A propósito do nome de Mortágua
Pesquisando em documentos antigos, encontramos pelo
menos uma dúzia de maneiras diferentes
de referir a localidade a que hoje chamamos Mortágua, e que se foi alterando ao
longo do tempo.
A saber:
Mortalago 1,2, 3, 4, 5, 6, Mortalaga 7,
Mortaaga 8, 9, 10, Morta agua 11,12, Mortua aqua 13,
14, Mort’agua13, Mortaaagua 15, Morta Augua 16,
Mortaagua 17, Mortaauga 18,19, Mortaugoa 20,
Mortagoa 21, 22, 23.
Se para alguns a etimologia da palavra parece
evidente, os especialistas não são unânimes e a controvérsia arrastou-se
durante muitos anos e ainda hoje não está completamente esclarecida.
Lopes d’Oliveira que contabilizamos entre os
primeiros diz no Guia de Portugal: “A
etimologia da palavra Mortágua ( Mort’Água, Morta-Agua, Mortallago se diz nos
documentos dos sécs. IX e X) bastaria a conservar a tradição deste lago.”
A verdade é que
ainda hoje esta questão não está satisfatoriamente resolvida. Infelizmente, o
meu conhecimento não me permite dirimir a questão, mas deixarei aqui as bases
para cada um poder ter uma posição mais esclarecida e, quem sabe, dar-nos uma
perspectiva mais definitiva.
1 985 -Doação de Oveco Garcia ao
Mosteiro do Lorvão- Portugaliae
Monumenta Historica- Diplomata et Chartae, vol.I,
fasc.I, p.93. Academia de Ciências. Lisboa 1967
21064
- Inventário dos bens do
Mosteiro da Vacariça - Portugaliae Monumenta
Historica- Diplomata et Chartae, vol.I,
fasc.II, p.277. Academia de Ciências. Lisboa 1969.
31128
- Doação..”hereditates quas
habeo in Mortalago ..”- VENTURA, Leontina;VELOSO,M.T. : Livro Preto da Sé de Coimbra. Vol.2 , p. 166-7
.Universidade de Coimbra 1978.
41130
-Doação..“Johanni Lazariz
presbítero dare Menendo Pelaiz hereditatem meam propriam quam habeo in
Mortalago…”- VENTURA, Leontina;VELOSO,M.T. : Livro Preto da Sé de Coimbra. Vol.2 , p. 152
.Universidade de Coimbra 1978
51143- Doação “quam adquivisi cum uxore mea domna
Maria Anaia in Mortalago super strata,…” - VENTURA, Leontina;Faria, A. S.. : Livro Santo de Santa Cruz , INIC, p. 145 . Coimbra 1990
61175-
villa de
Mortalago..”Testamento de Mestre João ao mosteiro de Lorvão - VENTURA, Leontina;Matos,J.da
C. : Diplomatário da Sé de Viseu( 1077-1278)
T.T.
– Sé de Viseu, m.IV, doc.18, Carta
partida por ABC
7986
- Doação de Munio Gonçalves ao
Mosteiro do Lorvão - Portugaliae
Monumenta Historica- Diplomata et Chartae, vol.I,
fasc.I, p.96. Academia de Ciências. Lisboa 1967
81162
- Doação “..hereditates mee quam habeo in Mortaaga…”- VENTURA, Leontina;
VELOSO,M.T. : Livro Preto da Sé de Coimbra. Vol.2 , p. 195 .Universidade de Coimbra 1978
91192 - Foral de Mortágua concedido
por D. Dulce e D. Sancho I - Portugaliae
Monumenta Historica- Leges et Consuetudines,
vol.I, fasc.III, p.482. Academia de Ciências. Lisboa 1968.
101220-1229
- Sancta
Maria de Mortaaga -
BOISSELLIER, STÉPHANE : La liste
des églises de patronage royal de
[1220-1229]-
construction administrative d’un royaume - Registres de
Bénéfices Ecclésiastiques Portugais (XIII-XIV e Siècles). Lisboa
2012.
111271
- Testamento de D. Afonso III “ mando D. Aleonor, quã habui de Elvira
Stephani, heritatem meam de Morta agua”- ESPERANÇA, Fr. Manoel da : Historia Seraphica, p. 147
BRANDÃO, Fr. António: Monarchia Lusitana,
Quarta parte. Lisboa 1632.
12 Doação de “hũa
herdade sita ẽ Pynheiro termho de morta
agua - FIGUEIREDO, Jozé Anastasio : Nova Historia da Ordem
de Malta em Portugal, Parte I, p.398. Lisboa 1800
131304
-“ huma Carta de Sentença da
Corte, dada a 25 de Outubro da mesma Era de 1304, super directuris de Mortua Aqua, a requerimento, e Demanda de Johãnes petri dictus farina, então ainda
só tenens aquella Terra do Mort’agua, da mão do mesmo
Sr. Rei D. Afonso III “- FIGUEIREDO, Jozé Anastasio : Nova
Historia da Ordem de Malta em Portugal, Parte II, p.201. Lisboa 1800
14Era
supradicta millesima CCCa LIXa - ecclesiam Sancte Marie de Tremar
<Tremoa sive Mortua Aqua>- BOISSELLIER, STÉPHANE : La construction administrative d’un royaume
- Registres de Bénéfices Ecclésiastiques Portugais (XIII-XIV e
Siècles). Lisboa 2012
151331 - Testamento de Leonor Afonso
ao Mosteiro de Santa Clara de Santarém - SOUSA, Antonio Caetano: Provas da Historia Genealógica da Casa Real
Portugueza. Tomo VI. p.
