicos, que prestou em Almeida, augmentaram-lhe a reputação, e até
lhe conciliaram as svmpathias dos adversarios políticos.»…..
«Gozou o dr. João Lopes de Moraes de
subidos créditos como medico e professor. Aquella fronte saliente, que parecia
comprimir e diflicultar a mobilidade dos olhos, revelava grande intelligencia e
profunda reflexão. E de facto eram estas as faculdades que predominavam no dr.
João Lopes, e que elle desinvolveu por meio de aturado estudo sobre os livros e
de longa experiencia do mundo. Não deixou escriptos por onde os vindouros
possam aquilatar o seu mérito scientifico, mas deixou no professorado um nome
illustre e de tal reputação, que muitos o appellidaram o Hippocrates portuguez
da nossa edade »
( Memoria historica e commemorativa
da Faculdade de Medicina nos cem anos decorridos desde a reforma da
Universidade em 1772 até o presente . Autor: Mirabeau,
Bernardo Antonio Serra de, 1826-1903
Publicado por: Imprensa da Universidade . Coimbra 1872 )
« A
descoberta das suas virtudes therapeuticas deve-se a um médico d’aquelles
sítios, assistente na Lameira de S. Pedro, José António de Moraes, clínico
distincto, que d’alli foi chamado ao Paço, e curou d’uma moléstia grave a
Senhora D. Maria I, que o brindou com o habito de Christo, com o privilegio da
casa Real, e com as honras de lente da Universidade.*
* Este
facto é geralmente asseverado pelos contemporâneos e parentes d’este medico;
mas nunca vi os documentos respectivos. Na Nobiliarchia
Médica do sr. Francisco António Martins Bastos, também não vejo o nome
d’este medico no catalogo dos facultativos que fizeram serviços à Senhora D.
Maria I »
Assis e Santos
refere-se à prisão de João Lopes de Morais, com a falta de rigor a que
nos vamos habituando:
«Um vai-vem da política da época, lançou-o
num calabouço militar – a fortaleza de Almeida – onde permaneceu um ano. »
«Tão
lisonjeiras esperanças foram em 1826 engodadas com a Carta aonde os bons
portuguezes bebião outras d’uma sabia e justa Legislação que segurasse a cada
um seu Direito, tranquilisasse os bons e reprimisse os máos: porém o resultado
foi em 1828, por seis anos consecutivos tragarem o caliz d’uma perseguição
horrorosa sem mais motivo nem fim, do que destruir tudo o que cheirava a
constitucional para impossibilitar a volta da Rainha e da Carta, que seus
inimigos tanto temião como odiavam. Por
desgraça ou por fortuna todos provarão mais ou menos deste amargoso caliz, e o
supplicante foi culpado e prêso, e por
muitas vezes roubado em sua casa, abandonada com dois tenros filhos, que teve a
fortuna de ver depois de 4 para 5 annos de prisão, donde soube escapar-se com
honra e com a coragem cívica, que não é fácil encontrar em situação tão
arriscada. Excitados por desenlace tão contrario às suas esperanças d’acabar
com o supplicante e receosos os seus primeiros e últimos perseguidores, aliás públicos e encarniçados inimigos de
todos os constitucionais, depois de toda a qualidade de danno e afronta, feita
durante a usurpação á casa, pessoa e família do Supplicante tratarão então de
assassinar o supplicante, convidando para isso um criado seu, com promessas de
dinheiro e outras, e recorrendo na falta deste a soldados, que
públicamente roubárão de novo o
Supplicante, cuja vigilância o salvou da morte, passando-se para o Porto com
todo o custo e risco.»
Como podemos ver, Assis e Santos
foi misericordioso e libertou Lopes de Morais ao fim de um ano…
Mas, entretanto, atribuiu-lhe uma
descoberta terapêutica:
«Atacado
de reumatismo desde então, lembrou-se de procurar alívio numa cura
hidro-mineral. A água do Luso foi a escolhida. Mandou construir uma barraca à
beira da fonte para uma série de banhos. Tão benéficos lhe pareceram que voltou
ano após ano e passou a recomendar aos doentes igual tratamento. Dessas
barracas dos doentes de Dr. Lopes de Morais, nasceu o primeiro balneário do
Luso.»
