quarta-feira, 1 de setembro de 2021

 

“Silva da Madeira”

José Maria Ferreira

Hoje trataremos de uma figura que embora não tenha nada a ver com Mortágua, está intimamente ligado a uma personalidade importante deste concelho.

Na busca de conhecimentos sobre Basílio Lopes Pereira, deparamos com uma figura extraordinária, sobre o qual se conhecem muitos episódios da sua actividade revolucionária, mas cuja identidade real deixa algumas dúvidas, desde logo, o seu nome, a sua naturalidade e residência inicial, as suas habilitações profissionais, o seu aspecto real, etç.

Era conhecido nos meios oposicionistas por “Silva da Madeira”, sem que ninguém soubesse o porquê “da Madeira”.

No livro de João Madeira “1937. O Atentado a Salazar. A Frente Popular em Portugal” o autor identifica-o numa fotografia que consta do “Arquivo Histórico Militar”.


No entanto notamos que a fotografia tem gravado o nome de João Ferreira Costa e Silva, enquanto o autor lhe atribui, tal como os outros autores que a ele se referem, o nome de José Maria Ferreira.

No libelo acusatório do Ministério Público contra Emídio Santana e restantes arguidos responsáveis pelas “bombas dos Ministérios” e pelo atentado contra Salazar, a confusão é patente:

No dia 20 de Janeiro de 1937, das 22 para as 23 horas, os arguidos José ou João Ferreira da Costa e Silva, o «Silva da Madeira», empregado no comércio, de 30 anos, de Lisboa…”

Foi o elemento de ligação entre o Comité da Frente Popular Portuguesa, que estava sediado em Barcelona, e o Comité de Acção em Portugal, e um destemido operacional do sector civil da oposição ao Estado Novo.

 Transcreveremos vários excertos de publicações existentes, tentando dar a imagem global possível deste personagem fantástico, que bem poderia inspirar um filme de acção.


João Madeira, no seu livro dá-nos um valioso conjunto de informações sobre esta interessante figura:

Em 1936 (em plena guerra civil) José Maria Ferreira, conhecido por «Silva da Madeira», foi enviado de Barcelona a Lisboa onde se encontrou com Basílio Lopes Pereira e informou-o que estava mandatado pelos chefes do grupo dos «budas» para contactar o representante dos Sindicatos Autónomos na Frente Popular (Silvino Augusto Ferreira) e chefe operacional para acções especiais da Frente.

Trazia avultada quantia de dinheiro, que Jaime Morais lhe confiara, proveniente do Governo espanhol, para financiar actividades de solidariedade com a Espanha republicana. Essas actividades visavam a sabotagem dos transportes de alimentos, material de guerra e outros apoios aos nacionalistas.

O «Silva da Madeira» trata também da organização de atentados contra estruturas que simbolizassem o apoio de Salazar aos nacionalistas espanhóis, que ficaram conhecidos como «as bombas dos ministérios».

O «Silva da Madeira» tinha também como missão, contactar e envolver os anarquistas na preparação de acções a serem desenvolvidas em 1937. Com esse objectivo, encontrou-se várias vezes com Emídio Santana.

***

À chegada a Lisboa, o «Silva da Madeira», pensando ter sido detectado, abandonou rapidamente o navio em que viajava, deixando o passaporte falso na posse das autoridades fronteiriças.

Em Lisboa, conseguiu obter por via legal um bilhete de identidade, mas concluída a missão, não tinha passaporte para sair do país.

Os anarquistas, nomeadamente Emídio Santana, ainda em Dezembro de 1936 conseguem embarcá-lo clandestinamente num cargueiro francês.

A sua presença é detectada, pelo que o «Silva da Madeira» decidiu apresentar- se ao comissário de bordo como cidadão espanhol, e propondo-se pagar a sua passagem até Bordéus.