574-575. Lisboa 1747
16
Era supradicta millesima CCCa LIXa - ecclesiam Sancte Genesii de Morta Augua - BOISSELLIER, STÉPHANE
: La construction administrative d’un
royaume - Registres de Bénéfices Ecclésiastiques Portugais (XIII-XIV
e Siècles). Lisboa 2012
171367
- D. Fernando
concede ração, na Gafaria de Coimbra, a alguns leprosos e sãos. Estevam Ferrnandez naturall de Mortaagua - ROCHA,Ana
Rita Saraiva da: A
INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS LEPROSOS - O Hospital de S. Lázaro
de Coimbra nos séculos XIII a XV. FLUC Coimbra 2011 AUC – Pergaminhos do Hospital de S. Lázaro, IV
– 3.ª – 52 – 2 – 32 (traslado datado de 1429 Outubro, 26, Coimbra). ANTT – Chancelaria
de D. Fernando, liv. 1, fl. 15-15v.
181376 - ..e Pena Cova e Santa Coonbba e Mortaauga e Oboa…- Doação das Vilas de Terena e de Ferreira, por D.
Fernando I, a sua filha a Infanta Dª Beatriz em 24 de Março de 1376
191459 - enprazaram
logo a dicta cassa ao dicto Joham de Mortaauga,- T/AHMC/ Col.Pergaminhos
Avulsos, nº 80
201514
- ..comçelho de
mortaugoa - Foral Manuelino de Mortágua
211668
- …Mortagoa, Penacova,Vlllalva…- Tratado de Pazes entre os sereníssimos e
poderosíssimos príncipes D. Carlos Ii, Rey Catholico , e D. Afonso VI, Rey de
Portugal.
221870
- OS FACTOS POR J. G. DE BARROS E
CUNHA
23
- …hirmã
de Gco Eanes de Sousa Sr de Mortagoa…-Morais, Cristóvão Alão de
” Pedatura
Lusitana” a pag. 28.
24 Guia de Portugal 3º vol. - 1ª edição -1944 -2ªedição: Fundação Calouste Gulbenkian – 1985 - Beira pp. 827-8
SILVEIRA,
Joaquim: Toponymia portuguesa. Revista Lusitana, vol. 17º, nºs 1
a 4, Lisboa 1914, pp.119-120
15.
Mortágua
Antigo
castro e vila, sede de um conc. no distrito de Viseu, sobre uma ribeira do
mesmo nome, afluente do Mondego.
As
mais antigas formas que conheço deste toponymo são: - castro de Mortalago e ribulo Mortalago em doc. de 985; castro de Mortalaga e ribulo Mortalago,
em doc. de 986; Sancta Christina de
Mortalago em doc. de 1064; e ainda Mortalago no séc. XII (1).
No
fim deste séc. e durante o seguinte
aparecem as grafias Mortua aqua, Morta
agua, Mortaagua e Mortaaga (2)onde, pelo menos nas duas primeiras
transparece o malogrado intento dos escribas de recompor a forma inicial do
toponymo, pela pronuncia vulgar , que seria já então, como hoje, Mortágua.
A
falsidade desta reconstrução serôdia é, porém, palpável em face das formas mais
antigas Mortalago, Mortalaga e ainda
do seu diminutivo toponymico Mortalazelio, que no referido doc. de 985 designa um
ligarejo ao N. de Mortágua, chamado hoje Mortázel. Estas formas postulam
irrevogavelmente como étymo o lat. mortale
aqua, «água que mata», para explicar o
l intermédio, e não mortua aqua,
«água morta».
É
claro que a denominação seria dada primitivamente ao ribeiro de Mortágua, por
virtude das suas águas doentias e do ribeiro passaria ao castro e à povoação.
Na
nomenclatura fluvial portuguesa há os nomes Agua
Má e Rio Mau, da mesma origem
ideológica.
1 P.M.H.. Dipl. et Ch. n.os
148,154 e 444; Livro Preto (original
,na T. do Tombo)fl 2v. e 31.
2 Nova Malta, I, 398, II, 201; Foralia, 482; Ms. da T. do Tombo,
Gav.19, maço 14, nº7; Mortaaagua in Rev.
Lusit. IX, pag.136
PIEL, Joseph
Pg. 273 – 277
A PROPÓSITO DO NOME DA VILA DE
MORTÁGUA
Em
Notas a um Índice geral dos artigos de
toponímia portuguesa de Joaquim da Silveira, publicado pelo Instituto de
Estudos Românicos da Faculdade de Letras de Coimbra ( 1959), o Sr. Dr. Silveira
revê , a pp. 33-35, a etimologia por ele defendida há anos a respeito de Mortágua, nome que , em face da forma
antiga Mortalaga, explicara como provinda
de MORTALE AQUA “água que mata” (cf. Rev.
Lus., XVII, 1914, 119-120). O que o levou a repudiar esta etimologia, é a
circunstância de o adjectivo MORTALIS não ser conhecido como elemento
toponímico e, além disto, de o adjectivo epíteto não poder preceder o
substantivo, pois « a regra é o adjectivo atributivo seguir (e não anteceder) o
substantivo, a que se liga,- salvo nas expressões enfáticas ou de
encarecimento, de que aui não pode ser o caso». Depois desta aclaração o
erudito Autor prossegue textualmente:
« Houve muitos anos
depois (scil. da publicação do seu artigo) quem, contestando a minha
hipótese, entendesse que a base inicial do nome em questão seria antes o lat. MORTUUS
LACUS “lago morto, extinto, seco”.
A primeira observação que esta hipótese suscita, é a
de não se compreender como é que uma clara expressão primitiva “morto
lago”(lat. MORTUUS LACUS), com os seus elementos,
adjectivo e substantivo, bem coordenados, poderia vir a ser alterada, na boca
do povo, para morta lago (ou seja o Mortalago dos docs.) com o adjectivo
feminino em concordância… de preto como o substantivo masculino. Não parece
burlesco? Mas pior do que isso, se
possível, é que teríamos aqui, como naquela minha repudiada etimologia, atal
inversão dos elementos do nome composto, contra a regra indicada.
