quinta-feira, 12 de agosto de 2021

 

A propósito do nome de Mortágua

 

Pesquisando em documentos antigos, encontramos pelo menos uma dúzia de  maneiras diferentes de referir a localidade a que hoje chamamos Mortágua, e que se foi alterando ao longo do tempo.

 A saber: 

Mortalago 1,2, 3, 4, 5, 6, Mortalaga 7, Mortaaga 8, 9, 10, Morta agua 11,12, Mortua aqua 13, 14, Mort’agua13, Mortaaagua 15, Morta Augua 16, Mortaagua 17, Mortaauga 18,19, Mortaugoa 20, Mortagoa 21, 22, 23.

Se para alguns a etimologia da palavra parece evidente, os especialistas não são unânimes e a controvérsia arrastou-se durante muitos anos e ainda hoje não está completamente esclarecida.

Lopes d’Oliveira que contabilizamos entre os primeiros  diz no Guia de Portugal:  A etimologia da palavra Mortágua ( Mort’Água, Morta-Agua, Mortallago se diz nos documentos dos sécs. IX e X) bastaria a conservar a tradição deste lago.”

A  verdade é que ainda hoje esta questão não está satisfatoriamente resolvida. Infelizmente, o meu conhecimento não me permite dirimir a questão, mas deixarei aqui as bases para cada um poder ter uma posição mais esclarecida e, quem sabe, dar-nos uma perspectiva mais definitiva.

1 985 -Doação de Oveco Garcia ao Mosteiro do Lorvão- Portugaliae Monumenta Historica- Diplomata et Chartae, vol.I, fasc.I, p.93. Academia de Ciências. Lisboa 1967

21064 - Inventário dos bens do Mosteiro da Vacariça - Portugaliae Monumenta Historica- Diplomata et Chartae, vol.I, fasc.II, p.277. Academia de Ciências. Lisboa 1969.

31128 - Doação..”hereditates quas habeo in Mortalago ..”- VENTURA, Leontina;VELOSO,M.T. : Livro Preto da Sé de Coimbra. Vol.2 , p. 166-7  .Universidade de Coimbra 1978.

41130 -Doação..“Johanni Lazariz presbítero dare Menendo Pelaiz hereditatem meam propriam quam habeo in Mortalago…”- VENTURA, Leontina;VELOSO,M.T. : Livro Preto da Sé de Coimbra. Vol.2 , p. 152  .Universidade de Coimbra 1978

51143- Doação “quam adquivisi cum uxore mea domna Maria Anaia in Mortalago super strata,…” - VENTURA, Leontina;Faria, A. S.. : Livro Santo de Santa Cruz , INIC, p. 145  . Coimbra 1990

61175- villa de Mortalago..”Testamento de Mestre João ao mosteiro de Lorvão - VENTURA, Leontina;Matos,J.da C. : Diplomatário da Sé de Viseu( 1077-1278)

T.T. – Sé de Viseu, m.IV, doc.18,  Carta partida por ABC

7986 - Doação de Munio Gonçalves ao Mosteiro do Lorvão - Portugaliae Monumenta Historica- Diplomata et Chartae, vol.I, fasc.I, p.96. Academia de Ciências. Lisboa 1967

81162 - Doação  “..hereditates mee quam habeo in Mortaaga…”- VENTURA, Leontina; VELOSO,M.T. : Livro Preto da Sé de Coimbra. Vol.2 , p. 195  .Universidade de Coimbra 1978

91192 - Foral de Mortágua concedido por D. Dulce e D. Sancho I - Portugaliae Monumenta Historica- Leges et Consuetudines, vol.I, fasc.III, p.482. Academia de Ciências. Lisboa 1968.

101220-1229 - Sancta Maria de Mortaaga - BOISSELLIER, STÉPHANE : La liste des églises de patronage royal de [1220-1229]- construction administrative d’un royaume - Registres de Bénéfices Ecclésiastiques Portugais (XIII-XIV e Siècles). Lisboa 2012.

111271 - Testamento de D. Afonso III “ mando D. Aleonor, quã habui de Elvira Stephani, heritatem meam de Morta agua”- ESPERANÇA, Fr. Manoel da : Historia Seraphica, p. 147

BRANDÃO, Fr. António: Monarchia Lusitana, Quarta parte. Lisboa 1632.

12  Doação de “hũa herdade  sita ẽ Pynheiro termho de morta agua - FIGUEIREDO, Jozé Anastasio : Nova Historia da Ordem de Malta em Portugal, Parte I, p.398. Lisboa 1800

131304 -“ huma Carta de Sentença da Corte, dada a 25 de Outubro da mesma Era de 1304, super directuris de Mortua Aqua, a requerimento, e Demanda  de Johãnes petri dictus farina, então ainda só tenens  aquella Terra do Mort’agua, da mão do mesmo Sr. Rei D. Afonso III “- FIGUEIREDO, Jozé Anastasio : Nova Historia da Ordem de Malta em Portugal, Parte II, p.201. Lisboa 1800

14Era supradicta millesima CCCa LIXa - ecclesiam Sancte Marie de Tremar <Tremoa sive Mortua Aqua>- BOISSELLIER, STÉPHANE : La construction administrative d’un royaume - Registres de Bénéfices Ecclésiastiques Portugais (XIII-XIV e Siècles). Lisboa 2012

151331 - Testamento de Leonor Afonso ao Mosteiro de Santa Clara de Santarém - SOUSA, Antonio Caetano: Provas da Historia Genealógica da Casa Real Portugueza. Tomo VI. p. 574-575. Lisboa 1747

16 Era supradicta millesima CCCa LIXa - ecclesiam Sancte  Genesii de Morta Augua - BOISSELLIER, STÉPHANE : La construction administrative d’un royaume - Registres de Bénéfices Ecclésiastiques Portugais (XIII-XIV e Siècles). Lisboa 2012

171367 - D. Fernando concede ração, na Gafaria de Coimbra, a alguns leprosos e sãos. Estevam Ferrnandez naturall de Mortaagua - ROCHA,Ana Rita Saraiva da: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS LEPROSOS - O Hospital de S. Lázaro de Coimbra nos séculos XIII a XV. FLUC Coimbra 2011 AUC – Pergaminhos do Hospital de S. Lázaro, IV – 3.ª – 52 – 2 – 32 (traslado datado de 1429 Outubro, 26, Coimbra). ANTT – Chancelaria de D. Fernando, liv. 1, fl. 15-15v.

 

181376 - ..e Pena Cova e Santa Coonbba e Mortaauga e Oboa…- Doação das Vilas de Terena e de Ferreira, por D. Fernando I, a sua filha a Infanta Dª Beatriz em 24 de Março de 1376

191459 - enprazaram logo a dicta cassa ao dicto Joham de Mortaauga,- T/AHMC/ Col.Pergaminhos Avulsos, nº 80

201514 - ..comçelho de mortaugoa - Foral Manuelino de Mortágua

211668 - …Mortagoa, Penacova,Vlllalva…- Tratado de Pazes entre os sereníssimos e poderosíssimos príncipes D. Carlos Ii, Rey Catholico , e D. Afonso VI, Rey de Portugal.