« A descoberta das suas virtudes
therapeuticas deve-se a um médico d’aquelles sítios, assistente na Lameira de
S. Pedro, José António de Moraes, clínico distincto……
Foi este médico, que para alli encaminhou
os primeiros doentes em 1775, pouco mais ou menos. Fez os primeiros ensaios nas
moléstias cutâneas; e ainda há noticia d’uma Anna d’Anadia, então criada de
servir em Aguim, a quem estes banhos fizeram desapparecer alguns tubérculos da
face, dizem que filhos de elephantíase dos gregos.
Por aquelle tempo fez cobrir os banhos de
ramagem em forma de barraca; e, pouco depois, mandou construir pelos seus
criados a primeira barraca de madeira. Ainda em 1848 morreu em Luso, de noventa
e tantos anos, um dos criados, Manuel Galvão, que ajudou a este serviço.
…..Em 1838 a camara municipal da Mealhada, com os recursos de que podia dispor, substituiu as barracas de madeira por uma casa de alvenaria.
Mais uma vez, Costa Simões vem contrariar o que acima foi dito:
« O
notável jornalista Emídio Navarro impulsionou o desenvolvimento do Luso que lhe
patenteou o reconhecimento público.
Mas o percursor da importante estância
termal, de turismo e de veraneio, que agora o Luso é, foi o médico mortaguense
que descobriu o valor curativo daquela antiquíssima fonte.
Esforçado cidadão e abalizado clínico, ele
bem mereceu o reconhecimento do seu concelho.»
Estamos completamente de acordo quanto ao
reconhecimento devido ao cidadão, ao médico e ao Professor de Medicina da
Universidade de Coimbra, João Lopes de Morais. Acreditamos, no entanto, que ele
dispensaria de bom grado as considerações fantasiosas do Dr. Assis.
Muitos doentes de Mortágua têm procurado no Caramulo o alívio para os seus males.
Mas poucos saberão que foi um médico de Mortágua que descobriu o valor do clima do Caramulo para o tratamento das doenças pulmonares, que foi uma doente de Mortágua a primeira a experimentá-lo, e que foi um carpinteiro de Mortágua a construir a casa de madeira nas Paredes do Guardão, onde essa primeira doente fez a primeira cura de altitude no Caramulo.
E que daí nasceu a importante vila sanatorial que hoje existe, ilustrada por especialistas de grande reputação como foi o Dr. Tapia, por exemplo.»
2-“ sem
interesse material “- Joaquim Tavares Festas, pelo menos até
1906, era “médico de partido” e recebia do município a quantia de 200 000 réis
por ano. Não temos uma noção real do que representa esta quantia.
3 –“ foi
um médico de Mortágua que descobriu o valor do clima do Caramulo para o
tratamento das doenças pulmonares”Não existindo nessa época, medicamentos com alguma eficácia para o tratamento da tuberculose, no final do sec. XVIII e início do sec. XIX, os médicos recorreram aos sanatórios marítimos para tratar estes doentes.
Em 1832 Francisco de Assis da Souza Vaz, defendeu na sua tese que apresentou em Paris a superioridade do clima da Madeira para tratar a tuberculose por associar a influência do mar e a altitude.
Na década de 1840, George Bodington defendeu a criação de sanatórios de montanha, que só veio a acontecer em 1854 com a abertura dos primeiros sanatórios pelo Dr. Hermann Brehmer na Silésia alemã (Gorbersdorf) e Peter Dettweiler em 1876 em Falkenstein (Alemanha).
Num prefácio às crónicas de Emídio Navarro, publicadas em 1884, sobre uma expedição científica à serra da Estrela, realizada no ano anterior, o médico Sousa Martins abordou a questão do tratamento da tuberculose pelo clima montanhoso e a necessidade de se construir um sanatório de montanha.
De uma expedição anterior, em 1881, já tinha resultado a construção de um Observatório meteorológico, que em 1882 acomodou o primeiro doente, Alfredo César Rodrigues, amigo de Sousa Martins. Em seguida mandou construir uma residência própria, e dois anos depois declarou-se curado.
Ainda foram construídas algumas habitações de madeira, mas os doentes não tinham o apoio médico e logístico necessário.
O
primeiro sanatório de altitude viria a
ser construído na cidade da Guarda. Os terrenos foram comprados em 1901, mas só
foi concluído e inaugurado em 1907, com a presença da família real.
Como
facilmente se percebe, Joaquim Tavares Festas não descobriu coisa nenhuma. Como
médico bem informado das tendências terapêuticas do seu tempo, utilizou os
meios de que dispunha para tentar tratar uma paciente que lhe era querida.