Uma denominação como Morto lago, num país anglo-saxónico, germânico, ou de forte forte
influência germânica na respectiva gramática toponímica, era naturalíssima; em
Portugal seria repugnante. Os nossos topónimos compostos, antigos e modernos,
em que entra o adjectivo morto, ou
outros similares, têm estes sempre no fim: - Água Morta, Moura Morta … (seguem-se mais uma dúzia de exemplos
tirados da toponímia portuguesa).
O mesmos sucede nos outros países de línguas
românicas, v. g. em Espanha – Rio Muerto…(mais
cinco exemplos tirados da toponímia espanhola e italiana). Na própria França,
onde a influência transtornou em bastantes casos a regular coordenação latina,
foi esta respeitada em geral, nas regiões meridionais, que nos oferecem
topónimos como Eau morte…, Aigue morte, Le Lac Mort…, Aigues Mortes… e mais.
O nome célebre do Mar
Morto da Palestina, que pode servir de guião a esta série, nunca teve outra
ordem nos seus elementos, sendo já Mare
Mortuum na antiguidade clássica,
como poderá verificar, por exemplo, em qualquer Calepino.
A conclusão, a que quero chegar, é que nem o meu MORTALE-AQUA,
nem o MORTUUS LACUS, que me foi oposto, podem servir para
explicar o nosso antigo topónimo Mortalago,
que foi o progenitor do moderno Mortágua.
Este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável ».
Sendo eu, creio, o anónimo
visado nesta crítica, a qual deixa crer que defendi uma absurdidade, seja-me
permitido que retome brevemente o assunto. O que há anos escrevi (no artigo As águas na toponímia galego-portuguesa,
no Boletim Filologia vol. VIII, 1948,
p.308 e seg), e que ainda hoje me parece defensável depois de alguns retoques,
é o que se segue:
« Por constituir
um exemplo muito instrutivo no ponto de vista metódico,
vale
a pena determo-nos um pouco no problema que apresenta o nome da sede do
concelho de Mortágua (Viseu). Como no caso de Aguada, a forma moderna, que uma
pessoa desprevenida aproximará instintivamente do fr. Mortaigue e Aigues Mortes “águas
estagnantes”, é enganosa, porquanto as formas medievais soam Mortalago 985, Mortalaga 986. Apontando
ainda o nome do lugarejo Mortazel, ao
N. de Mortágua, em 985 Mortalazelio, o Dr. J. da Silveira chega
à seguinte conclusão: « Estas formas postulam irrevogavelmente como étimo o
lat. MORTALE
AQUA “água
que mata”, para explicar o l intervocálico, e não MORTUA
AQUA
“água morta” ». Quer-nos parecer que os elementos reunidos pelo consagrado
toponimista pediam uma solução diferente daquela que estipula. Com efeito, a
circunstância de, em documentos dos séc. X a XII, figurar nada menos de quatro
vezes a forma Mortalago, e só uma a
de Mortalaga, obriga-nos a considerar
aquela como merecedora de maior confiança, fazendo entrever o étimo MORTUUS
LACUS, que
recebe a sua confirmação de Mortalazelio.
É de notar que, tirado de aqua,
dificilmente adoptaria o final -azelio, mod. –azel (cf. O dimin. Aquella 922, que o citado Autor aponta a
pág. 117 do mesmo artigo), que logo se explica desde que admitamos como base LAC-ELLUS
ou LAC-ICULUS
(1). A expressão MORTUS
LACUS,
que lembra, por contraste, VIVUS LACUS
(Virgílio), corresponderia óptimamente à realidade topográfica, visto a chamada
actualmente Bacia de Mortágua provir de uma antiga concha lacustre, hoje
esgotada.
Quanto ao aspecto fonológico (leia-se fonético) do
problema, afigura-se-nos que, numa forma proto- histórica *Mortolago, o o átono se
assimilou ao a, que levava o acento.
Vindo ajuntar-se a esta transformação o emudecimento do –l-, foi-se perdendo a pouco e pouco a memória da verdadeira significação de -ago,
de que a etimologia popular fez
(1) LAC-ELLUS e LAC-ICULUS
(?) pedem
um asterisco, pois só estão atestados LAC-ULUS
e
LAC-USCULOS
ágoa.
Diremos ainda que a colocação do adjectivo antes do substantivo (o uso românico
é o inverso; cf. o top. Lago Morto) indica grande antiguidade da
povoação».
Do que ficou transcrito
depreende-se: primeiro, que não deixei de aludir à ordem insólita, no ponto de
vista românico-português, dos dois elementos constitutivos de Mortágua, a qual considerei um arcaísmo;
segundo, que não me passou evidentementepelo espírito admitir uma “concordância
de preto”, poia atribuí a forma antiga Mortalago
a um fenómeno de assimilação o-a > a-a , explicando o emudecimento do l intervocálico como resultado de uma
antiga e íntima fusão do epíteto com o determinado, a qual, por sua vez, levou
à deturpação , em concordância com Morta-,
de –ago para –agoa. A quem esteja familiarizado com as vicissitudes, não raro
desconcertantes, da história fonética de bastantes nomes de lugar, muito mais
sujeitos a acidentes “extravagantes” do que os nomes comuns, não repugnará
admitir este modo de ver.
No que se refere ao segundo
reparo do Sr. Dr. Silveira, de que « os nossos topónimos compostos, antigos e
modernos, em que entra o adj. morto, ou similares, têm estes sempre no fim »,
estriba-se numa regra geral, a qual, como muitas regras, sofre sensíveis
derrogações. Como é sabido, o adjectivo epíteto seguia, em latim, o
substantivo, quando tinha uma função objectivamente determinante (intelectual,
concreta): BELLUM CIVILE, ao passo que o precedia quando prevalecia uma noção
emocional-qualificadora, PULCHRA
VIRGO (cf. a Lateinische
Grammatik de Stolz-Schmalz, 5ª ed.,1928, p.616). Esta regra continua
vigente no latim vulgar e, em grau maior ou menor, nos idiomas românicos.