À chegada, foi entregue às autoridades francesas, mas valeu-lhe o cônsul espanhol nessa cidade, Rafael Fernandes Ramos, que já fora cônsul no Porto, onde se haviam conhecido e lhe forneceu um salvo-conduto espanhol, com o qual regressa a Espanha e informa os chefes dos «budas» do que tratara em Lisboa.

Em Janeiro de 1937, embarca em Boulogne -sur-Mer de volta a Portugal, num navio alemão, com um passaporte falso uruguaio fornecido por Jaime Morais, transportando nova quantia em dinheiro destinado a Silvino Ferreira, para financiar as acções revolucionárias.

Em Lisboa fica alojado em casa de Silvino, que era também utilizada por operários anarquistas  e comunistas , antigos colegas na Fábrica de Material de Guerra  do Braço de Prata, para fabricar as bombas

O «Silva da Madeira» participou  na preparação das «bombas dos ministérios» e activamente nessas acções que ocorreram simultâneamente em locais distintos da área de Lisboa.

 Os atentados  foram preparados e realizados no âmbito da Frente Popular e em articulação com os anarquistas. Estiveram envolvidos em todas as fases das operações militantes comunistas, anarquistas, republicanos radicais, membros dos sindicatos clandestinos  e antfascistas sem partido.

***

O «Silva da Madeira» chefiou um grupo que num táxi conduzido pelo sindicalista Granja,  se dirigiu a Barcarena onde colocou uma das bombas junto à parede das oficinas da fábrica.

No regresso, ainda pararam em Caxias onde o «Silva da Madeira» colocou outra bomba junto aos armazéns da fábrica de pólvora.

Pararam ainda na Rua da India, onde outro elemento colocou outro engenho explosivo junto dos depósitos da Vacuum Oil.

***

Inicialmente planeou-se ensanduichar o carro de Salazar e atacar a tiro de metralhadora.

Para isso foram adquiridas e fornecidas pelo «Silva da Madeira» duas pistolas- metralhadoras  de modelo recente.

***

O «Silva da Madeira» regressou a Espanha depois das «bombas dos ministérios». Contou a Jaime Morais (um dos chefes dos «budas») os planos de Silvino Ferreira para o atentado a Salazar. Este ficou alarmado e deu indicação para o Silva  fazer um desmentido formal da autoria do atentado, através da emissora radiofónica controlada pelo Partido Socialista Unificado da Catalunha (PSUC).

Na mesma altura terminaram as contribuições financeiras para as acções revolucionárias.

Mais tarde, Jaime Morais recebeu uma carta de Portugal anunciando para breve o atentado a Salazar. Considerando ser um tremendo erro político, escreveu no mesmo dia a Silvino Ferreira, tentando demovê-lo desse  intento. Através da rádio do PSUC, que tinha uma emissão em português, enviou também uma mensagem cifrada, pedindo a Silvino Ferreira que fizesse tudo o que estivesse ao seu alcance para o impedir.

O apelo não chegou a tempo, embora o atentado tenha falhado.

*** 

Os «budas» tencionavam aliciar unidades militares em Portugal que se sublevassem ao mesmo tempo que entrasse uma coluna vinda de Espanha.

A coluna designada Corpo Especial de Intervenção seria treinada militarmente em dois centros, sob o comando de Oliveira Pio e de César de Almeida, que desempenhavam funções no exército republicano espanhol. Esperavam mobilizar 100 000 homens, o que era completamente irrealista.

Estava previsto um ataque aéreo vindo de Espanha, que contaria com pilotos recrutados entre jovens enviados pela AAA. 

O material militar pesado viria de Espanha; o armamento ligeiro seria adquirido na Grã-Bretanha.

Os Sindicatos Autónomos sabotariam as comunicações telefónicas e as linhas ferroviárias. Também lhes caberia a mobilização das estruturas civis.

No dia da sublevação, Jaime Morais e o Comité de Paris chegariam a Tróia de avião, e Jaime Morais assumiria a autoria do plano e se disporia a presidir à Junta Revolucionária a quem seria entregue o poder.

