quarta-feira, 15 de setembro de 2021

 

Médicos e Partidos Médicos Municipais.

 Algumas controvérsias em Mortágua.

 

Desde muito cedo que a saúde foi uma preocupação dos responsáveis pela administração do nosso país.

D. Sancho I, o mesmo que concedeu o 1º Foral de Mortágua, concedeu a primeira bolsa para que um religioso do Mosteiro de Santa Cruz estudasse Medicina no estrangeiro, criando depois a primeira Aula Médica em Coimbra, ainda no séc. XII.

D. Dinis, criou o Estudo Geral de Lisboa, em 1290, fazendo a medicina parte dos cursos leccionados.

O maior progresso só viria no fim do séc. XV e no séc. XVI, quando foram criados hospitais e Misericórdias e criada legislação para combater as epidemias, que constituíam a maior preocupação sanitária nessa época. São marcos importantes, a criação do Hospital de Todos os Santos em 1942, na cidade de Lisboa e a transferência definitiva da Universidade em Coimbra em 1537. O número crescente de médicos a fazerem a sua formação no estrangeiro contribuiu para a melhoria do conhecimento médico.

A assistência médica aos mais desfavorecidos, também fez parte das preocupações dos responsáveis municipais e de alguns reis.

É disso exemplo o alvará enviado ao Capitão de Goa em 1518 : …“o fizico que tevermos nessa cidade com o noso soldo cure todos os doemtes que for requerido polo proveador e oficiaes da Misericordia que a va visitar e curar asy mesmo todos os outros doemtes e pessoas que ouver nessa cidade que polos da Misericordia nam seja requerido e a huuse a outros sem lhe levar por isso cousa alguma porque polo soldo noso que de nos haaem cada huu anno he obrigado de o asy fazer”. E mais determina o rei que se o físico não quiser cumprir esta determinação, não lhe seja pago soldo algum.

Apesar da escassez de médicos, muitos municípios contrataram médicos para cuidarem dos mais desfavorecidos. Eram os médicos de partido.

O Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva define “Médico do Partido  é um clínico  que é de contraco de alguma villa ou cidade, e ganha somma certa e não é pago por visitas de quem o chama

O médico recebia um vencimento fixo, independentemente do número de atendimentos que prestasse. Eram pagos pelos impostos municipais, mas também podiam exercer  a sua actividade em hospitais, ou em regime privado.

Não havia obrigatoriedade de existência de Partidos Municipais, porque alguns municípios não dispunham de meios para lhes pagarem, ou não havia médicos para contratar.

A falta de médicos só começou a diminuir, com a criação das Escolas Régias de Cirurgia do Porto e de Lisboa em 1825, que passariam a Escolas Médico-Cirúrgicas, em 1836.

Só no quarto final do séc. XIX é que passou a ser obrigatória a contratação de partidos médicos.

O Código Administrativo de 1886 determina que os médicos passem a ser admitidos por concursos abertos e estabelece as suas competências e obrigações:

-curar gratuitamente os pobres, os expostos e as crianças desvalidas e abandonadas;

- proceder à vacinação do concelho, sem distinção das classes;

- inspeccionar as meretrizes

- aconselhar e coadjuvar as autoridades administrativas e policiais, sempre que necessário

- não se ausentar do concelho sem que estivesse substituído por um colega.

Tinham o privilégio de não poderem ser despedidos, nem os seus ordenados alterados, nem extintos os seus partidos sem que fossem ouvidos previamente.

Os vencimentos correspondiam, aproximadamente, aos dos cargos mais altos da administração do município.

Para melhor entendermos, temos aqui a publicação de dois concursos em 1884, e compara os ordenados oferecidos ao médico e ao professor.


Os Partidos Médicos Municipais, com algumas adaptações sobreviveram  desde o Absolutismo até ao actual regime, só tendo sido extintos em 1984 pelo Decreto-Lei 116/84, de 6 de Abril, o qual estabeleceu que as atribuições dos médicos municipais passavam a ser exercidas pelos Centros de Saúde.

*****

Não temos dados para saber quando começou a existir Partido Médico Municipal, mas sabemos que pelo menos duas vezes foi motivo para acesa controvérsia.

A primeira diz respeito à decisão da Câmara Municipal de atribuir o partido médico a um de dois concorrentes que a ele se candidataram, por ter vagado o anterior.

A Câmara decidiu em favor do candidato Joaquim José Lopes de Matos Viegas, com o curso da Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, em desfavor de Luís Augusto de Campos Vidal, médico pela Universidade de Coimbra. O candidato vencido , recorreu até ao Supremo Tribunal Administrativo, e até decisão governamental, publicada no Diário do Governo de 1 de Dezembro de 1977.