Atendendo à sua significação, não vejo a razão por que o adjectivo morto não se pudesse usar ocasionalmente
e numa fase antiga da língua com o valor enfático que supõe a segunda das
aludidas alternativas, como sucede ainda hoje com belo, bom, mau e possivelmente outros adjectivos:
cf. Belmonte, Boa Vista, Buena Mesón
(prov. de Madrid), Malburgo (prov. de
Pontevedra). Por outras palavras, a expressão morto-lago não se me afigura a
priori mais “repugnante” que, p. ex., o galego Bonaval (conhecido como apelido do trovador Bernal de Bonaval),
isolado também também em face de inúmeros Valbom,
Valbon, Valbueno, etc., ou, para apontar um apelativo, preia-mar ”maré cheia”. Note-se que em ambos estes exemplos ( val (e) e mar) apresenta o género antigo feminino,
o que me leva a supor que houve uma época remota em que a colocação “enfática”
do adjectivo se fazia com facilidade maior do que em períodos mais recentes.
Falta ainda referir-me ao
argumento do Sr. Dr. Silveira de a antecipação do adjectivo só ser concebível
em áreas românicas expostas a um forte influxo germânico, argumento que só com
restrições se me afigura válido. Num trabalho relativamente recente (1), o professor sueco Karl
Michaëlsson, autoridade em assuntos de Onomástica, recusa-se a ver na
frequentíssima anteposição do adjectivo em palavras compostas francesas
qualquer influência germânica. Pessoalmente, não iria tão longe como ele, pois
é indiscutível que tanto nos nomes comuns como nos próprios, o tipo
adjectivo+substantivo vai-se avolumando visivelmente de oeste para leste. O
que, no entanto, não sofre dúvida é que este tipo se encontra também em regiões
francesas, onde a influência germânica (franca) não se fez sentir, ou pelo
menos não de forma imediata. O Sr. Dr. Silveira citou os nomes franceses Aigue(s) Morte(s), Eau Morte e Le Lac Mort , mas posso opor-lhe Mortaigue
(repetido; no séc. XIII MORTUA
AQUA), Longève(§ LONGA AQUA), Liaigue ( no
séc. XI LATA AGUA),
para só citar estes exemplos (tirados do livro de Auguste Vincent), que
correspondem todos a localidades sitas no departamento de Vienne, quer dizer já
a sul do rio Loire, limite extremo, na melhor das hipóteses, da penetração
efectiva franca e de um possível bilinguismo temporário.
No que toca à identificação
do segundo elemento de Mortalago com LACUS, não se
pode prescindir, creio eu, do testemunho de Mortalazelio/Mortazel,
forma diminutiva de Mortalago, que
pede incontestavelmente um tema com c, como existe em LACUS.
Finalmente, resta ainda o
aspecto topográfico do nosso problema que, evidentemente, seria um erro
desprezar. Designando Mortágua um sítio onde se sabe que existiu em tempos um
lago estagnante, e sendo
(1) L’antéposition
de l’adjectif épithète en français est-elle due à une influence germanique?, in Mélanges de linguistique offerts à
Albert Dauzat, 1951, pp. 215-34
Mortazel nome
de um lugar próximo, com vestígios de um lago menor (1), não posso conformar-me com o repúdio categórico de
uma explicação que tira Mortágua de MORTU(U)S
LACUS, perfeitamente justificável tanto do ponto de vista
fonético, morfológica e semântico, e que nos dispensa da conclusão resignada
que «este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável».
Colónia
(1) Ver AMORIM GIRÃO, Geografia de Portugal, 1941, p. 129.
nota
*****
pp.128
e 129
II.- LAGOS
Ao
estudo dos mares segue-se naturalmente o dos
lagos. Os lagos são mares em miniatura: os problemas que nos apresentam
devem ser, pois, embora em reduzida escala, os mesmos da oceanografia.
As
poucas bacias lacustres que se encontram no nosso território continental têm
reduzida importância; e, daí, talvez o aplicar-se-lhes o nome de lagoas, que na
toponímia portuguesa geralmente designa zonas alagadiças, onde com maior ou
menor permanência as águas se acumulam na época das chuvas.
Todas
elas podem reduzir-se fundamentalmente a três categorias:
1)
lagoas de origem marinha,
provenientes da redução de antigas toalhas de água mais importantes e situadas
geralmente na zona litoral;
2)
lagoas de origem glaciária,
localizadas todas elas na região mais elevada do País;
3)
Lagoas de origem tectónica,
resultantes de fracturas com abatimento de terrenos.
Pode
dizer-se que, na transitoriedade das formas da superfície terrestre, uma bacia
lacustre é sempre dos acidentes mais transitórios. Se a tendência dos agentes
da erosão é para nivelar a superfície do solo e fazer desaparecer as desigualdades
que ela por vezes nos apresenta, compreende-se como essa tendência deve
particularmente verificar-se nos lagos, verdadeiras «anomalias do relevo» como
já alguém lhes chamou.
Não
faltam, com efeito, no nosso País, exemplos de bacias lacustre que foram
progressivamente reduzidas até desaparecerem, quer pela evaporação, quer pelo
depósito contínuo de materiais detríticos trazidos pelos rios ou por simples
torrentes que nelas desaguavam.
A
tradição e a toponímia guardam ainda recordação de algumas delas. Citamos
apenas o caso de Mortágua, em velhos
documentos ainda designada pelo nome de Mortalago
ou Mortalaga, aludindo sem dúvida a
uma antiga zona lacustre em progressivo definhamento que se estendis nas baixas
da região (1); e o mesmo testemunho nos dá ainda a povoação
de Mortázel ( em documentos medievais
Mortalazelio), evocando no seu nome,
como o diminutivo da palavra bem demonstra, outro lago mais pequeno também «morto», situado não
muito longe do primeiro.