***

A derrota dos republicanos na Batalha do Ebro (Outono de 1938) e a queda da Catalunha (início de 1939), impossibilitam qualquer apoio espanhol.

No interior de Portugal, as coisas não correm melhor. Emidio Santana e o grupo dos motoristas são presos. Basílio Lopes Pereira é preso em Setembro de 1938, e Tassara em Novenbro.

Frustravam-se assim as últimas tentativas de insurreição..

***

Emídio Santana, na clandestinidade, embarcou no paquete Alcântara a 5 de Outubro, auxiliado pelos estivadores.

A bordo encontrou o «Silva da Madeira», portador de um passaporte falso uruguaio, que o acolheu no seu camarote, quando os estivadores consideravam não haver condições para Santana seguir viagem.

Depois de estarem em alto mar, o «Silva da Madeira» convence Santana a apresentar-se ao imediato do navio e a solicitara passagem na qualidade de emigrante político.

O imediato anotou o seu nome e reteve-lhe o Bilhete de Identidade.

***

Emídio Santana e Manuel Tassara foram condenados a 8 anos de prisão seguidos de 12 de degredo, ou a 28 de degredo.

Emídio Santana foi preso em Inglaterra e entregue às autoridades , Esteve preso na penitenciária de Coimbra até 23 de Maio de 1953

Granja, Damião, José Lopes, Pimenta e Virgílio Ribeiro, 10 anos de prisão seguidos de 12 de degredo, ou 28 de degredo.

Reis Salgueiro, Morais da Cruz, Alfredo Carlos Barbosa e Renato Carmo Dias foram absolvidos.

Julgados à revelia e condenados a penas semelhantes: Silvino Ferreira, João Pereira da Costa e Silva, o «Silva da Madeira» e Fernando Costa Tavares.

Valentim Adolfo João, Armindo José Estevão e Francisco Xavier Silva também foram condenados à revelia.

A maioria dos condenados cumpriu as penas na penitenciária, quando se previa que fossem enviados para o Tarrafal

***

José Maria Ferreira, o «Silva da Madeira», deslocou-se para Marrocos, instalando-se primeiro em Tânger e depois fixou-se definitivamente em Casablanca.

Em 1960 veio a Portugal, mas passados tantos anos sobre os acontecimentos, a PIDE limitou-se a interrogá-lo e libertou-o.

Regressou a Marrocos, onde já era um industrial do calçado.

***

MADEIRA, João: 1937 O ATENTADO A SALAZAR. A FRENTE POPULAR EM PORTUGA; A Esfera dos Livros. LISBOA 2013

************************************************************

Daniel Seixas Melo, no seu artigo “DO INTELECTUAL EXILADO: LEGADO HUMANÍSTICO DE JAIME CORTESÃO “ também acrescenta algumas informações:

A Junta observava pois outro elemento fundamental: a inclusão de antigos exilados portugueses no novo movimento. José Ferreira, ou Silva da Madeira como era conhecido na oposição, era um desses casos. Mandatado pelo núcleo português exilado em França para prosseguir os preparativos da revolta que enfim derrubaria Salazar, Ferreira chegara a Marrocos em 1939. Acabara por se instalar em Casablanca, a partir de onde impulsionara várias tentativas de congregar os oposicionistas no território. Como a União Democrática Portuguesa, formada em 1944, organização que conseguira assinalável eficácia e implantação, esvaziada pelas contingências impostas pelas autoridades francesas(42). A passagem de Humberto Delgado pelo território em 1961 tê-lo-á impelido novamente à ação, contactara depois com Ayala e Piteira e, já em 1963, com Moura Pimenta, a quem terá entregue uma pistola tendo em vista a possibilidade de se iniciar a preparação militar de alguns membros da comunidade(43).

 

(42) CD25A, LC; ANTT, PIDE, SC PC 466/60 NT 5324.