Por razões que não conhecemos, nenhum dos dois ocupou o lugar.

Do queixoso Luís Augusto de Campos Vidal, sabemos que era de natural São Paulo de Frades, Coimbra, onde nasceu em Abril de 1848, e foi médico naval. Viria a falecer em Bolama, na Guiné, em 21 de Julho de 1894.

Joaquim José Lopes de Matos Viegas, era filho de José Lopes de Matos Viegas e natural de Vila Nova, Mortágua.

Presumimos que terá voltado a Lisboa, onde exerceu a sua actividade e publicou um livro em 1870 : «Algumas palavras sobre indicações e contra-indicações do parto prematuro artificial», existente em várias bibliotecas nacionais e internacionais.


*****

No segundo caso, o conflito ainda foi mais acirrado. Deu lugar a grandes mobilizações e discussões a nível camarário, campanhas nos jornais, e em livros editados pelo autor, enfim, uma guerra aberta, sem quartel.

As nossas fontes de informação são Martins e Abreu no seu livro  A República na Beira Alta e um comunicado publicado no jornal Resistência. Comecemos por este, transcrevendo-o na íntegra  e mantendo a grafia.

“M A N I F E S T O

 

Em Mortagua foi distribuído profusamente o manifesto seguinte, de carater popular, fazendo uma reclamação a favor do povo, e que publicamos como nos é pedido.

E' preciso que o povo saiba quem são os seus inimigos e o que êles lhe querem fazer. Aqui está o que se passa:

Há tempos foram chamados os 40 maiores contribuintes para ser creado um novo partido medico. Quasi todos eles sairam de casa resolvidos a votar contra, por verem que, se em algum tempo foi preciso um novo partido, não era agora, porque o concelho tinha nada mais, nada menos que quatro médicos.

Mas mal entraram na camara ficaram enfeitiçados, e aprovaram o novo partido.

Fora o sr. dr. Joaquim Festas que o tinha pedido, declarando debaixo da sua palavra d'honra que se despediria se creassem esse novo partido.

E sabem o que por ahi dizem já?

Duas coisas, qual delas peor: que ou o antigo medico não sae, ou se sae é para anichár um sobrinho, fechando a porta a outro medico que tem tanto ou mais direito que êle a ser colocado no partido.

Este outro medico é o sr. dr. Augusto Gouveia dos Santos que tem dado mostras de ser amigo do povo, porque se ofereceu logo a concorrer por 150.000 réis quando êles querem dar ao afilhado réis

300.000. Ora isto fez lhes estoirar a castanha na boca, e como não podem sair se bem do negocio, querem agora roer a palavra.

E querem saber o que por ahi andam já a dizer á bocca cheia?

Que êles que vão brevemente, por todo o concelho, falar aos papalvos, como fizeram já uma vez para outro negocio, para que venham á camara pedir e rogar para que torne a ficar o antigo medico,

qne de modo nenhum deve ficar. Porque, se o sr. dr. Joaquim Festas não queria demitir se, não fosse á camara propôr um novo partido, porque ficando êle outra vez, todo o povo é roubado em 150.000

réis anuaes. Ora 150.000 réis anuaes já não é qualquer coisa: podem fazer-se muitos melhoramentos; podem abrir-se estradas e fontes, erguer-se pontes, beneficiar se pobres, etc.

Por essa razão o despedida do sr. dr. Joaquim Festas, que ninguém desejava antes da creação do novo partido, é hoje absolutamente necessaria, porque traz ao concelho grande economia, e, se êle ficar, a lei manda que se lhe dê o mesmo ordenado, embora êle tenha só metade ou menos ainda do serviço que tinha, ao passo que se êle cumprir a sua palavra de honra, despedindo se, só se pagará ao

que ficar no logar dêle, metade do que se pagava até ali, que são 150.000 réis.

Mas os sujeitos querem ver a todo o custo se nos comem, e por isso parece que a camara vae fingir que o sr. Dr. Joaquim Festas quer despedir-se, mas ela é que não quer. Ora isto é uma grande

comedia, para lhe não chamar outra coisa, porque logo que êle peça a demissão, a camara tem obrigação de lha dar. Mas são capazes de fazer tudo isto, porque já as fizeram bem boas. Querem vocês saber algumas entre tantas?

Quando foi da ocasião de crear o novo partido, os contribuintes só tinham combinado que ficasse por 200,000 réis, que era mesmo quanto a camara pedia. Pois querem ver o que os pândegos fizeram? Pozeram nas contas 250.000 réis. Esta maroteira não a conseguiram, porque houve em Mortagua quem berrasse, e lá se lhe foi a tramóia. Até o governo de Vizeu, lá em cima, lhe cheirou a esturro e não quiz aprovar tal coisa, que era o mesmo que meter a mão na bolsa do povo sem êle saber. E os senhores bem sabem que nome costumam dar a quem faz isto...