Referências
a lagos ou lagoas hoje por completo desaparecidos encontram-se a cada passo nos
nossos documentos antigos; e quási todas essas referências correspondem a zonas
deprimidas onde encharcaram directamente as águas pluviais, ou se produziram
inundações dos rios, ou mesmo pequenas transgressões marinhas.
(1) No seu artigo sobre Toponímia Portuguesa publicado na Revista Lusitana (Vol. XVII) em face das
formas antigas da palavra, dá-nos o Sr. Dr. Joaquim da Silveira como étimo de Mortalaga o lat. mortale aqua, «água que mata», supondo que se teria aplicado tal
nome , já desde o século X, ao Ribeiro de Mortágua, por motivo das suas águas
doentias.
Quanto
a nós, somos de parecer que o referido étimo deve entender-se como «água que
morre» e não «água que mata», aludindo à progressiva e completa extinção da
zona lacustre a que fazemos referência. Anda esta zona lacustre sem dúvida
relacionada com os mesmos fenómenos que deram origem á bacia de abatimento bem
evidenciada na nossa Carta Geológica;
e dela restam ainda vestígios materiais num corte que parece ter sido
intencionalmente feito para esgoto das águas, em época remota.
*****
SILVEIRA, Joaquim da
P.
278- 284
UMA
EXPLICAÇÃO SOBRE “MORTÁGUA”
Mercê
da gentileza do ilustre Director desta revista e com aquiescência do Sr. Dr.
Joseph Piel, tive conhecimento , antes de impressas, das considerações
precedentes, a propósito de uma nota, que aditei ao Índice geral, acima citado, dos meus artigos de toponímia, nota em
que não só cantei a palinódia da situação etimológica, que em 1914 defendi na Revista Lusitana para o nosso topónimo
Mortágua pelo lat. mortale-aqua, mas
também critiquei a aceitabilidade da etimologia lat. mortuus lacus, que muitos anos depois me foi oposta para esse nome.
Pretende
o Sr. Dr. Piel, que nesta minha crítica, ele era especialmente visado, apesar
de eu o não nomear, pois defendera esta última etimologia no Boletim de Filologia de 1947, nos
termos, que agora reedita.
Nisso,
porém, está o douto professor muito enganado. Quer quando divirjo das suas
opiniões, quer quando me louvo nelas, o que várias vezes tem sucedido, costumo
sempre nomeá-lo.
Mas
aqui não havia razão para tal, pois ele não foi o único, nem mesmo dos
primeiros que, partindo de Mortalago,
mais antiga forma do topónimo Mortágua,
explicaram este nome pelo lat. mortuus
lacus, «lago morto ou extinto, seco». O primeiro, que eu saiba, foi o Dr.
Fortunato de Almeida, num artigo do jornal Comércio
de Viseu de 1924, de que não indico o dia e o mês porque não o julguei
digno de guardar e cito de memória. Por sinal que o Dr. Fortunato, no desejo de
explicar a terminação –água da forma
moderna do nome, até admitiu aí que o povo inculto alterou o elemento latino lacus em lacuna, pronunciando este rusticamente lácuna e criando assim o composto mortua-lácuna, de que sairia a actual Mortágua!! Perdoe-se-lhe a extravagância…
Vieram
depois os distintos geógrafos Dr. Anselmo Ferraz de Carvalho, que o Prof. Piel
cita, e Dr. Fernandes Martins, no seu livro O
esforço do homem na bacia do Mondego, p.20, em 1940, que admitiram a
existência antiga do lago esgotado (morto) denunciada pela velha forma
toponímica Mortalago. O que não
disseram foi a que tempos tal existência se reportaria…
Também
o meu prezado condiscípulo Prof. José Lopes de Oliveira, em 1944, no vol. III do
Guia de Portugal, p. 827,
sugestionado pela etimologia de Mortágua,
antiga Mortalago, comunga da mesma
ideia do lago, a que atribui 30Km de
superfície, dando-o por morto, isto é
dessecado no séc. I da era cristã pelo corte da parede da respectiva bacia, do
lado Sul – ou seja na garganta de Alçaperna.
E
só três anos depois, em 1947, é que veio o artigo do Sr.Dr. Piel, tomando ainda
os mesmos elementos para base da mesma hipótese etimológica. Claro que, como
filólogo que é (os outros são historiógrafos ou geógrafos), só ele expôs e
defendeu essa hipótese por uma forma metódica. Mas eu não critiquei o método;
critiquei e critico a base, o mortuus
lacus, que vinha já desde o Dr. Fortunato. Porque havia então de ser o
Prof. Piel o anónimo visado?
Pondo
agora de lado a expressão «concordância …de preto» ( que não levava veneno, mas
tanta impressão lhe fez) (1),
pois não interessa ao funda da questão, formularei, a propósito desta, uma
primeira pergunta: - o que é que nos autoriza a cindir a palavra Mortalago em duas, afeiçoando-as às
latinas mortuus lacus, ou às
portuguesas morto lago, se em todos os documentos
conhecidos, desde o de 985 até o terceiro quartel do séc.XII, onde se lê uma
dúzia de vezes (2),
figura sempre inteirinha, sem o mais leve indício de ser composta? Nada o
autoriza, que nada é a arbitrária ideia de que nas suas duas sílabas finais
está apalavra portuguesa lago, o que
por sua vez originou a conjectura de que no local e arredores da vila de Mortágua devia ter existido uma bacia
lacustre( sem discernir quando…) logo seguida da
(1) Ela foi provocada pela
ocasional leitura, quando redigi a minha nota, dos autos Nau de Amores, Frágua d’Amor e O
clérigo da Beira de Gil Vicente, onde o genial comediógrafo põe um preto da
Guiné a palrar em português mascabado, com solecismos burlescos semelhantes a
morta lago: -sua pai, minha bar(r)ete,
santo caravela, tanta ladrão, etc., etc.
