Carta de Foral de 1192
Um
amigo fez-nos chegar à mão uma versão dactilografada, e já
vertida para um português mais recente, que pensamos ser interessante divulgar. Dado, que mesmo com uma grafia actualizada,
são utilizados termos que caíram em desuso, ou são hoje pouco usados,
acrescentamos algumas notas para permitir uma melhor compreensão do texto.
Esperamos que vos agrade conhecer este
documento histórico de Mortágua.
«Carta
de Foral, concedida a Mortágua em 1192,
existente no Fundo da Colegiada de
S. Cristóvão de Coimbra do Arquivo Público
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo. Ámen. Eu, Dulce, Rainha de Portugal por graça de Deus, faço, por
autoridade e mandato do Rei D. Sancho e de meus filhos e filhas, uma carta de
foral a todos aqueles homens de Mortágua que ali habitam e venham a povoá-la.
Dou-lhes por foro que o homem que cometa furto pague nove por um, e fique o seu
corpo na posse do senhor da terra. Quem cometer homicídio pague 60 soldos. Quem
fizer rousso1 pague 60
soldos. Quem puser merda na boca de um homem-bom2, para o insultar pague 60 soldos. Quem fizer sangue
com ferro mudo3 a um
homem-bom, com vozearia, e for descoberto, pague 30 soldos. Que puxar de armas
devido a ira, mas não acometer com elas, perca a arma. Quem levar à força um
penhor ao criado de um homem-bom, perca o penhor que lhe levou. Quem matar um
criado pague 12 maravedis 4,
e fique o seu corpo no poder do senhor da terra. Quem atacar um saião 5 andador 6 pague seis maravedis.
Quem matar um juiz pague 12 maravedis. Darão de jugada de um casal um módio
terçado: a terça parte de trigo, a terça de milho, e a terça de aveia. Os
serviçais darão, por sua vez, uma teiga 7.
Darão por ano, do foro do reguengo do Soveral, duas fogaças de almude 8 e dois capões. Quem tiver
espádua 9 da-la-á com um
capão, e se não a tiver dará dois capões. Quem tiver uma vinha e depois mandar
as uvas ao lagar dará uma décima parte. Quem quiser manter o imposto de cavalaria,
assim o faça. E se não o quiser, dê a jugada10. O almocreve que viver da almocrevaria faça antes uma
caminhada por ano. O peão de Mortágua faça o caminho diário, a mandado do seu
senhor, e faça também o seu fossado 11.
Quem vender a sua herdade ou sua fazenda, dê o dízimo do preço ao senhor da
terra, e venda-a a um homem que pratique foro semelhante. Darão as portagens
por seu foro, conforme os costumes da terra. Pagarão foro de todas as outras
herdades que estão no termo de Mortágua. Quem lavrar uma herdade de outro casal
dará a quinta parte. O homem que quiser afastar-se e ir habitar para outra
terra, despache-se perante o juiz pelo S. João, e vá-se até à festa de S.
Miguel. Os homens malfeitores ou sandeus12
ficarão sob o poder do senhor da terra. Se a rainha descobrir que alguma coisa,
por esquecimento, não conste dos seus foros, faça inquirição, sem o que não
será feita esta carta. Quem invadir a casa de qualquer homem-bom de Mortágua e
ali for descoberto, pague 60 soldos. Que entrar por ira, sem qualquer criado,
duplique o que dali desviou. Quem observar esta carta tenha a bênção de Deus.
Esta carta fez-se no mês de Setembro da era de 1230 (1192). Eu, Dulce, acima
nomeada, que mandei fazer esta carta por mandato do Rei D. Sancho e de meus
filhos e filhas, roboro-a 13
na presença destes homens e aponho-lhe este sinal. Estiveram presentes
Gonçalo Mendes, Mordomo da Corte. D. João Fernandes, Alcaide de Coimbra. Rui
Mendes, Porta-Estandarte. D. Julião, Chanceler do Rei. Raimundo Eanes, Pero
Gomes. O Rei D. Sancho confirma-a. A Rainha D. Dulce confirma-a. O Rei
(Infante) D. Afonso confirma-a. O Rei (Infante) D. Pedro confirma-a. O Rei
(Infante) D. Fernando confirma-a. A Rainha (Infanta) D. Sancha confirma-a, e as
outras filhas confirmam-na. Pero Soares, Bispo de Coimbra. Estêvão Martins,
Alvazil 14 de Coimbra. Mestre
Mendo, médico do Rei. Pedro, presbítero, escrivão. A Rainha. »
Notas
:
1 Violação
2
Habitantes com relevância social, por
possuírem bens, ou por exercerem ofícios não manuais.
3 “Ferro moludo , ou ferro mudo. O mesmo que Ferro moído. E chamárão-lhe
assim, porque as ferramentas são trabalhadas na mó,ou pedra de affiar muito bem
, primeiro que hajão de servir. E por isso ainda hoje dizemos Amolar, por aguçar
, ou affiar na mó, ou outra pedra , que adelgace os instrumentos de cortar ,
dividir , ou penetrar.
4 "Moeda
de ouro, também chamada morabitino. Em Portugal as primeiras foram cunhadas no
reinado de D. Sancho I.” (in Elucidario
das palavras, termos , e frases, que antiguamente se usárão, e que hoje
regularmente se ignorão . Joaquim de Santa Rosa Viterbo 1798)
5 Carrasco.
Verdugo,
algoz.
6 Itinerante. Moço que leva recados
7 Antiga
medida de secos, com diversos valores
8 Um almude de trigo de Fogaça correspondia a 2
alqueires (Viterbo 1798)
9 “SPADOA. Entrecosto de porco. Era como se
estipulava: de sete, de oito, de nove, de dez ou de doze costas, ou costelas. E
outras vezes era «huma spadoa com todas sus costas». Assim conta de muitos
prazos e arrendamentos do seculo XIII, XIV e XV.” (Viterbo 1798)
“ PRAZO. Obrigação, qualquer
escritura, concerto, ajuste.” (Viterbo 1798)
10 Tributo cobrado pelo rei aos
possuidores de certas terras, que consistia em determinada quantidade de
frutos, na razão de cada jugo ou junta de boi com que o agricultor lavrava a
terra, ou de pão. (Segundo Houaiss)
11 Serviço militar medieval cuja prestação respeitava
normas estabelecidas pelo foral ou pelo costume da terra
12
Estúpido, idiota, imbecil, pateta, mentecapto.
(A
palavra sandeu
tem origem na exclamação "Santo Deus!" in Blog Língua à portuguesa. S.Duarte e S.Leite)
13 "Roborar- firmar de novo, confirmar por
um instrumento publico o que já tinha sido dito " (Viterbo 1798)
14 “Juiz ordinário, e que decidia as causas na primeira
Instancia , admittindo Appellação , e aggravo nos casos, que a Lei o permittia.” (Viterbo 1798)
“Vereador da Camera. Nesta accepção he frequente , desde
El-Rei D. Sancho I. até El-Rei D. João I. , e mesmo por qualquer outro Official
do Concelho” (Viterbo 1798)
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