(43) ANTT, PIDE, SC CI(2) 1273 NT 7077

DO INTELECTUAL EXILADO: O LEGADO HUMANÍSTICO DE JAIME CORTESÃO

Daniel Seixas Melo

Universidade Nova de Lisboa, CHAM, FCSH

danielseixasmelo@hotmail.com

https://orcid.org/0000-0003-4573-3497

***********************************************************************************

Cécile Gonçalves  no seu artigo Salazar et la Guerre civile espagnole”, faz eco de informações de Emídio Santana:

Les attentats perpétrés à cet effet par les anarchistes courant 1937 – Casa de Espanha, des dépôts de combustible de bétail, Rádio Club Português, ministère de l’Education et, finalement, l’attentat contre Salazar le 4 juillet, sur Avenidas Novas, quand il descendait de voiture pour assister à la messe – découlèrent de cet engagement et furent faits avec des explosifs apportés au Portugal par l’exilé en Espagne “Silva da Madeira”. Les attentats ont été les dernières actions perpétrées par les anarchistes portugais. La détention de presque tous les impliqués, et pour de nombreuses années, décima définitivement les anarchistes portugais qui avaient encore des activistes après la grande répression de 1934 19.

19 SANTANA, Emídio, Historía de Um atentado, Lisboa, Publicações Fórum Lda., 1976, cité par OLIVEIRA, César, « A Evolução Política » in op. cit., p.37.

 

Cécile Gonçalves: Salazar et la Guerre civile espagnole Diacronie - Studi di Storia Contemporanea N. 7 | 7|2011 Spagna Anno Zero: la guerra come soluzione

 

**************************************************************

Alexandre Babo, um dos jovens pertencentes à organização dinamizada por Basílio Lopes Pereira, a Aliança Anticlerical e Antifascista (AAA), que integrava a Frente Popular Portuguesa, deixou-nos num seu livro de memórias “Recordações de um caminheiro, I – Entre duas guerras” um dos relatos mais ricos sobre o “Silva da Madeira”, que aqui reproduzimos:

Quanto ao Silva da Madeira, só muito mais tarde soube ser ele o nosso Nº1. Nunca mais o vi desde a sua partida para continuar a luta até à queda final dos defensores da República Espanhola, a bordo do Massilia, o barco francês que ficou na história por transportar para o Norte de África os deportados franceses que se recusavam à colaboração com o invasor, após o colapso do exército francês e da traição de Pétain.

Pediram-nos, aos que continuávamos a viver na rua do Zaire, com excepção  do Mário e do Silvio Guimarães, para acompanharmos o Nº1 ao barco que o levaria de novo a Espanha.

A nossa função era igual à das chocas que nas touradas vêm para a arena, a fim de que o touro entre para o curro.

Nesse tempo, compravam-se bilhetes para visitar os barcos ancorados, dar por lá uma olhadela, beber umas cervejas. Era um passatempo como outro qualquer.

Uma família respeitável, nossa amiga, embarcava legalmente e levava, misturada com a sua, a bagagem do Nº 1. Tudo estava combinado com o comissário de bordo e o comandante, o problema era o da entrada a bordo e o tempo que demorava até à largada, visto que a polícia fazia uma inspecção antes.

Lá fomos todos, com ele no meio, e passamos a primeira parte para o curro. Dez da manhã e a partida anunciava-se para o meio dia. A nossa espera e o nosso sofrimento devia durar pouco mais de hora e meia. Algo de imprevisto, porém, impediu o cumprimento do horário e o barco só levantou âncoras próximo das seis da tarde.

Um grande salão com mesas, tendo ao fundo, justamente do lado contrário à porta de entrada, um grande espelho e uma grande mesa onde nos sentamos os sete.

O Nº 1, de costas para a entrada, observava pelo espelho quem entrava e quem saía.