221870 - OS FACTOS POR J. G. DE BARROS E CUNHA

23    - …hirmã de Gco Eanes de Sousa Sr de Mortagoa…-Morais, Cristóvão Alão de  Pedatura Lusitana” a pag. 28.

24 Guia de Portugal 3º vol. - 1ª edição -1944  -2ªedição: Fundação Calouste Gulbenkian – 1985 - Beira pp. 827-8




SILVEIRA, Joaquim: Toponymia portuguesa. Revista Lusitana, vol. 17º, nºs 1 a 4, Lisboa 1914, pp.119-120

 

15. Mortágua

Antigo castro e vila, sede de um conc. no distrito de Viseu, sobre uma ribeira do mesmo nome, afluente do Mondego.

As mais antigas formas que conheço deste toponymo são: - castro de Mortalago e ribulo Mortalago em doc. de 985; castro de Mortalaga e ribulo Mortalago, em doc. de 986; Sancta Christina de Mortalago em doc. de 1064; e ainda Mortalago no séc. XII (1).

No fim deste séc.  e durante o seguinte aparecem as grafias Mortua aqua, Morta agua, Mortaagua e Mortaaga (2)onde, pelo menos nas duas primeiras transparece o malogrado intento dos escribas de recompor a forma inicial do toponymo, pela pronuncia vulgar , que seria já então, como hoje, Mortágua.

A falsidade desta reconstrução serôdia é, porém, palpável em face das formas mais antigas Mortalago, Mortalaga e ainda do seu diminutivo toponymico Mortalazelio,  que no referido doc. de 985 designa um ligarejo ao N. de Mortágua, chamado hoje Mortázel. Estas formas postulam irrevogavelmente como étymo o lat. mortale aqua, «água que mata», para explicar o l intermédio, e não mortua aqua, «água morta».

É claro que a denominação seria dada primitivamente ao ribeiro de Mortágua, por virtude das suas águas doentias e do ribeiro passaria ao castro e à povoação.

Na nomenclatura fluvial portuguesa há os nomes Agua Má e Rio Mau, da mesma origem ideológica.

 

1 P.M.H.. Dipl. et Ch. n.os 148,154 e 444; Livro Preto (original ,na T. do Tombo)fl 2v. e 31.

2 Nova Malta, I, 398, II, 201; Foralia, 482; Ms. da T. do Tombo, Gav.19, maço 14, nº7; Mortaaagua in Rev. Lusit. IX, pag.136


PIEL, Joseph

Pg. 273 – 277

A PROPÓSITO DO NOME DA VILA DE MORTÁGUA

Em Notas a um Índice geral dos artigos de toponímia portuguesa de Joaquim da Silveira, publicado pelo Instituto de Estudos Românicos da Faculdade de Letras de Coimbra ( 1959), o Sr. Dr. Silveira revê , a pp. 33-35, a etimologia por ele defendida há anos a respeito de Mortágua, nome que , em face da forma antiga Mortalaga, explicara como provinda de MORTALE AQUA “água que mata” (cf. Rev. Lus., XVII, 1914, 119-120). O que o levou a repudiar esta etimologia, é a circunstância de o adjectivo MORTALIS não ser conhecido como elemento toponímico e, além disto, de o adjectivo epíteto não poder preceder o substantivo, pois « a regra é o adjectivo atributivo seguir (e não anteceder) o substantivo, a que se liga,- salvo nas expressões enfáticas ou de encarecimento, de que aui não pode ser o caso». Depois desta aclaração o erudito Autor prossegue textualmente:

« Houve muitos anos  depois (scil. da publicação do seu artigo) quem, contestando a minha hipótese, entendesse que a base inicial do nome em questão seria antes o lat. MORTUUS LACUS  “lago morto, extinto, seco”.

A primeira observação que esta hipótese suscita, é a de não se compreender como é que uma clara expressão primitiva “morto lago”(lat. MORTUUS LACUS), com os seus elementos, adjectivo e substantivo, bem coordenados, poderia vir a ser alterada, na boca do povo, para morta lago (ou seja o Mortalago dos docs.) com o adjectivo feminino em concordância… de preto como o substantivo masculino. Não parece burlesco?  Mas pior do que isso, se possível, é que teríamos aqui, como naquela minha repudiada etimologia, atal inversão dos elementos do nome composto, contra a regra indicada.

Uma denominação como Morto lago, num país anglo-saxónico, germânico, ou de forte forte influência germânica na respectiva gramática toponímica, era naturalíssima; em Portugal seria repugnante. Os nossos topónimos compostos, antigos e modernos, em que entra o adjectivo morto, ou outros similares, têm estes sempre no fim: - Água Morta, Moura Morta … (seguem-se mais uma dúzia de exemplos tirados da toponímia portuguesa).

O mesmos sucede nos outros países de línguas românicas, v. g. em Espanha – Rio Muerto…(mais cinco exemplos tirados da toponímia espanhola e italiana). Na própria França, onde a influência transtornou em bastantes casos a regular coordenação latina, foi esta respeitada em geral, nas regiões meridionais, que nos oferecem topónimos  como Eau morte…, Aigue morte, Le Lac Mort…, Aigues Mortes… e mais.

O nome célebre do Mar Morto da Palestina, que pode servir de guião a esta série, nunca teve outra ordem nos seus elementos, sendo já Mare Mortuum  na antiguidade clássica, como poderá verificar, por exemplo, em qualquer Calepino.

A conclusão, a que quero chegar, é que nem o meu MORTALE-AQUA, nem o MORTUUS LACUS, que me foi oposto, podem servir para explicar o nosso antigo topónimo Mortalago, que foi o progenitor do moderno Mortágua. Este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável ».