(2) Não especifico aqui esses
docs. Só para não alongar em demasia esta explicação. A forma Mortalaga, com a
final, que aparece uma vez apenas , é lapso evidente do escriba.
invencionice
de que isso era uma tradição antiga.
Ora
o que está para encontrar-se é qualquer referência a tal tradição ou lago antes
do meu artigo de 1914, na Revista
Lusitana, que foi o que trouxe para a ribalta da discussão a dita palavra Mortalago. Antes desse artigo, no que se
pensava não era em lago, era em –água, por ser esta também a terminação
da forma portuguesa do topónimo e é até por isso, que este aparece grafado já Mortaagua no foral de 1192 e Mortua aqua no latim dos escribas do
séc. XIII, como disse naquele meu artigo.
Por
outro lado, o que é, ou quem é, que nos garante que a boa acentuação daquela
forma mais antiga era Mortalágo, como
os meus antagonistas pretendem, e não Mortálago?
Ninguém e nada, pois com uma ou outra acentuação do vocábulo, na evolução
deste, perdido o l intervocálico,
chegaremos sempre a igual resultado: - Mortaágo
ou Mortáago > Mortago, como lat. PALATIU>pot. ant. paácio>paço no
primeiro caso, ou lat. THALAMU> ant.port. táamo>tamo ou tambo, no segundo. Na passagem de Mortago a Mortágua, por influência do apelativo água, estamos de acordo.
O
esdruxulismo de Mortálago, que levará
o lago por água abaixo, não será mais estranho que, v.g., o de pélago e o de Sólago, topónimo este último, que nas inquirições de 1258 designa
um lugar do concelho de Sever do Vouga e outro do de Castro Daire(P.M.H., Inq. pp.920 e 925),
respectivamente ditos agora Sóligo e Solgo(s). Se não conhecemos bem a
prosódia do primeiro daqueles vocábulos e a dos sucessores do segundo,
facilmente os leríamos pelágo e Solágo, como se tem lido Mortalágo, e
então talvez aparecesse também quem os supusesse compostos com o elemento lago e se descobrissem até vestígios
deste nos arredores… E seria um erro.
Julguei
inaceitável a construção do composto latino mortuus
lacus ( ou port. morto lago)
porque a colocação do adjectivo epíteto, determinativo, antes do substantivo, a
que se liga, é contrária à regra. Essa ordem dos elementos componentes é
característica das enfáticas, e a de mortuus
lacus, em que não entra mortuus
com o sentido de «extinto, esgotado, seco», não pode ser considerada como tal.
Mal
compreendo como o Sr. Dr. Piel possa dizer, que não vê razão por que aquele
adjectivo morto não se pudesse usar
ocasionalmente, e numa fase antiga da língua, com o valor enfático…como sucede
ainda hoje com belo, bom, mau e
possivelmente outros adjectivos, que figuram em topónimos nossos ou de fora,
como Belmonte, Boavista, Malburgo,
Bonaval, etc. .
Mal
compreendo, porque a diferença é capital. Estes últimos adjectivos,
encomiásticos ou depreciativos, prestam-se claramente à ênfase e o outro não. A
vista de uma concha lacustre naturalmente despejada (morta) porque secou, não desperta em ninguém, creio eu, sentimentos
de admiração, entusiasmo, dor, aversão ou outros capazes de provocar, para o
sítio dela, um nome, que ressumbre emoção. Dir-se-á, pois, chãmente Lago Morto, Lagoa Seca, como se diz Fonte Seca (e Fonseca), Rio Seco (e Roxico), topónimos que existem na verdade e
nunca às avessas. A inversão dos termos nestes casos, na nossa língua,
parece-me tão artificiosa que atinge o irrisório, embora não suceda o mesmo nas
germânicas, onde tal inversão é regular, quer as expressões sejam enfáticas,
quer não.
De
resto o Prof. Piel, apesar da sua reconhecida competência no assunto, não
conseguiu brindar-nos com um só exemplo, para amostra, de um nome de um lugar
geográfico, antigo ou moderno, tanto do nosso país como da Espanha e até da
Itália(excluo a França , pelo motivo que disse na minha nota), em que figure o
adjectivo morto antes do substantivo a que pertence.
Por
meu lado, à série de topónimos já ementados nessa minha nota, em que ele vem
depois, aqui registo mais alguns: - «fontem Monachi
Mortui», no foral de Covelinhas, conc. De Peso da Régua em 1191(P.M.H., Leges, p. 493); «loco qui
dicitur Caballus Mortuus» na freg. e
conc. de Valongo, e «hereditate…de Vinea
Mortua», na freg. do Pinheiro, conc. de Castro Daire, - estes nas
inquirições de 1258 (Inq. cit. pp.513
e 941) . Modernos: Lago Morto na freg. e conc. De Valença; Cerva Morta, na freg. de Bouro, conc. de Amares; Fonte do Judeu Morto, na freg. e conc. de Castro
Marim. Em Espanha: -«villa Sogra Mortua»,
no território de Urgel, em doc. de 815 (Serrano Y Sanz, Ribagorza, p. 101); e
modernos Baca morta na prov de
Huesca, e Boimorto, na de Corunha. Na
Itália: - Omo-morto e Via-morta, no Véneto, referidos por
Dante Olivieri na sua Toponomastica
veneta, cap.IV.
A
mesma ordem, documentada na toponímia, se nota nas frases-feitas e expressões
correntes e tradicionais portuguesas: - casal de fogo morto (na Idade Média); bens e corporações de mão morta; Senhor morto (imagem de Cristo no túmulo); ortiga morta e cardo morto
(plantas); horas mortas, letra morta, línguas mortas, sebe morta,
obras mortas de uma nau, mosca ou mosquinha morta e outras, que podem ver-se no bem conhecido
Dicionário de Morais, -tudo sem exemplo de colocação em contrário.