Como já lhes disse, o dr. Augusto ofereceu- se para poupar ao povo 150.000 réis por anno. Pois, por fazer isso, mostrando que era amigo do povo, foi já bem perseguido. Concorreu ao tal partido dos

200.000 réis, e elles poseram-no no meio da rua, contra toda a lei, pondo lá um amigalhote para o qual crearam o logar pelo que parece. Mas o dr. Augusto, que é têso, não se importou grande coisa da falcatrua que lhe fizeram, e logo numa reunião da camara lhe caiu em cima por causa de outras tratantadas. Elles ficaram perdidos da cabeça e principiaram a fazer toda a casta de disparates. Um delles é aquelle que o presidente da camara fez, começando a berrar que não deixava de aqui por deante que o povo abrisse boca deante da camara, fôsse lá para que fosse e  que quando quisesse alguma coisa, fosse comprar meia folha de papel selado por um tostão, mandasse fazer o requerimento e fôsse depois com ella ao tabellião, para o reconhecer, não lhe ficando esta bucha por menos de cinco tostôes.

A despeza que o concelho terá a fazer com estes requerimentos na roda do anno não será assim menos de 200.000 réis, o que é uma roubalheira. E para mais o esfolarem, ainda são capazes de

arranjar para ahi algum esporrínhote para fazer os taes requerimentos, de maneira que êles os aceitem, que lhes levará coiro e cabeio.

E depois d'isto tudo ainda não podem entregal-os na camara, é na secretaria, de maneira que se chegarem tarde e a sessão já estiver aberta ou a camara se fizer esquecida, perdem o seu tempo e o

seu dinheiro e ainda chucham no dedo. Isto tudo é só para tirarem o sangue ao povo. Ora o povo já está farto de pagar e não deve nem pôde pagar mais. Sobre tudo não deve pagar o que é contra

a lei. E agora fiquem sabendo que se o povo não cair no laço que lhe armam, salvam-se por anno 200.000 reis, que são os cincoenta dum partido, que não foram por dianto e os cento e cincoenta

do outro que também não irão adiante se o povo não quizer. Ao fim de trinta annos, com juros e tudo, são mais de dez contos de reis. Vejam quantas pontes, quantos caminhos, quantas fontes e quantas estradas se não fazem com tal dinheiro! Portanto, olho vivo, senão intorna-se a caranguejola e lá se vae o burro mais as canastras. É  necessário gritar contra isto por toda a parte, e gritar bem alto. Lembrem-se que se o povo faz mel, eles são como os fangos e moscas que logo o comem.

Portanto é preoiso que estejam todos álerta, e que gritem todos:

Fóra os comedores do povo!!

E' o grito que o povo precisa de lançar aos ouvidos dos camaristas que não ouvem hoje senão a voz dos que são contra os que trabalham e que para comer não o roubam nem vivem  de empregos que rendem contos de reis.

Sim, amigos, se for necessário o povo ir a Mortagua e ha de cercar a camara, mas não será para pedir que lhe ponham a albarda em cima, ha de ser para atirar com ela fóra.

Ah!  se eles veem o povo, em nome a lei, entrar na sala das sessões e dizer pela sua vez o que tem a dizer, como eles hão de ter medo, como hão de bater os dentes !

O povo então ha de dizer-lhes que está farto de os aturar e que não os aturará mais; ha de dizer lhes que está resolvido a fazer tudo o que fôr de justiça.

Meus amigos, se nos quizerem roubar, não nos deixemos roubar. Gritemos todos bem alto no mesmo grito :

Abaixo os comedores do povo!!

 

Martins e Abreu, no livro referido, manifestando-se claramente contra a existência de um segundo partido médico em Mortágua e relatando a sua luta pela extinção do mesmo, argumenta assim:

Na primeira sessão foi extinto o partido *(2º), cujo histórico aí vai:

Em 20 de Maio de 1905 foi creado este partido em face de uma exposição do bacharel Joaquim Tavares Festas, médico municipal, que durante anos foi não só o único como tal, mas também o único clínico do concelho, sem ninguém sentir faltas; e sem queixas dele.

Em primeiro logar, Joaquim Festas, viúvo e maduro, casara por amor com uma jovem encantadora (e, em tudo, digna) ao passo que também se apaixonava pela mais nobre, infibradora e útil de todas as ocupações – a lavoura.

Em segundo logar, o bacharel Aníbal, sobrinho de Joaquim Festas, estava aí sem colocação.