Sendo eu, creio, o anónimo visado nesta crítica, a qual deixa crer que defendi uma absurdidade, seja-me permitido que retome brevemente o assunto. O que há anos escrevi (no artigo As águas na toponímia galego-portuguesa, no Boletim Filologia vol. VIII, 1948, p.308 e seg), e que ainda hoje me parece defensável depois de alguns retoques, é o que se segue:

« Por constituir um exemplo muito instrutivo no ponto de vista metódico, vale a pena determo-nos um pouco no problema que apresenta o nome da sede do concelho de Mortágua (Viseu). Como no caso de Aguada, a forma moderna, que uma pessoa desprevenida aproximará instintivamente do fr. Mortaigue e Aigues Mortes “águas estagnantes”, é enganosa, porquanto as formas medievais soam Mortalago 985, Mortalaga  986. Apontando ainda o nome do lugarejo Mortazel, ao N. de Mortágua, em 985 Mortalazelio, o Dr. J. da Silveira chega à seguinte conclusão: « Estas formas postulam irrevogavelmente como étimo o lat. MORTALE AQUA “água que mata”, para explicar o  l intervocálico, e não MORTUA AQUA “água morta” ». Quer-nos parecer que os elementos reunidos pelo consagrado toponimista pediam uma solução diferente daquela que estipula. Com efeito, a circunstância de, em documentos dos séc. X a XII, figurar nada menos de quatro vezes a forma Mortalago, e só uma a de Mortalaga, obriga-nos a considerar aquela como merecedora de maior confiança, fazendo entrever o étimo MORTUUS LACUS, que recebe a sua confirmação de Mortalazelio. É de notar que, tirado de aqua, dificilmente adoptaria o final  -azelio, mod. –azel  (cf. O dimin. Aquella 922, que o citado Autor aponta a pág. 117 do mesmo artigo), que logo se explica desde que admitamos como base LAC-ELLUS ou LAC-ICULUS (1). A expressão MORTUS LACUS, que lembra, por contraste, VIVUS LACUS (Virgílio), corresponderia óptimamente à realidade topográfica, visto a chamada actualmente Bacia de Mortágua provir de uma antiga concha lacustre, hoje esgotada.

Quanto ao aspecto fonológico (leia-se fonético) do problema, afigura-se-nos que, numa forma proto- histórica *Mortolago, o o átono se assimilou ao a, que levava o acento. Vindo ajuntar-se a esta transformação o emudecimento do –l-, foi-se perdendo a pouco e pouco a memória da verdadeira  significação de  -ago, de que a etimologia popular fez

(1LAC-ELLUS e LAC-ICULUS (?) pedem um asterisco, pois só estão atestados LAC-ULUS e LAC-USCULOS

ágoa. Diremos ainda que a colocação do adjectivo antes do substantivo (o uso românico é o inverso;  cf. o top. Lago Morto) indica grande antiguidade da povoação».

Do que ficou transcrito depreende-se: primeiro, que não deixei de aludir à ordem insólita, no ponto de vista românico-português, dos dois elementos constitutivos de Mortágua, a qual considerei um arcaísmo; segundo, que não me passou evidentementepelo espírito admitir uma “concordância de preto”, poia atribuí a forma antiga Mortalago a um fenómeno de assimilação o-a > a-a , explicando o emudecimento do l intervocálico como resultado de uma antiga e íntima fusão do epíteto com o determinado, a qual, por sua vez, levou à deturpação , em concordância com Morta-, de –ago para –agoa. A quem esteja familiarizado com as vicissitudes, não raro desconcertantes, da história fonética de bastantes nomes de lugar, muito mais sujeitos a acidentes “extravagantes” do que os nomes comuns, não repugnará admitir este modo de ver.

No que se refere ao segundo reparo do Sr. Dr. Silveira, de que « os nossos topónimos compostos, antigos e modernos, em que entra o adj. morto, ou similares, têm estes sempre no fim », estriba-se numa regra geral, a qual, como muitas regras, sofre sensíveis derrogações. Como é sabido, o adjectivo epíteto seguia, em latim, o substantivo, quando tinha uma função objectivamente determinante (intelectual, concreta): BELLUM CIVILE, ao passo que o precedia quando prevalecia uma noção emocional-qualificadora, PULCHRA VIRGO (cf. a Lateinische Grammatik de Stolz-Schmalz, 5ª ed.,1928, p.616). Esta regra continua vigente no latim vulgar e, em grau maior ou menor, nos idiomas românicos. Atendendo à sua significação, não vejo a razão por que o adjectivo morto não se pudesse usar ocasionalmente e numa fase antiga da língua com o valor enfático que supõe a segunda das aludidas alternativas, como sucede ainda hoje com belo, bom, mau e possivelmente outros adjectivos: cf. Belmonte, Boa Vista, Buena Mesón (prov. de Madrid), Malburgo (prov. de Pontevedra). Por outras palavras, a expressão morto-lago não se me afigura a priori mais “repugnante” que, p. ex., o galego Bonaval (conhecido como apelido do trovador Bernal de Bonaval), isolado também também em face de inúmeros Valbom, Valbon, Valbueno, etc., ou, para apontar um apelativo, preia-mar ”maré cheia”. Note-se que em ambos estes exemplos ( val (e) e mar) apresenta o género antigo feminino, o que me leva a supor que houve uma época remota em que a colocação “enfática” do adjectivo se fazia com facilidade maior do que em períodos mais recentes.

Falta ainda referir-me ao argumento do Sr. Dr. Silveira de a antecipação do adjectivo só ser concebível em áreas românicas expostas a um forte influxo germânico, argumento que só com restrições se me afigura válido. Num trabalho relativamente recente (1), o professor sueco Karl Michaëlsson, autoridade em assuntos de Onomástica, recusa-se a ver na frequentíssima anteposição do adjectivo em palavras compostas francesas qualquer influência germânica. Pessoalmente, não iria tão longe como ele, pois é indiscutível que tanto nos nomes comuns como nos próprios, o tipo adjectivo+substantivo vai-se avolumando visivelmente de oeste para leste. O que, no entanto, não sofre dúvida é que este tipo se encontra também em regiões francesas, onde a influência germânica (franca) não se fez sentir, ou pelo menos não de forma imediata. O Sr. Dr. Silveira citou os nomes franceses Aigue(s) Morte(s), Eau Morte e Le Lac Mort , mas posso opor-lhe Mortaigue (repetido; no séc. XIII MORTUA AQUA), Longève(§ LONGA AQUA), Liaigue ( no séc. XI LATA AGUA), para só citar estes exemplos (tirados do livro de Auguste Vincent), que correspondem todos a localidades sitas no departamento de Vienne, quer dizer já a sul do rio Loire, limite extremo, na melhor das hipóteses, da penetração efectiva franca e de um possível bilinguismo temporário.

No que toca à identificação do segundo elemento de Mortalago com LACUS, não se pode prescindir, creio eu, do testemunho de Mortalazelio/Mortazel, forma diminutiva de Mortalago, que pede incontestavelmente um tema com c, como existe em LACUS.

Finalmente, resta ainda o aspecto topográfico do nosso problema que, evidentemente, seria um erro desprezar. Designando Mortágua um sítio onde se sabe que existiu em tempos um lago estagnante, e sendo

(1) L’antéposition de l’adjectif épithète en français est-elle due à une influence germanique?, in  Mélanges de linguistique offerts à Albert Dauzat, 1951, pp. 215-34

Mortazel nome de um lugar próximo, com vestígios de um lago menor (1), não posso conformar-me com o repúdio categórico de uma explicação que tira Mortágua de MORTU(U)S LACUS, perfeitamente justificável tanto do ponto de vista fonético, morfológica e semântico, e que nos dispensa da conclusão resignada que «este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável».