5- a casa de madeira nas Paredes do Guardão
…E que daí nasceu a importante vila sanatorial que hoje existe, ilustrada por
especialistas de grande reputação como foi o Dr. Tapia, por exemplo.”.
A
disponibilidade económica familiar permitiu que fosse construída uma casa de
madeira nas Paredes de Guardão, à semelhança do que existia na Suiça e onde a paciente pode
aproveitar as vantagens da altitude. A família ainda hoje tem um serviço de
louça com a imagem dessa casa de Guardão.
Em 1922,
a Sociedade do Caramulo, constituída por Jerónimo Lacerda, construiu um Hotel
que seria o início de uma estrutura que atingiria quase duas dezenas de
sanatórios, dotada de todas as infra-estruturas necessárias ao seu bom
funcionamento.
Se
Jerónimo Lacerda se inspirou em Joaquim Tavares Festas, não o podemos afirmar
nem negar.
Quanto
ao Dr. Tápia, ilustre tisiologista espanhol, chegou a Portugal fugido da Guerra
de Espanha e do ditador Franco.
Talvez o lente da Universidade tivesse interesse pessoal na abertura dessa estrada, mas ficaram beneficiadas para sempre, as povoações do Reguengo e foi esse o ponto de partida para a estrada do Caramulo. Apenas uma fotografia recorda, na casa de Vila Moinhos que foi dele, a sua existência.»
Não conseguimos apurar se é verdadeira a sua
influência na construção da referida estrada.
Mas ficamos com a certeza que o Dr. José Feliciano
da Fonseca Teixeira Gordo nunca foi
médico.Em 1915 “ Jose Feliciano da Fonseca Teixeira Gordo , filho de Manoel Gomes André , natural de Villa Moinhos , Comarca de Viseu” estava matriculado no quarto ano de Leis ** da Universidade de Coimbra, conforme consta da “ Relação e Indice Alfabético dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra no Anno Lectivo de 1815 para 1816”.
** A Faculdade de Leis existiu até 1836. Em 5 de Dezembro de 1836, foi publicado um Decreto que fundiu na Faculdade de Direito as faculdades de Cânones e de Leis.
Consultamos o livro MEMORIA PROFESSORUM
UNIVERSITATIS CONIMBRICENSIS , 1772-1937, VOL.II. Direcção:
Manuel Augusto Rodrigues. Arquivo da
Universidade de Coimbra. Coimbra 1992, que nos informou:
“GORDO, José Feliciano da Fonseca TeixeiraNaturalidade – Vila Meã (Sobral, Mortágua), 26.8.1793 – Coimbra, 14.11.1867.
Filiação –
Manuel André e Maria Rodrigues da Fonseca.
Matrículas –
31.12.1812
Graus –
Bacharel, 11.6.1816. Licenciado, 26.6.1818, Doutor, 12.7.1818
Cadeiras –
História do Direito Romano e Pátrio (1830-1834), 2º substituto.
Observações –
Abandonou a Universidade em 1834, por não querer aceitar o regime liberal.”
Quanto a este abandono da
Universidade, José Adelino Maltez, dá-nos uma achega em texto intitulado Saneamento de Professores,
publicado em maltez.info/aaanetnovabiografia/Conceitos/Saneamento%20de%20Professores.htm “
“……Em 15 de Julho de 1834 eram
demitidos inúmeros doutores em direito: Alexandre Dias Pessoa, Bernardo José de
Carvalho, António Caetano de Sousa Faria Lobo Girão, Miguel Gomes Soares,
Cândido Rodrigues Alves de Figueiredo e Lima, José Pedro Moniz de Figueiredo,
António Vasconcelos e Sousa, José Maria de Lima e Lemos, José Lopes Galvão, Joaquim
José Pais da Silva, José Feliciano da
Fonseca Teixeira*, Francisco Lebre de Vasconcelos, Joaquim Maria Taborda
Falcão Tavares.
Por decreto do dia anterior
nomeiam-se Basílio Alberto de Sousa Pinto, Manuel António Coelho da Rocha, José
Machado de Abreu, Francisco Maria Tavares de Carvalho, Frederico de Azevedo
Faro Noronha e Meneses, António Nunes de Carvalho.
Os pedristas demitem os miguelistas,
tal como antes os apostólicos haviam demitido os liberais. …. “
*O autor, provavelmente de modo involuntário, omitiu o
sobrenome Gordo.
Pelo que nos diz José Adelino Maltez, o abandono
não foi propriamente voluntário.