Festas previra que o arranjo político-familiar daria nas vistas e asseverou que ía demitir-se do primeiro partido, logo que fosse creado o segundo – por saber que, sendo sua família predominante na terra, fácil lhe era aquiescer aos pedidos do povo na ocasião oportuna.

Mas saíu-lhe o imprevisto e viu-se obrigado a demitir-se, quando o Aníbal já não poia ser provido.

Era um grande canudo.

Mas a Camara ainda era deles e, portanto, para sanar o mal pecuniário que tinham causado ao concelho e evitar que os partidos ficassem ocupados por adversários (como estava eminente e se realizou) – em 27-1-906. Foi extinto o partido creado pouco antes.

Os considerandos do acto são suados; no 23º(!) diz-se que, ao creal-o, havia só um médico no concelho, havendo agora três e vésperas de quatro, gloriando-se  justamente a Camara de gastar com médicos apenas a quinta parte do que dispendiam camaras vizinhas.

Presente á sessão o Aureliano Maia, serventuário de um dos partidos, e sendo ouvido acerca da extinção, disse. Que não tinha objeção alguma a fazer; concordava por completo com ela e desde já assumia a responsabilidade da clínica no concelho todo. E assinou a acta.

Assim estiveram as coisas até á ditadura franquista.

Então, na sessão de 1-2-908, apareceu um ofício do supracitado Aureliano  « reconhecimento de absoluta necessidade a creação dum segundo partido.» Resolveu-se creal-o.

É preciso considerar que o administrador era o bacharel Augusto Gouveia (o Urbino de Freitas) a quem se destinava o logar; e que seu pai era o presidente da Camara ditatorial.

Os acontecimentos políticos, dispensando a Camara; e a indignação publica adiaram o caso.

Chegamos á sessão de 27-2-909, aparecendo um abaixo- assinado a pedir um segundo partido.

Foi provido o Augusto Gouveia com reis 200$000, tendo oferecido antes os seus serviços por 150$000 reis.

Quem conhece os escrúpulos deste Gouveia e de seu pai não estranhará o nojento sabor d’argola que tem a água: Foram eles quem andou a mendigar, pela Marmeleira e outras parte, as assinaturas!

Passemos á sessão de 26-11- 910.

«Um requerimento de Martins e Abreu… e contra a existência de segunda-feira do partido.»

Estando presente o Aureliano supra-citado e sendo interrogado, respondeu que, « em condições normaes, o concelho carece de dois partidos.»

A Camara tremeu diante do ressentimento do Aureliano, que não ousou provocar; dos pasquins do outro, que sujariam logo, de novo, a vila; e o grupo adesista, pronto a explorar tudo o que podesse dar-lhe preponderância politica na terra, mal que lhe tenha evitado.

O partido novo foi, pois, sustentado.

Passemos á sessão de 4-2-911.

« Um requerimento de Martins e Abreu pedindo que a camara reconsidere nessa deliberação. E alega: Resolvestes ouvir Aureliano, que um acaso singular trouxe à sessão; e nem, sem uma coragem cívica e confiança em si mesmo, rara até nos homens de caracter, como ele, podia dizer outra coisa, dada a rivalidade profissional entre os dois médicos e suas diferenças de caracter.

A questão é simples: a creação desse partido teve origem numa necessidade pública ou foi um baixo negocio de compadrio?

O concelho tem a mesma área, aproximada população, melhores estradas, mais higiene; não há doenças novas nem agravamento das velhas. Dentro do senso comum e da honra da camara há só uma resposta e vós todos por mais de uma vez m’a destes.

Não há rabulices e manhas, fraquezas de caracter nem embustes que resistam ao vosso querer.

A republica que contemporize com intrujices tornar-se-há uma pouca vergonha á antiga ou peor. O  bem publico é a lei suprema dos homens que sabem o que querem e sabem querer.

Se vós não quiserdes, nem mais um vintém sairá para este êrro, ainda que céus e terra conspirem.»

- Foi de novo extinto o partido. “

Como podemos ver, as manobras políticas são uma prática antiga e nem sempre muito limpa.

Não podemos por aqui concluir quem tinha razão, porque sabemos como é fácil distorcer a verdade, ou publicar opiniões como se fossem notícias.

De concreto sabemos que o Dr. Aníbal Dias nunca chegou a exercer medicina em Mortágua, embora tenha sido neste concelho uma pessoa extremamente válida e participante em variados sectores de actividade. Dedicaremos uma publicação a esta excelente personalidade, que não sendo natural de Mortágua, muito contribuiu para o seu prestígio e desenvolvimento.

Seria interessante fazer a história dos partidos médicos de Mortágua, mas não temos acesso a documentação onde possamos investigar. A ausência de um arquivo municipal, acessível a quem quiser investigar, torna impossível qualquer trabalho mais aprofundado.

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