Colónia

(1) Ver AMORIM GIRÃO, Geografia de Portugal, 1941, p. 129. nota

 

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GIRÃO, A. de Amorim: Geografia de Portugal; Portucalense Editora, Porto 1941

pp.128 e 129

II.- LAGOS

Ao estudo dos mares segue-se naturalmente o dos lagos. Os lagos são mares em miniatura: os problemas que nos apresentam devem ser, pois, embora em reduzida escala, os mesmos da oceanografia.

As poucas bacias lacustres que se encontram no nosso território continental têm reduzida importância; e, daí, talvez o aplicar-se-lhes o nome de lagoas, que na toponímia portuguesa geralmente designa zonas alagadiças, onde com maior ou menor permanência as águas se acumulam na época das chuvas.

Todas elas podem reduzir-se fundamentalmente a três categorias:

1) lagoas de origem marinha, provenientes da redução de antigas toalhas de água mais importantes e situadas geralmente na zona litoral;

2) lagoas de origem glaciária, localizadas todas elas na região mais elevada do País;

3) Lagoas de origem tectónica, resultantes de fracturas com abatimento de terrenos.

Pode dizer-se que, na transitoriedade das formas da superfície terrestre, uma bacia lacustre é sempre dos acidentes mais transitórios. Se a tendência dos agentes da erosão é para nivelar a superfície do solo e fazer desaparecer as desigualdades que ela por vezes nos apresenta, compreende-se como essa tendência deve particularmente verificar-se nos lagos, verdadeiras «anomalias do relevo» como já alguém lhes chamou.

Não faltam, com efeito, no nosso País, exemplos de bacias lacustre que foram progressivamente reduzidas até desaparecerem, quer pela evaporação, quer pelo depósito contínuo de materiais detríticos trazidos pelos rios ou por simples torrentes que nelas desaguavam.

A tradição e a toponímia guardam ainda recordação de algumas delas. Citamos apenas o caso de Mortágua, em velhos documentos ainda designada pelo nome de Mortalago ou Mortalaga, aludindo sem dúvida a uma antiga zona lacustre em progressivo definhamento que se estendis nas baixas da região (1); e o mesmo testemunho nos dá ainda a povoação de Mortázel ( em documentos medievais Mortalazelio), evocando no seu nome, como o diminutivo da palavra bem demonstra, outro lago mais pequeno também «morto», situado não muito longe do primeiro.

Referências a lagos ou lagoas hoje por completo desaparecidos encontram-se a cada passo nos nossos documentos antigos; e quási todas essas referências correspondem a zonas deprimidas onde encharcaram directamente as águas pluviais, ou se produziram inundações dos rios, ou mesmo pequenas transgressões marinhas.

 

(1) No seu artigo sobre Toponímia Portuguesa publicado na Revista Lusitana (Vol. XVII) em face das formas antigas da palavra, dá-nos o Sr. Dr. Joaquim da Silveira como étimo de Mortalaga o lat. mortale aqua, «água que mata», supondo que se teria aplicado tal nome , já desde o século X, ao Ribeiro de Mortágua, por motivo das suas águas doentias.

Quanto a nós, somos de parecer que o referido étimo deve entender-se como «água que morre» e não «água que mata», aludindo à progressiva e completa extinção da zona lacustre a que fazemos referência. Anda esta zona lacustre sem dúvida relacionada com os mesmos fenómenos que deram origem á bacia de abatimento bem evidenciada na nossa Carta Geológica; e dela restam ainda vestígios materiais num corte que parece ter sido intencionalmente feito para esgoto das águas, em época remota.

 

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SILVEIRA, Joaquim da

P. 278- 284

UMA EXPLICAÇÃO SOBRE “MORTÁGUA”

Mercê da gentileza do ilustre Director desta revista e com aquiescência do Sr. Dr. Joseph Piel, tive conhecimento , antes de impressas, das considerações precedentes, a propósito de uma nota, que aditei ao Índice geral, acima citado, dos meus artigos de toponímia, nota em que não só cantei a palinódia da situação etimológica, que em 1914 defendi na Revista Lusitana para o nosso topónimo Mortágua pelo lat. mortale-aqua, mas também critiquei a aceitabilidade da etimologia lat. mortuus lacus, que muitos anos depois me foi oposta para esse nome.

Pretende o Sr. Dr. Piel, que nesta minha crítica, ele era especialmente visado, apesar de eu o não nomear, pois defendera esta última etimologia no Boletim de Filologia de 1947, nos termos, que agora reedita.

Nisso, porém, está o douto professor muito enganado. Quer quando divirjo das suas opiniões, quer quando me louvo nelas, o que várias vezes tem sucedido, costumo sempre nomeá-lo.

Mas aqui não havia razão para tal, pois ele não foi o único, nem mesmo dos primeiros que, partindo de Mortalago, mais antiga forma do topónimo Mortágua, explicaram este nome pelo lat. mortuus lacus, «lago morto ou extinto, seco». O primeiro, que eu saiba, foi o Dr. Fortunato de Almeida, num artigo do jornal Comércio de Viseu de 1924, de que não indico o dia e o mês porque não o julguei digno de guardar e cito de memória. Por sinal que o Dr. Fortunato, no desejo de explicar a terminação –água da forma moderna do nome, até admitiu aí que o povo inculto alterou o elemento latino lacus em lacuna, pronunciando este rusticamente lácuna e criando assim o composto mortua-lácuna, de que sairia a actual Mortágua!! Perdoe-se-lhe a extravagância…

Vieram depois os distintos geógrafos Dr. Anselmo Ferraz de Carvalho, que o Prof. Piel cita, e Dr. Fernandes Martins, no seu livro O esforço do homem na bacia do Mondego, p.20, em 1940, que admitiram a existência antiga do lago esgotado (morto) denunciada pela velha forma toponímica Mortalago. O que não disseram foi a que tempos tal existência se reportaria…

Também o meu prezado condiscípulo Prof. José Lopes de Oliveira, em 1944, no vol. III do Guia de Portugal, p. 827, sugestionado pela etimologia de Mortágua, antiga Mortalago, comunga da mesma ideia do lago, a que atribui 30Km de superfície, dando-o por morto, isto é dessecado no séc. I da era cristã pelo corte da parede da respectiva bacia, do lado Sul – ou seja na garganta de Alçaperna.

E só três anos depois, em 1947, é que veio o artigo do Sr.Dr. Piel, tomando ainda os mesmos elementos para base da mesma hipótese etimológica. Claro que, como filólogo que é (os outros são historiógrafos ou geógrafos), só ele expôs e defendeu essa hipótese por uma forma metódica. Mas eu não critiquei o método; critiquei e critico a base, o mortuus lacus, que vinha já desde o Dr. Fortunato. Porque havia então de ser o Prof. Piel o anónimo visado?