Sentou-se e brindou-nos com estas estimulantes palavras: - Eu não me deixo prender. Estou armado. Se entrar aqui alguém que tente prender-me, faço-vos sinal e vocês escondem-se imediatamente debaixo da mesa, porque haverá tiroteio.

Estávamos fartos de ver filmes do género, mas nunca tínhamos pensado em actuar em Westerns, nem desarmados como estávamos, nem armados.

Olhámos uns para os outros, transmitindo o nosso pensamento comum: - Que grande porra! Estamos fritos!

Nada a fazer. Deixar passar o tempo, um tempo com a lentidão de um fio de azeite a escorrer por uma tábua, minuto a minuto.

Às vezes saíamos, o máximo dois de cada vez, para mijar o nervoso e nos aproximarmos da amurada e ver em baixo, no portaló, o funcionário da Alfândega e o agente da polícia política que vigiava.

Eu e o Fernando Santos Silva comentávamos melancolicamente a incerteza da vida humana, aquele trémulo instante em que as nossas existências podiam ter um trágico fim, todos com menos de vinte anos, desejosos de viver, ser livres, com tantos projectos de futuro.

Vimos chegar um carro descapotável, de desporto, e dele sair um jovem elegante, dinâmico, com a alegria estampada no rosto saudável e belo, que nós bem conhecíamos. Entrou nas calmas, exibindo o passaporte.

Ia alistar-se na aviação governamental espanhola. Mais tarde, tivemos notícia de que por lá deixou os ossos. Como tantos outros compatriotas nossos.

Àquele dia costumávamos chamar-lhe o “dia mais longo”. Parece que nos vieram plagiar os que desembarcaram na Normandia.

Mas dessa vez ninguém morreu, ninguém perdeu a liberdade. Julgo que amadurecemos todos um pouco.

Saímos e, enquanto o Massília se afastava lentamente do cais, acenávamos num adeus muito amigo, com as lágrimas nos olhos, para uma escotilha onde o rosto do Silva da Madeira, o Nº 1, pela última vez terras portuguesas.

***

Muitos homens desse tempo podem relatar feitos aventurosos do Silva da Madeira. Por mim, além do que tentei relatar, só posso repetir o que mais tarde fui ouvindo.

Na luta contra o fascismo e a ditadura, era uma figura um tanto lendária. A imaginação dos homens talvez lhe tivesse ampliado as aventuras.

Preso na António Maria Cardoso, apenas com umas cuecas vestidas, aguentava com os dentes cerrados as sovas que os torcionários lhe aplicavam, recusando-se sempre a falar. Até que, momentaneamente, perdeu as forças e caíu prostrado.

Os esbirros acharam que era tempo de também eles descansarem e deixaram-no só.

Era uma sala do 1º andar. Desperto daquele pequeno colapso, não esperou um instante, chegou-se à varanda e saltou. Partiu uma perna, mas conseguiu levantar-se e correr. Teve  a sorte de passar um táxi e de o chauffeur ser um homem e não um informador.

Outra vez, aguardava um encontro numa estrada. Como sempre, bem vestido, um jornal debaixo do braço. Surge uma carrinha. Denúncia voluntária ou arrancada à força, a polícia localizara o encontro. Travagem brusca, saltam dois paisanas de armas apontadas: - Mãos no ar!

O Silva levantou os braços, mantendo numa das mãos o jornal que trazia.

Apalparam-no e meteram-no na parte detrás do carro. Ouviu a conversa:

- Ali adiante, voltas à direita. É um sítio bom, não passa ninguém.

Percebeu que tinha os dias contados. Se … Valeu-lhe o costume de trazer sempre a arma, não nos bolsos, mas numa pasta ou, como naquele dia , no meio do jornal.

Chegados ao tal sítio onde não havia gente, foi ele que os dominou. Foram eles que ficaram na estrada.

***

Também se contava outra história verídica.

O capitão Nuno Cruz estava preso na Cadeia da Relação do Porto. Era um homem que, como já referi, ia tentando revoluções que se perdiam no caminho. Era uma pedra essencial na luta de então contra a Ditadura. Com ele na mesma cela, vários outros presos políticos.

