quinta-feira, 7 de julho de 2016


Carta de Foral de 1192

Um amigo fez-nos chegar à mão uma versão dactilografada, e  já vertida para um português mais recente, que pensamos ser interessante divulgar.  Dado, que mesmo com uma grafia actualizada, são utilizados termos que caíram em desuso, ou são hoje pouco usados, acrescentamos algumas notas para permitir uma melhor compreensão do texto. Esperamos que  vos agrade conhecer este documento histórico de Mortágua.

 «Carta de Foral, concedida a Mortágua em 1192,
existente no Fundo da Colegiada de S. Cristóvão de Coimbra do Arquivo Público

 Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ámen. Eu, Dulce, Rainha de Portugal por graça de Deus, faço, por autoridade e mandato do Rei D. Sancho e de meus filhos e filhas, uma carta de foral a todos aqueles homens de Mortágua que ali habitam e venham a povoá-la. Dou-lhes por foro que o homem que cometa furto pague nove por um, e fique o seu corpo na posse do senhor da terra. Quem cometer homicídio pague 60 soldos. Quem fizer rousso1 pague 60 soldos. Quem puser merda na boca de um homem-bom2, para o insultar pague 60 soldos. Quem fizer sangue com ferro mudo3 a um homem-bom, com vozearia, e for descoberto, pague 30 soldos. Que puxar de armas devido a ira, mas não acometer com elas, perca a arma. Quem levar à força um penhor ao criado de um homem-bom, perca o penhor que lhe levou. Quem matar um criado pague 12 maravedis 4, e fique o seu corpo no poder do senhor da terra. Quem atacar um saião 5 andador 6 pague seis maravedis. Quem matar um juiz pague 12 maravedis. Darão de jugada de um casal um módio terçado: a terça parte de trigo, a terça de milho, e a terça de aveia. Os serviçais darão, por sua vez, uma teiga 7. Darão por ano, do foro do reguengo do Soveral, duas fogaças de almude 8 e dois capões. Quem tiver espádua 9 da-la-á com um capão, e se não a tiver dará dois capões. Quem tiver uma vinha e depois mandar as uvas ao lagar dará uma décima parte. Quem quiser manter o imposto de cavalaria, assim o faça. E se não o quiser, dê a jugada10. O almocreve que viver da almocrevaria faça antes uma caminhada por ano. O peão de Mortágua faça o caminho diário, a mandado do seu senhor, e faça também o seu fossado 11. Quem vender a sua herdade ou sua fazenda, dê o dízimo do preço ao senhor da terra, e venda-a a um homem que pratique foro semelhante. Darão as portagens por seu foro, conforme os costumes da terra. Pagarão foro de todas as outras herdades que estão no termo de Mortágua. Quem lavrar uma herdade de outro casal dará a quinta parte. O homem que quiser afastar-se e ir habitar para outra terra, despache-se perante o juiz pelo S. João, e vá-se até à festa de S. Miguel. Os homens malfeitores ou sandeus12 ficarão sob o poder do senhor da terra. Se a rainha descobrir que alguma coisa, por esquecimento, não conste dos seus foros, faça inquirição, sem o que não será feita esta carta. Quem invadir a casa de qualquer homem-bom de Mortágua e ali for descoberto, pague 60 soldos. Que entrar por ira, sem qualquer criado, duplique o que dali desviou. Quem observar esta carta tenha a bênção de Deus. Esta carta fez-se no mês de Setembro da era de 1230 (1192). Eu, Dulce, acima nomeada, que mandei fazer esta carta por mandato do Rei D. Sancho e de meus filhos e filhas, roboro-a 13 na presença destes homens e aponho-lhe este sinal. Estiveram presentes Gonçalo Mendes, Mordomo da Corte. D. João Fernandes, Alcaide de Coimbra. Rui Mendes, Porta-Estandarte. D. Julião, Chanceler do Rei. Raimundo Eanes, Pero Gomes. O Rei D. Sancho confirma-a. A Rainha D. Dulce confirma-a. O Rei (Infante) D. Afonso confirma-a. O Rei (Infante) D. Pedro confirma-a. O Rei (Infante) D. Fernando confirma-a. A Rainha (Infanta) D. Sancha confirma-a, e as outras filhas confirmam-na. Pero Soares, Bispo de Coimbra. Estêvão Martins, Alvazil 14  de Coimbra. Mestre Mendo, médico do Rei. Pedro, presbítero, escrivão. A Rainha. »

 

 Notas :

1  Violação

2  Habitantes com relevância social, por possuírem bens, ou por exercerem ofícios não manuais.

3 “Ferro moludo , ou ferro mudo. O mesmo que Ferro moído. E chamárão-lhe assim, porque as ferramentas são trabalhadas na mó,ou pedra de affiar muito bem , primeiro que hajão de servir. E por isso ainda hoje dizemos Amolar, por aguçar , ou affiar na mó, ou outra pedra , que adelgace os instrumentos de cortar , dividir , ou penetrar.

"Moeda de ouro, também chamada morabitino. Em Portugal as primeiras foram cunhadas no reinado de D. Sancho I.” (in Elucidario das palavras, termos , e frases, que antiguamente se usárão, e que hoje regularmente se ignorão . Joaquim de Santa Rosa Viterbo 1798)

5  Carrasco. Verdugo, algoz.

6 Itinerante. Moço que leva recados

7 Antiga medida de secos, com diversos valores

 
 8 Um almude de trigo de Fogaça correspondia a 2 alqueires (Viterbo 1798)

9 “SPADOA. Entrecosto de porco. Era como se estipulava: de sete, de oito, de nove, de dez ou de doze costas, ou costelas. E outras vezes era «huma spadoa com todas sus costas». Assim conta de muitos prazos e arrendamentos do seculo XIII, XIV e XV.” (Viterbo 1798)

“ PRAZO. Obrigação, qualquer escritura, concerto, ajuste.” (Viterbo 1798)

10  Tributo cobrado pelo rei aos possuidores de certas terras, que consistia em determinada quantidade de frutos, na razão de cada jugo ou junta de boi com que o agricultor lavrava a terra, ou de pão. (Segundo Houaiss)

11 Serviço militar medieval cuja prestação respeitava normas estabelecidas pelo foral ou pelo costume da terra

 
12  Estúpido, idiota, imbecil, pateta, mentecapto.
(A palavra sandeu tem origem na exclamação "Santo Deus!" in Blog Língua à portuguesa. S.Duarte e S.Leite)

 
13 "Roborar- firmar de novo, confirmar por um instrumento publico o que já tinha sido dito " (Viterbo 1798)

14 Juiz ordinário, e que decidia as causas na primeira Instancia , admittindo Appellação , e aggravo nos casos, que a Lei o permittia.” (Viterbo 1798)

Vereador da Camera. Nesta accepção he frequente , desde El-Rei D. Sancho I. até El-Rei D. João I. , e mesmo por qualquer outro Official do Concelho” (Viterbo 1798)

Sem comentários:

Enviar um comentário