Pondo agora de lado a expressão «concordância …de preto» ( que não levava veneno, mas tanta impressão lhe fez) (1), pois não interessa ao funda da questão, formularei, a propósito desta, uma primeira pergunta: - o que é que nos autoriza a cindir a palavra Mortalago em duas, afeiçoando-as às latinas mortuus lacus, ou às portuguesas morto lago, se em todos os documentos conhecidos, desde o de 985 até o terceiro quartel do séc.XII, onde se lê uma dúzia de vezes (2), figura sempre inteirinha, sem o mais leve indício de ser composta? Nada o autoriza, que nada é a arbitrária ideia de que nas suas duas sílabas finais está apalavra portuguesa lago, o que por sua vez originou a conjectura de que no local e arredores da vila de Mortágua devia ter existido uma bacia lacustre( sem discernir quando…) logo seguida da

(1) Ela foi provocada pela ocasional leitura, quando redigi a minha nota, dos autos Nau de Amores, Frágua d’Amor e O clérigo da Beira de Gil Vicente, onde o genial comediógrafo põe um preto da Guiné a palrar em português mascabado, com solecismos burlescos semelhantes a morta lago: -sua pai, minha bar(r)ete, santo caravela, tanta ladrão, etc., etc.

(2) Não especifico aqui esses docs. Só para não alongar em demasia esta explicação. A forma Mortalaga, com a final, que aparece uma vez apenas , é lapso evidente do escriba.

invencionice de que isso era uma tradição antiga.

Ora o que está para encontrar-se é qualquer referência a tal tradição ou lago antes do meu artigo de 1914, na Revista Lusitana, que foi o que trouxe para a ribalta da discussão a dita palavra Mortalago. Antes desse artigo, no que se pensava não era em lago, era em –água, por ser esta também a terminação da forma portuguesa do topónimo e é até por isso, que este aparece grafado já Mortaagua no foral de 1192 e Mortua aqua no latim dos escribas do séc. XIII, como disse naquele meu artigo.

Por outro lado, o que é, ou quem é, que nos garante que a boa acentuação daquela forma mais antiga era Mortalágo, como os meus antagonistas pretendem, e não Mortálago? Ninguém e nada, pois com uma ou outra acentuação do vocábulo, na evolução deste, perdido o l intervocálico, chegaremos sempre a igual resultado: - Mortaágo ou Mortáago > Mortago, como lat. PALATIU>pot. ant. paácio>paço no primeiro caso, ou lat. THALAMU> ant.port. táamo>tamo ou tambo, no segundo. Na passagem de Mortago a Mortágua, por influência do apelativo água, estamos de acordo.

O esdruxulismo de Mortálago, que levará o lago por água abaixo, não será mais estranho que, v.g., o de pélago e o de Sólago, topónimo este último, que nas inquirições de 1258 designa um lugar do concelho de Sever do Vouga e outro do de Castro Daire(P.M.H., Inq. pp.920 e 925), respectivamente ditos agora Sóligo e Solgo(s). Se não conhecemos bem a prosódia do primeiro daqueles vocábulos e a dos sucessores do segundo, facilmente os leríamos pelágo e Solágo, como se tem lido Mortalágo, e então talvez aparecesse também quem os supusesse compostos com o elemento lago e se descobrissem até vestígios deste nos arredores… E seria um erro.

Julguei inaceitável a construção do composto latino mortuus lacus ( ou port. morto lago) porque a colocação do adjectivo epíteto, determinativo, antes do substantivo, a que se liga, é contrária à regra. Essa ordem dos elementos componentes é característica das enfáticas, e a de mortuus lacus, em que não entra mortuus com o sentido de «extinto, esgotado, seco», não pode ser considerada como tal.

Mal compreendo como o Sr. Dr. Piel possa dizer, que não vê razão por que aquele adjectivo morto não se pudesse usar ocasionalmente, e numa fase antiga da língua, com o valor enfático…como sucede ainda hoje com belo, bom, mau e possivelmente outros adjectivos, que figuram em topónimos nossos ou de fora, como Belmonte, Boavista, Malburgo, Bonaval, etc. .

Mal compreendo, porque a diferença é capital. Estes últimos adjectivos, encomiásticos ou depreciativos, prestam-se claramente à ênfase e o outro não. A vista de uma concha lacustre naturalmente despejada (morta) porque secou, não desperta em ninguém, creio eu, sentimentos de admiração, entusiasmo, dor, aversão ou outros capazes de provocar, para o sítio dela, um nome, que ressumbre emoção. Dir-se-á, pois, chãmente Lago Morto, Lagoa Seca, como se diz Fonte Seca (e Fonseca), Rio Seco (e Roxico), topónimos que existem na verdade e nunca às avessas. A inversão dos termos nestes casos, na nossa língua, parece-me tão artificiosa que atinge o irrisório, embora não suceda o mesmo nas germânicas, onde tal inversão é regular, quer as expressões sejam enfáticas, quer não.

De resto o Prof. Piel, apesar da sua reconhecida competência no assunto, não conseguiu brindar-nos com um só exemplo, para amostra, de um nome de um lugar geográfico, antigo ou moderno, tanto do nosso país como da Espanha e até da Itália(excluo a França , pelo motivo que disse na minha nota), em que figure o adjectivo morto antes do substantivo a que pertence.

Por meu lado, à série de topónimos já ementados nessa minha nota, em que ele vem depois, aqui registo mais alguns: - «fontem Monachi Mortui», no foral de Covelinhas, conc. De Peso da Régua em 1191(P.M.H., Leges, p. 493); «loco qui dicitur Caballus Mortuus» na freg. e conc. de Valongo, e «hereditate…de Vinea Mortua», na freg. do Pinheiro, conc. de Castro Daire, - estes nas inquirições de 1258 (Inq. cit. pp.513 e 941) .  Modernos: Lago Morto na freg. e conc. De Valença; Cerva Morta, na freg. de Bouro, conc. de Amares; Fonte do Judeu Morto, na freg. e conc. de Castro Marim. Em Espanha: -«villa Sogra Mortua», no território de Urgel, em doc. de 815 (Serrano Y Sanz, Ribagorza, p. 101); e modernos Baca morta na prov de Huesca, e Boimorto, na de Corunha. Na Itália: - Omo-morto e Via-morta, no Véneto, referidos por Dante Olivieri na sua Toponomastica veneta, cap.IV.

A mesma ordem, documentada na toponímia, se nota nas frases-feitas e expressões correntes e tradicionais portuguesas: - casal de fogo morto (na Idade Média); bens e corporações de mão morta; Senhor morto (imagem de Cristo no túmulo); ortiga morta e cardo morto (plantas); horas mortas, letra morta, línguas mortas, sebe morta, obras mortas de uma nau, mosca ou mosquinha morta e outras, que podem ver-se no bem conhecido Dicionário de Morais, -tudo sem exemplo de colocação em contrário.