Um dia, chegaram dois homens à porta da cadeia, mostraram os cartões de agentes da polícia de informação, e exibiram ao director da cadeia uma ordem devidamente firmada para que o preso Nuno Cruz lhes fosse entregue para ser transferido para Lisboa.

Foram busca-lo e portaram-se com tão ostensiva brutalidade que até os guardas da cadeia, quando saíram, comentaram: - Gaita! Não é preciso ser assim! Que brutos!

Entre os companheiros de prisão reinava uma justificada indignação.

Em breve, porém, a boa notícia se propalou, trazendo a muitos renovadas esperanças.

Tudo era falso – os cartões de polícia, a ordem de entrega, as brutalidades e os agentes.

Era o Silva da Madeira e um companheiro.

Ia dizer que há histórias inacreditáveis, mas, para mim, nesta idade já é excessivamente raro.

O Silva da Madeira não era um homem com uma ideologia muito elaborada, com uma grande consciência política, mas um anti-fascista, um homem que se não limitava a lutar por liberdade de uma classe. Sentia os problemas dos trabalhadores e de todas as classes desfavorecidas e pretendia uma transformação mais funda nas sociedades humanas. É natural que a guerra de Espanha lhe tivesse trazido grandes ensinamentos. Não era um comunista, mas não era um anti-comunista.

De qualquer forma, inteligente, muito perspicaz, com sentido de humor, bastante humano, mas acima de tudo um homem de acção, com o seu quê de ânsia de aventura.


António Macedo, no seu livro “Na outra margem de Abril - Pequenas histórias de Grandes homens” relata-nos o mesmo episódio com algumas diferenças:

O Basílio Lopes Pereira foi ideólogo, o cérebro de uma aventura rocambolesca, para a libertação do cap. Dr. Nuno Cruz, do Ten. Pio e do Barreto Monteiro, presos há meses na Cadeia Civil do Porto, com a recomendação e advertência da Pide de  serem «elementos perigosos».

Basílio estabeleceu o plano de fuga, no que foi ajudado pelo Silva da Madeira (porquê da Madeira? – ninguém sabia…)

Como os detidos eram várias vezes chamados e levados à PIDE, para prestarem declarações, o Basílio conseguiu que se forjasse «mandato de condução», em papel timbrado da Polícia, com a autentificação do respectivo selo branco.

Na cadeia civil, apresentou-se o Silva, com a documentação da ordem, como chefe da brigada dos pides – que se mantinham no automóvel, parado à porta. Os presos saíram, foram metidos no carro, já com a intervenção dos outros «agentes» - e nunca mais foram vistos. Pernas para que vos quero…

Ao fim da tarde, pessoas de família levaram-lhes o jantar, quando foram informadas de que não tinham ainda regressado da PIDE. Mas a demora causou preocupação, alarme ou suspeita. Um telefonema esclareceu tudo: os presos não estavam lá na Rua do Heroísmo nem tinham sido mandados buscar para perguntas…

Não sei se, no seguimento de normas costumeiras, foi ordenada a instauração de algum inquérito. O director da cadeia civil (ou quem o substituía)- creio que Tito Lívio Cameira- foi demitido, de imediato, sem processo ou incriminação, ainda que sem culpas no cartório. “

 

***

A última informação que conseguimos encontrar da sua vida é a que nos dá Alexandre Babo:

É possível que ainda viva em Casablanca. O Piteira Santos encontrou-o na Argélia. Se vive, terá muito próximo dos oitenta anos.

( BABO, Alexandre: Recordações de um caminheiro, I – Entre duas guerras; Jornal do Fundão, 1984)

Mais de quarenta anos passaram sobre esta publicação. Certamente que já faleceu e dificilmente conseguiremos mais informações sobre este heróico revolucionário, certamente condenado ao esquecimento.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário