sábado, 2 de julho de 2016


Capitão Nuno Cruz – 1

Palestrante, poeta e contista

Nuno Cerqueira Machado Cruz, natural de Ponte da Barca, distrito de Viana do Castelo, estava matriculado no 2º ano de Direito da Universidade de Coimbra em 1913, ano em que proferiu uma palestra alusiva à árvore, na Marmeleira, na primeira Festa da Árvore ali realizada, que se seguiu à 1ª conferência do Centro Democrático de Educação Popular.
Este foi o primeiro contacto  com a Marmeleira de que temos  conhecimento.
Mas logo no ano seguinte, o jornal Sol Nascente de 12 de Abril de 1914, o primeiro da 2ª aparição, noticiava:

«Encontra-se na Marmeleira a passar as ferias de Paschoa em nossa casa o académico do 3º ano de Direito da Universidade de Coimbra, Nuno Cruz»

O nº 10 do Sol Nascente, de 29 de Novembro de 1914, publica um soneto de Nuno Cruz:

MISSA PAGÃ

Os galos são diáconos festivos
Cantando o introito  a força de pulmão;
No altar das serras há respledor´s vivos,
E os rios vão resando uma oração.

 Gloria in excelsis; dos altar’s mussivos
O sol, hostia de sangue, num clarão

Ergueu-se e vae subindo aos ceus altivos,

E já o festeja toda a creação…

 
Mas desce, chega a hora, o sacrifício;
Combatera, vencera o mal e o vício;

E ás avesinhas que o cantaram desde

 
Que ele se erguera pr’a abençoar o mundo

Grita ao cair, já roxo, moribundo,

No mais doirado: Ité, missa est.

 
Nuno Cruz

 O mesmo número do Sol Nascente publica um conto deste autor:
« O carvalho dos franceses
Já que agora o assunto forçado de qualquer palestra é a guerra, deixem-me contar-lhes um episódio que se deu aqui nesta moinha terra no tempo das invasões francesas.
Foi por aquele tempo que os franceses, destroçados, rotos, famintos, em retiradas sem ordem, se tresmalhavam e perdiam e por todo este país sados, objectos de imensas montarias, até caírem a uma surriada de tiros, ou cortados a foice roçadeira.
Num belo dia, dois desses desgraçados, atravessaram por esta terra, fugindo para a fronteira, em demanda talvez dalgum corpo francez que estivesse na Galiza.
Vinham a pé, rotos, abatidos, o ar cançado, cheios de desanimo, e já pelos campos e casaes porque passavam eram espreitados com uma curiosidade, uma desconfiança hostil, inquietante.
Seriam franceses? Seriam jacobinos?
Uma rapariga passou por eles, no caminho batido de sol; trazia à cabeça uma cesta que uma toalha alva recobria; era talvez a merenda, o pão, a sardinha, o naco de carne para algum trabalhador que mourejava no monte; e então um deles, o mais novo, mais desesperado, dirigiu-se-lhe suplicante.
Um bocado de pão, uma sardinha salgada, qualquer coisa lhes saberia tão bem, naquela longa fome que eles vinham curtindo por aqueles infindáveis caminhos!
Mas como fazer-se entender, se nenhum deles tinha sido capaz em toda a campanha de aprender o portuguez, e aquela rapariga, por certo ignorante, ali naquela aldeia perdida entre montes, com certeza lhes não compreendia também a sua língua?
Suplicante, estendeu as mãos, grunhiu dois gemidos que a fome lhe ensinou, apontou para a cesta; mas a rapariga que mal os vira tinha parado, hesitante, levando as mãos ao cesto, quando o viu dirigir-se-lhe voltou as costas e partiu a fugir, gritando.

São os franceses! São os franceses.