O nome preia-mar que o Prof. Piel trouxe à colação, aliás com outro adjectivo, não creio poder apoiar a sua tese, ainda que assente no lat. plena mare ( em port. corrente diz-se maré cheia), porque tem evidente carácter enfático e, além disso, não parece vocábulo patrimonial, como o não é em espanhol o paralelo pleamar, segundo mostra neste a conservação do grupo pl- e a queda do n intervocálico…

Quanto à expressão latina vivus lacus em Virgílio(Georg.2: - «Speluncae, vivique lacus et frigida Tempe»), que o Sr. Dr. Piel lembra, e a outra similar, que lembro eu, mais vulgar ainda, viva aqua, «água corrente», no mesmo Vergílio e em Varrão e Tito Lívio, segundo os dicionários, não prestam igualmente para aquele fim, a meu ver. São claras expressões literárias, de construção não popular, sem uso conhecido na toponímia. Quando se quer passar a última para este campo, troca-se-lhe a ordem dos elementos e põe-se na regra, como mostram, v.g., o nome de Aqua viva de uma estação vial da Panónia, no Itinerário de Antonino; o nome de Acquaviva de várias povoações actuais da Itália, o de Agua-viva e Aguas-Vivas, idem da Espanha, e o de Aguas Vivas em Portugal, concelhos de Miranda do Douro e Chamusca.

Consoante se terá notado, a hipótese etimológica aqui debatida, por viável que fosse, assenta toda num pressuposto: a existência, no sítio da actual vila de Mortágua e arredores, de um lago, que morreu há muitos séculos. Mas creio que temos estado a gastar cera com um defunto fantástico. O meu espírito recusa-se a dar adesão àquele pressuposto, pelo menos nos tempos históricos, enquanto não tiver melhores abonadores, que as duas sílabas finais, arbitrariamente arrancadas ad hoc ao próprio topónimo, cuja origem se procura.

Muito a propósito, o Dr. José Assis e Santos, pessoa muito culta e médico municipal do concelho de Mortágua, que ele conhece a palmos, versa o assunto do lago, chamando-lhe «mitológico» na sua recente monografia Mortálacum, Coimbra, 1950. Nessa monografia, que me parece geológica e topograficamente valiosa ( sem poder dizer o mesmo no ponto de vista histórico e menos ainda quanto a etimologias…), no parágrafo A lenda do lago, p. 240b, escreve o A.: - «Uma elementar operação de nivelamento demonstra, que as rochas de Alçaperna( as tais que constituiriam a parede do lago, do lado Sul), não dariam a cota precisa para o represamento da água poder cobrir as várzeas ( que cercam Mortágua), ou mesmo uma parte importante delas. A hipótese do lago carece, portanto de exequibilidade topográfica».

Quer dizer, foi-se o lago! Não será isto suficiente para arquivar a hipótese etimológica que nele se fundava?

Finalmente: Não pretendo contestar a opinião dos geógrafos atrás mencionados favorável à existência , nas alturas de Mortágua, de uma antiga bacia lacustre (embora sem isso nada ter a ver com o nome Mortalago…); mas, interpretando o sentido vago e sumamente elástico do adjectivo antigo, creio não atraiçoar essa opinião – e só assim a aceito – relegando tal existência, como o faz o Dr. Assis e Santos (obra cit., p.241 a) para os fins da era terciária e começos da era quaternária, em todo o caso antes do dobramento-fractura pós-alpino, que abriu nas faladas rochas de Alçaperna a brecha, hoje garganta, que esvaziaria tal bacia  e que imprimiu ao relevo superficial da respectiva região uma ultima e bem profunda remodelação, a actual. Estou com o monografista, quando diz, concluindo o seu arrazoado:

« O conceito de um portentoso lago, de 5Km. Quadrados ou mais, corresponde a uma realidade geológica provável; o brusco esvaziamento é outro facto geológicamente verosímil. Mas tudo isso respeita a uma época prodigiosamente distante, da escala de meio milhão de anos antes do nosso tempo…» (O sublinhado é meu). Quer dizer, respeita a um tempo em que nem homens  havia ainda, quanto mais homens, que já falassem latim, nestes confins ocidentais da Europa, para nos transmitirem na sua língua, com ênfase, a tradição do mortuus lacus

Bons ou maus, é por estes motivos e razões, e não por espírito de contradição, que sou levado a fechar esta explicação com as mesmas palavras com que fechei, no Índice geral, a minha nota sobre Mortágua:  - «Este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável».

E faço-o com sincero pesar


AINDA A ETIMOLOGIA DE MORTÁGUA

« Al fin de los anos mil, vuelven los nombres por donde solian ir.» 1

 

JOSEPH M. PIEL

(COLÓNIA - LISBOA)

Não é por espírito de contradição ou vão gosto de discussão que me permito voltar mais uma vez ao problema da origem de Mortágua, debatido com o Sr. Dr. Joaquim da Silveira nas páginas da Revista Portuguesa de Filologia, t. X, 1960, pp. 273-277 e 278-284, respectivamente, para onde remeto o Leitor.

Eis, sumariamente lembrados, os aspectos essenciais da questão:

Pensara eu, contrariamente à opinião do Dr. Silveira, que Mortágua, forma que foi precedida, na Idade Média, por Mortalago 2, representaria originariamente um composto mortu(us) lacu(s), ideia tão natural que já ocorrera – o que eu ignorava – ao Dr. Fortunato de Almeida. Reconheço ser muito impressionante a falange de argumentos, mobilizada contra este modo de ver, e que vou tentar examinar com a máxima objectividade.

- O facto de Mortalago aparecer sempre escrito, na documentação medieval, por inteiro, não favoreceria a hipótese de esta forma resultar de um nome composto de dois elementos independentes. – A este argumento, sem dúvida de peso, poderia objectar-se que, uma vez produzido, em *Morto  lago, o fenómeno de dissimilação o-o > o-a , ou   -o que vem a dar na mesma – o da assimilação o-a > a-a, e posto a seco o «lago», seja por agentes naturais, seja pela acção do homem, se podia

1António Vélez de Guevara, El Diablo Cojuelo (ed. Clásicos Castellanos, p.56), que substitui espirituosamente neste refrão popular,  nombres  a aguas, versão que também conviria ao nosso caso.

2 A «etimologia popular», que está na base da forma moderna, viria de longe, pois já num documento dos fins do séc.XII (PMH, Leges et Consuet.,p.482) lemos Mortaagua

muito bem ter perdido a consciência do caracter primitivamente composto do topónimo em causa, principalmente se admitirmos tratar-se  de uma formação muito antiga.

- Ignoramos qual acentuação da forma medieval Mortalago, aqual, segundo o Dr. Silveira, poderia ter sido esdrúxula: *Mortálago. – Esta dúvida metódica não deixa, evidentemente, de ser legítima. Basta pensar na evolução de  thálamus > ant. táamo, tam(b)o (exemplo talvez mais apropriado que o outro, também aduzido pelo Dr. Silveira: palatium > paaço, de prosódia diferente da postulada em relação a *Mortálago). A averiguar-se aquela hipótese, está claro que isto levaria o lago «por água abaixo», na pitoresca expressão do meu ilustre interlocutor, e sem que, aliás, uma lágrima minha viesse aumentar o seu hipotético caudal. Cabe, porém, perguntar: Não seria antes *Mortalago, não obstante o exemplo de thálamus > ta(a)mo, com conservação da vogal postónica ( pois uma evolução não exclui outra, e o tratamento das vogais intertónicas revela-se bastante contraditório), e não se conceberia melhor a atracção paronímica, exercida, desde o séc. XII, por água, partindo de uma forma terminada em –ago  e não em –áago?

- A anteposição do epíteto determinativo, na composição *mortu lacu, seria – sempre segundo o Dr. Silveira – contrária à tradição românico-portuguesa. Em face de numerosos exemplos, tanto na toponímia como no léxico comum portugueses, da posposição do qualificativo morto, não se pode, com efeito, apresentar nenhum caso do uso inverso. –Não deixei desde o princípio de reconhecer a legitimidade deste argumento, que continuo a tomar na devida consideração. Cheguei a admitir que, no nosso caso, a ordem insólita dos dois componentes poderia obedecer à intenção de realçar enfaticamente o epíteto. O Dr. Silveira nega que o adjectivo morto se possa prestar a um emprego comparável ao de belo e mau em Belmonte e Malburgo, respectivamente, mas pergunto se a diferença entre mau e morto, neste contexto, será tão «capital» como ele a admite. Desde que imaginemos morto em contraste com vivo, que, creio eu, é a característica normal das águas, pelo menos na região que nos interessa, pode, em princípio, surgir esporadicamente uma situação que convide à anteposição enfática do adjectivo. O facto de o tipo Vila Pouca (ant. pouco= “pequeno”), que neste momento me ocorre, ser o normal, não exclui que haja, no Minho, três Pouca Vila ( 1.f.Figueiró, c. Amarante; 2. F. Mancelos, c. Amarante; 3. F. Negrelos, c. Santo Tirso), assim como Valboa não exclui Boaval (3). Estou de acordo em que hoje se dirá normalmente, como na Idade Média, Lago Morto, Lagoa seca, etc. e que a inversão dos termos parecerá «tão artificiosa que atinge o irrisório; pois é esta ordem dos termos que confere valor enfático ao adjectivo». No entanto, pergunto: terá sido sempre assim? E no exemplo de Pouca Vila não haverá vestígio de um uso diverso, mais antigo? Desde que admitamos que *Morto Lago ascende como formação a uma época proto-histórica ou mesmo latina, o caso muda de figura (4). Com efeito, segundo uma estatística minuciosa de Karl Wydler (5), a anteposição do adjectivo atributivo em textos latinos, impregnados de elementos estilísticos e lexicais populares, assim como textos tardios «vulgares», é muito mais frequente do que em textos clássicos. Assim, p. ex., no Satiricum de Petrónio aproporção respectiva é de 70%, sendo na chamada Peregrinatio Aetheriae ad loca sancta (séc. V) de 31% (cf. p.259). Tocamos com isto num problema

 

(3)O caso é evidentemente diferente do de nomes como Pouca Lã, Pouca Farinha, Pouca Roupa, Pouco Siso, Pouca Vergonha, Pouco Dinheiro, etc., topónimos provenientes sem dúvida de sobrenomes aplicados aos moradores dos lugares respectivos. Só Pouca Pena (Soure) pode prestar-se à dúvida: pena= “penha” ou , o que é mais provável, = “trabalho”.

(4) Se hoje ninguém se lembrará de dizer cheia-maré, baixa-maré, sempre houve gerações que articularam os dois elementos ao inverso: preia-mar, baixa-mar, formações cuja antiguidade é atestada pelo género feminino de mar. Não creio haver lugar de duvidar do carácter patrimonial de preia-mar, não obstante o pr- inicial, em oposição ao ch- de cheio. O dualismo do tratamento do grupo pl- etimológico deve remontar ao próprio latim hispânico, reflectindo duas correntes sociologicamente diferenciadas. O esp. pleamar deve representar um lusismo ou galeguismo , como costa, em sentido marítimo, em oposição a cuesta, em sentido orográfico.

(5) Zur Stellung des attributiven Adjectivs vom Latein bis zum Neufranzösischen. «Romanica Helvetica», vol. 53, Berna, 1956.

Importante da história toponímica portuguesa e peninsular em geral, que, salvo erro, não foi ainda seriamente examinado no seu conjunto: o de saber quais os nomes de substância latina, - refiro-me evidentemente aos não transmitidos em fontes da antiguidade, os quais, aliás, não são numerosos e se referem apenas a localidades que então possuíam certa importância – que se radicam ainda na época romana ou visigoda, e quais se devem considerar como sendo de formação românico-portuguesa. Devido às vicissitudes da história hispânica ( arabização, ermamento parcial, Reconquista9 esta ultima categoria vem a ser, como se sabe, de longe a mais importante, mas não oferece dúvida que uma porção relativamente considerável de topónimos portugueses e espanhóis, formados de elementos do léxico comum latino, remonta ainda ao próprio período romano. Faltam, porém, por ora critérios seguros para distinguir estas duas camadas históricas. (6).

- Falta ainda referir –me ao aspecto geomórfico da questão. Invoca o Dr. Silveira a opinião de entendidos na matéria, que negam a possibilidade da existência, em tempos históricos, de uma bacia lacustre nas imediações de Mortágua. – Registo de bom grado esta rectificação, mas não creio que afecte decisivamente o aspecto filológico do problema. Se o suposto lago pré-histórico «se foi», sempre pode ter ficado um resíduo dele  ou ter existido uma água estagnada qualquer, que motivasse a denominação Mortuus Lacus, pois lacus em latim não designa necessariamente uma grande extensão de água parada, podendo o termo aplicar-se até a uma simples poça.

- Finalmente, permito-me insistir novamente num pormenor, que o Sr. Dr. Silveira na sua «Explicação» passou em silêncio, mas que me parece merecedor da maior atenção. É o topónimo Mortázel, ant. Mortalazelio (985), povoação que fica a pouca distância de Mortágua(7)

(6) Nos casos em que um topónimo corresponde a um arcaísmo ou regionalismo lexical português, facto que tenho a impressão se observa com particular frequência no Minho e Douro Litoral, sem falar da Galiza, não hesitaria em atribuí-lo, de preferência, à época romana ou visigoda.

(7)na freguesia de Sobral, próximo de Vila Moinhos,  conc. de Mortágua

e cujo nome só pode ser interpretado como diminuitivo do ant. Mortalago. Não será lícito inferir daquela forma, com z, que o g de Mortalago supõe um c (k) etimológico (8), sendo pois *Mortalaco a forma primitiva a postular, o que viria trazer alguma água ao moinho do nosso lago? É verdade que, por outro lado, a forma Mortalazelio (9) atestaria a grande antiguidade do a da segunda sílaba de Mortalago, obrigando-nos a atribuir o fenómeno assimilatório ou dissimilatório, que fez de *mortolago: mortalago, a uma época proto- ou pré-românica. Estou consciente da fragilidade desta suposição.

Tentei expor o mais fielmente possível o estado do dificílimo problema da origem de Mortágua. Se o Dr. Silveira voltou a concluir que «este nome é ainda um enigma que aguarda decifração aceitável», procurei reunir alguns elementos tangíveis que talvez possam atenuar este cepticismo extremo em relação à suposta etimologia *mortu lacu, a qual, sem de modo algum se poder considerar definitivamente assente, sempre merece ser tomada em conta.

Não teria ousado insistir no assunto, se ele não envolvesse problemas de método e de princípio, que só através de um diálogo se podem aclarar, e se não fosse para mim um prazer espiritual trocar impressões com um erudito tão competente e sabedor em assuntos da toponímia portuguesa como o é o Sr. Dr. Joaquim da Silveira, a quem peço que considere esta nota como uma homenagem que lhe pretendo prestar.

 

 

(8) De Mortalago, com –g- primitivo, resultaria normalmente *Mortalagelio/ *Mortagel . O z de Mortalazelio deveria articular-se como dz, em conformidade com a sua procedência de ts < c(e).

(9) Não me atrevo a pronunciar-me sobre o problema de saber se a terminação antiga  -elio está por –elho < -iculu (cf. Montelhos, Valhelhas, etc.), ou se representa uma forma arbitrariamente ampliada do moçárabe –el < -ellu, segundo faz supor a forma moderna do topónimo.

*****


Desde os artigos de  Joaquim Silveira e Joseph Piel, não existem publicações que tragam mais luz à questão.

Maria Luísa S. M. de Azevedo, na sua dissertação de Doutoramento25 na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 2005, faz uma súmula do conhecimento actual, sem acrescentar novos dados:

De facto, Mortágua situa-se na área de uma antiga concha lacustre, hoje desaparecida (a chamada Bacia de Mortágua); e o pequeno povoado de Mortazel, a norte, evoca “outro lago mais pequeno também «morto», situado não muito longe do primeiro”.827 Joaquim da Silveira deu a conhecer abonações antigas, como Mortalago

(985), Mortalaga (986), Mortaagua (século XII) e Mortalazelio (985); e propôs para o

 

827 Aristides de Amorim GIRÃO, Geografia de Portugal, Porto, 1941, p. 129. Alfredo Fernandes

MARTINS, O esforço do Homem na bacia do Mondego, Coimbra, 1940, p. 20. Ambos os

geógrafos conheciam bem a zona em causa.

 

nome da vila a origem MORTALE AGUA ‘água que mata’.828 Mais tarde, J. Piel, considerando que em documentos do século X há quatro ocorrências de Mortalago e só uma de Mortalaga, encara a primeira “como merecedora de maior confiança, fazendo entrever o étimo MORTUUS LACUS, que recebe a sua confirmação em

Mortalazelio”, que sugere, no segmento final, um ponto de partida em “LAC- ELLUS”.

Quanto à evolução de Mortágua, acha que “numa forma proto-histórica *Mortolago, o o átono se assimilou ao a” acentuado; e na sequência da síncope de -L- perdeu-se a significação de -ago, “de que a etimologia popular fez água”.829

A estas abordagens seguiram-se dois outros artigos de cada um dos autores, gerando uma controvérsia que se prolongou por mais vinte e três anos e cujas conclusões passam a resumir-se.

Joaquim da Silveira rejeitou a proposta de Piel, sublinhando em especial que no sintagma proposto como fonte etimológica — mortuus lacus — o adjectivo anteposto ao nome (como nas línguas germânicas) não era conhecido em topónimos da Península Ibérica nem da Gália; o mesmo argumento levou-o a pôr também de parte a sua própria sugestão inicial — mortale aqua — e a concluir, no final de ambos os artigos, que “este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável”.830

Joseph Piel, por sua vez: refuta com bastantes exemplos a ausência do referido tipo de sintagmas no âmbito geolinguístico

mencionado; reconhece que se trata de um problema etimológico difícil; considera todavia, no último artigo, ter aduzido elementos que podem atenuar o “cepticismo extremo em relação à suposta etimologia *mortu lacu, a qual (...) sempre merece ser tomada em conta”.831 No mesmo trabalho, este Autor volta a considerar a morfologia histórica de Mortazel com base na antiga abonação Mortazelio: talvez -elio pudesse representar -elho (< -iculu); mas inclina-se para a origem que anteriormente propusera — deve tratar-se de uma grafia “arbitrariamente ampliada do moçárabe -el

< -ellu, segundo faz supor a forma moderna do topónimo”.832

 

828 J. da SILVEIRA, “Toponímia portuguesa”, Revista Lusitana, vol. 17, 1914, p. 119-120.

829 Joseph M. PIEL, “As águas na toponímia galego-portuguesa”, cit., p. 307-309.

830 J. da SILVEIRA, “Notas”, Índice Geral dos Artigos de Toponímia Portuguesa de Joaquim da

Silveira, Coimbra, 1959, p. 33-35; IDEM, “Uma explicação sobre “Mortágua””, Revista

Portuguesa de Filologia, vol. X, 1960, p. 278-284. A frase citada encerra os dois artigos.

831 Joseph M. PIEL, “A propósito do nome da Vila de Mortágua”, Revista Portuguesa de

Filologia, vol. X, 1960, p. 273-277; IDEM, “Ainda a etimologia de Mortágua”, Boletim de

Filologia, t. XXII, 1973, p. 59-63. Este último título merece especial atenção porque resume, de

forma sistematizada, todos os argumentos que foram dirimidos. A citação é da p. 63.

832 Joseph M. PIEL, “Ainda a etimologia de Mortágua”, cit., p. 62 “

 

25 AZEVEDO, MARIA LUÍSA SEABRA MARQUES DE :: TOPONÍMIA MOÇÁRABE NO ANTIGO CONDADO CONIMBRICENSE. FACULDADE DE LETRAS -  UNIVERSIDADE DE COIMBRA  2005

 

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A minha contribuição está dada. Agora só falta resolver a questão...



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