Os dois surpreendidos, entreolharam-se; e como nesse momento mesmo tivessem rematado um grande crime, começaram também a fugir, espavoridos.
Já se ouviam gritos nuns casaes próximos, começavam homens armados a aparecer no caminho, a batida preparava-se, já algumas mulheres corriam açudadas para a egreja, no monte, para tocar a rebate.
Começava a montaria.
E numa ancia suprema de defender a vida os dois foragidos, ofegantes, corriam cosidos com os muros das bouças, agachavam-se nos silvados, escondiam-se de gatas, a arfar, nas moitas de tojo arnal que os rasgava mais.
Mas do alto d’uma pedra um garoto via-os, gritava e, já em baixo se ouvia o clamor dos perseguidores; largavam então pelo monte acima, e cortavam as mão nas arestas vivas do granito para se içarem ao alto duns penedos, quando, em cima deram de cara com um logar de casaes juntos, negros no seu granito velho, que espreitavam entre macieiras e cerdeiras.
Em baixo o povo rugia, não se viam ainda os perseguidores, ocultos em caminhos ravinosos, na dobra do monte, ou escondidos pelos carvalhaes espessos que ondeavam por aquela costa abaixo, mas ouvia-se, subindo, o seu vozear enfurecido, e os tiros que de quando em quando disparavam, a chamar gente.
Os dois, no alto do rochedo, pararam, a suar, ofegantes. As fontes latejavam-lhes, zumbiam-lhes os ouvidos, as pernas fraquejavam-lhes, a vista, nos olhos empapados, varria-se-lhes.
Tanta fome, tanta privação, tanto cansaço, tão ofegantes correrias e afinal para quê?
Valer-lhes-ia a pena tanto sacrifício para conservar aquela miserável vida que tantas vezes tinham exposto, em combates, por toda a Europa?
Mas de repente, lá do alto, muito claras, muito vibrantes, as badaladas do sino a rebate começaram a cahir, vingativas e fulminantes como pedras que os garotos atirassem do alto.
Nos casaes próximos também o reboliço começou, e então os dois mais pálidos, mais desesperados, mais perdidos, precipitaram-se pelo monte abaixo.
E foi então uma correria desenganada, galgando corregos, saltando valados, sulcando milhaes, tropeçando em pedras, escondendo-se, descobertos logo, fugindo por entre tiroteios e clamores emquanto lá no alto o sino continuava mais vibrante, mais frenético, mais nervoso a bradar, a chamar gente.

Por fim foram apanhados em baixo, junto à estrada quando tropeçavam e caiam num valado meio oculto com o tojo, e houve logo ali quem apontasse espingardas e erguesse foucinhões.
Alguem lhes valeu contudo, e diante da mó de povo que ia crescendo, medonha, lembrou que se não haviam de matar aqueles jacobinos sem os deixar primeiro confessar-se.
E assim guardados por aquele requinte de vingança, abatidos, resignados, meios mortos, os dois infelizes tiveram que esperar, sentados num muro de pedra solta, três angustiosos quartos d’hora, emquanto se procurava um padre e alguém que soubesse falar francez.
Mas quem é que nesse tempo se atrevia a dizer que sabia francez?
Um padre da Barca, ilustrado e virtuoso, que soube do caso, ofereceu-se-lhes então, e foi mesmo junto a esse muro, os três a pé emquanto a leva de gente se afastava e parava do outro lado da estrada, que ele os ouviu em confissão.
Crimes? Tinham com certeza alguns; tinham talvez ajudado a saquear uma egreja, a levar as pratas de muita casa fidalga; naturalmente qualquer deles tinha matado algum inimigo fóra de combate, e era possível que algum dos dois tivesse tomado parte nalguma dessas atrocidades que os franceses por cá fizeram; mas não foi seguramente disso que eles trataram.
O que eles fizeram, o que eles pediram, socorrendo-se do sacerdote como da sua única prancha de salvação, foi que visse se lhes podia salvar a vida, se conseguia que eles pudessem voltar á França, a essa doce França em que teriam sido tão honestos e tão bons se uma loucura, um capricho imperial os não tivesse arrojado para essa horrorosa vida de batalhas a que tão ansiadamente queriam fugir.
E ao dizer estas coisa, gementes, suplicantes, os olhos castanhos do mais novo evocando uma derradeira vez o seu ridente Béarn luziam de uma esperança nova; e nos olhos claros do mais velho, mais desalentado e triste, por onde perpassara a visão encantada dum interior de família, lá para o norte, as ultimas esperanças que faliam condensavam-se em duas grandes lagrimas que um momento lhe baixaram indecisas, e depois, resignadamente, lhe desceram pelas faces.
O sacerdote, tambem comovido, quis interceder, e afastou-se para se chegar ao povo para lhes falar; mas ainda tinha dado poucos passos e já um dos franceses rolava pelo chão varado de zagalotes.
O outro ainda ajoelhou, ergueu desatinadamente as mãos, balbuciou um merci que ninguém atendeu e logo cahiu sobre o companheiro.
Mais de vinte homens tinham despejado as suas armas carregadas de quartos e peloiros: e como quer que o primeiro, mal ferido, ainda mechesse, estrebuchando num estertor, toda aquela multidão de feras, tendo cheirado o sangue, se precipitou.
Caíram pedras, e foucinhões e varapaus sobre aqueles dois corpos; alguns acabavam-lhes os craneos com as coronhas das espingardas; um revolveu-lhes as entranhas com uma baioneta que tinha guardado das guerras, e ali mesmo enterraram os dois cadáveres quando já o sangue ensopava a terra e massas de carne se começavam a separar do corpo.
No sítio onde eles foram enterrados viceja agora um grande carvalho, a arvore de força magnífica e generosa, cujos ramos, frondejando nas rosa s d’agosto por sobre o coval, parece que estão lembrando para todos os crimes um perdão, e uma proteção para todas as misérias.

Ponte da Barca
           Nuno Cruz »

 Não conhecemos outras peças da sua veia poética,  ou da sua  produção como prosador.

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