O
nome preia-mar que o Prof. Piel
trouxe à colação, aliás com outro adjectivo, não creio poder apoiar a sua tese,
ainda que assente no lat. plena mare
( em port. corrente diz-se maré cheia),
porque tem evidente carácter enfático e, além disso, não parece vocábulo
patrimonial, como o não é em espanhol o paralelo pleamar, segundo mostra neste a conservação do grupo pl- e a queda do n intervocálico…
Quanto
à expressão latina vivus lacus em
Virgílio(Georg.2: - «Speluncae, vivique lacus et frigida Tempe»), que o Sr. Dr. Piel lembra, e a outra
similar, que lembro eu, mais vulgar ainda, viva
aqua, «água corrente», no mesmo Vergílio e em Varrão e Tito Lívio, segundo
os dicionários, não prestam igualmente para aquele fim, a meu ver. São claras
expressões literárias, de construção não popular, sem uso conhecido na
toponímia. Quando se quer passar a última para este campo, troca-se-lhe a ordem
dos elementos e põe-se na regra, como mostram, v.g., o nome de Aqua viva de uma estação vial da
Panónia, no Itinerário de Antonino; o
nome de Acquaviva de várias povoações
actuais da Itália, o de Agua-viva e Aguas-Vivas, idem da Espanha, e o de Aguas Vivas em Portugal, concelhos de
Miranda do Douro e Chamusca.
Consoante
se terá notado, a hipótese etimológica aqui debatida, por viável que fosse, assenta
toda num pressuposto: a existência, no sítio da actual vila de Mortágua e arredores, de um lago, que
morreu há muitos séculos. Mas creio que temos estado a gastar cera com um
defunto fantástico. O meu espírito recusa-se a dar adesão àquele pressuposto,
pelo menos nos tempos históricos, enquanto não tiver melhores abonadores, que
as duas sílabas finais, arbitrariamente arrancadas ad hoc ao próprio topónimo, cuja origem se procura.
Muito
a propósito, o Dr. José Assis e Santos, pessoa muito culta e médico municipal
do concelho de Mortágua, que ele conhece a palmos, versa o assunto do lago, chamando-lhe «mitológico» na sua
recente monografia Mortálacum,
Coimbra, 1950. Nessa monografia, que me parece geológica e topograficamente
valiosa ( sem poder dizer o mesmo no ponto de vista histórico e menos ainda
quanto a etimologias…), no parágrafo A
lenda do lago, p. 240b, escreve o A.: - «Uma elementar
operação de nivelamento demonstra, que as rochas de Alçaperna( as tais que
constituiriam a parede do lago, do lado
Sul), não dariam a cota precisa para o represamento da água poder cobrir as
várzeas ( que cercam Mortágua), ou mesmo uma parte importante delas. A hipótese
do lago carece, portanto de exequibilidade topográfica».
Quer
dizer, foi-se o lago! Não será isto
suficiente para arquivar a hipótese etimológica que nele se fundava?
Finalmente:
Não pretendo contestar a opinião dos geógrafos atrás mencionados favorável à
existência , nas alturas de Mortágua, de uma antiga bacia lacustre (embora sem isso nada ter a ver com o nome Mortalago…); mas, interpretando o
sentido vago e sumamente elástico do adjectivo antigo, creio não atraiçoar essa opinião – e só assim a aceito –
relegando tal existência, como o faz o Dr. Assis e Santos (obra cit., p.241 a) para
os fins da era terciária e começos da era quaternária, em todo o caso antes do
dobramento-fractura pós-alpino, que abriu nas faladas rochas de Alçaperna a
brecha, hoje garganta, que esvaziaria tal bacia
e que imprimiu ao relevo superficial da respectiva região uma ultima e
bem profunda remodelação, a actual. Estou com o monografista, quando diz,
concluindo o seu arrazoado:
«
O conceito de um portentoso lago, de 5Km. Quadrados ou mais, corresponde a uma
realidade geológica provável; o
brusco esvaziamento é outro facto geológicamente
verosímil. Mas tudo isso respeita a uma
época prodigiosamente distante, da escala de meio milhão de anos antes do nosso
tempo…»
(O sublinhado é meu). Quer dizer, respeita a um tempo em que nem homens havia ainda, quanto mais homens, que já
falassem latim, nestes confins ocidentais da Europa, para nos transmitirem na
sua língua, com ênfase, a tradição do mortuus
lacus…
Bons
ou maus, é por estes motivos e razões, e não por espírito de contradição, que
sou levado a fechar esta explicação com as mesmas palavras com que fechei, no
Índice geral, a minha nota sobre Mortágua:
- «Este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável».
AINDA
A ETIMOLOGIA DE MORTÁGUA
«
Al fin de los anos mil, vuelven los nombres por donde solian ir.» 1
JOSEPH M. PIEL
(COLÓNIA
- LISBOA)
Não é por espírito de
contradição ou vão gosto de discussão que me permito voltar mais uma vez ao
problema da origem de Mortágua,
debatido com o Sr. Dr. Joaquim da Silveira nas páginas da Revista Portuguesa de
Filologia, t. X, 1960, pp. 273-277 e 278-284, respectivamente, para onde remeto
o Leitor.
Eis, sumariamente
lembrados, os aspectos essenciais da questão:
Pensara eu, contrariamente
à opinião do Dr. Silveira, que Mortágua,
forma que foi precedida, na Idade Média, por Mortalago 2, representaria originariamente um composto mortu(us) lacu(s), ideia tão natural que
já ocorrera – o que eu ignorava – ao Dr. Fortunato de Almeida. Reconheço ser
muito impressionante a falange de argumentos, mobilizada contra este modo de
ver, e que vou tentar examinar com a máxima objectividade.
1º - O
facto de Mortalago aparecer sempre
escrito, na documentação medieval, por inteiro, não favoreceria a hipótese de
esta forma resultar de um nome composto de dois elementos independentes. – A
este argumento, sem dúvida de peso, poderia objectar-se que, uma vez produzido,
em *Morto
lago, o fenómeno de dissimilação o-o
> o-a , ou -o que
vem a dar na mesma – o da assimilação o-a
> a-a, e posto a seco o «lago»,
seja por agentes naturais, seja pela acção do homem, se podia
1António
Vélez de Guevara, El Diablo Cojuelo
(ed. Clásicos Castellanos, p.56), que substitui espirituosamente neste refrão
popular, nombres a aguas, versão que também conviria ao
nosso caso.
2 A «etimologia
popular», que está na base da forma moderna, viria de longe, pois já num
documento dos fins do séc.XII (PMH, Leges
et Consuet.,p.482) lemos Mortaagua
muito bem ter perdido a
consciência do caracter primitivamente composto do topónimo em causa,
principalmente se admitirmos tratar-se
de uma formação muito antiga.
2º -
Ignoramos qual acentuação da forma medieval Mortalago, aqual, segundo o Dr.
Silveira, poderia ter sido esdrúxula: *Mortálago. – Esta dúvida metódica não
deixa, evidentemente, de ser legítima. Basta pensar na evolução de thálamus > ant. táamo, tam(b)o (exemplo talvez mais apropriado que o outro, também aduzido
pelo Dr. Silveira: palatium > paaço,
de prosódia diferente da postulada em relação a *Mortálago). A averiguar-se aquela hipótese, está claro que isto
levaria o lago «por água abaixo», na pitoresca expressão do meu ilustre
interlocutor, e sem que, aliás, uma lágrima minha viesse aumentar o seu
hipotético caudal. Cabe, porém, perguntar: Não seria antes *Mortalago, não obstante o exemplo de
thálamus > ta(a)mo, com
conservação da vogal postónica ( pois uma evolução não exclui outra, e o
tratamento das vogais intertónicas revela-se bastante contraditório), e não se
conceberia melhor a atracção paronímica, exercida, desde o séc. XII, por água, partindo de uma forma terminada em
–ago
e não em –áago?
3º - A
anteposição do epíteto determinativo, na composição *mortu lacu, seria – sempre
segundo o Dr. Silveira – contrária à tradição românico-portuguesa. Em face de
numerosos exemplos, tanto na toponímia como no léxico comum portugueses, da
posposição do qualificativo morto,
não se pode, com efeito, apresentar nenhum caso do uso inverso. –Não deixei
desde o princípio de reconhecer a legitimidade deste argumento, que continuo a
tomar na devida consideração. Cheguei a admitir que, no nosso caso, a ordem
insólita dos dois componentes poderia obedecer à intenção de realçar
enfaticamente o epíteto. O Dr. Silveira nega que o adjectivo morto se possa prestar a um emprego
comparável ao de belo e mau em Belmonte e Malburgo,
respectivamente, mas pergunto se a diferença entre mau e morto, neste
contexto, será tão «capital» como ele a admite. Desde que imaginemos morto em contraste com vivo, que, creio eu, é a característica
normal das águas, pelo menos na região que nos interessa, pode, em princípio,
surgir esporadicamente uma situação que convide à anteposição enfática do
adjectivo. O facto de o tipo Vila Pouca (ant. pouco= “pequeno”), que neste momento me ocorre, ser o normal, não
exclui que haja, no Minho, três Pouca
Vila ( 1.f.Figueiró, c. Amarante; 2. F. Mancelos, c. Amarante; 3. F.
Negrelos, c. Santo Tirso), assim como Valboa
não exclui Boaval (3).
Estou de acordo em que hoje se dirá normalmente, como na Idade Média, Lago Morto, Lagoa seca, etc. e que a inversão dos termos parecerá «tão
artificiosa que atinge o irrisório; pois é esta ordem dos termos que confere
valor enfático ao adjectivo». No entanto, pergunto: terá sido sempre assim? E
no exemplo de Pouca Vila não haverá
vestígio de um uso diverso, mais antigo? Desde que admitamos que *Morto Lago ascende como formação a uma
época proto-histórica ou mesmo latina, o caso muda de figura (4).
Com efeito, segundo uma estatística minuciosa de Karl Wydler (5),
a anteposição do adjectivo atributivo em textos latinos, impregnados de
elementos estilísticos e lexicais populares, assim como textos tardios
«vulgares», é muito mais frequente do que em textos clássicos. Assim, p. ex.,
no Satiricum de Petrónio aproporção
respectiva é de 70%, sendo na chamada Peregrinatio Aetheriae ad loca sancta
(séc. V) de 31% (cf. p.259). Tocamos com isto num problema
(3)O caso é evidentemente diferente do de nomes como Pouca Lã, Pouca Farinha, Pouca Roupa, Pouco
Siso, Pouca Vergonha, Pouco Dinheiro, etc., topónimos provenientes sem
dúvida de sobrenomes aplicados aos moradores dos lugares respectivos. Só Pouca Pena (Soure) pode prestar-se à
dúvida: pena= “penha” ou , o que é
mais provável, = “trabalho”.
(4)
Se hoje ninguém se lembrará de dizer cheia-maré, baixa-maré, sempre houve gerações que articularam os
dois elementos ao inverso: preia-mar,
baixa-mar, formações cuja antiguidade é atestada pelo género feminino de mar. Não creio haver lugar de duvidar do
carácter patrimonial de preia-mar,
não obstante o pr- inicial, em
oposição ao ch- de cheio. O dualismo do tratamento do grupo
pl- etimológico deve remontar ao
próprio latim hispânico, reflectindo duas correntes sociologicamente
diferenciadas. O esp. pleamar deve
representar um lusismo ou galeguismo , como costa,
em sentido marítimo, em oposição a cuesta,
em sentido orográfico.
(5) Zur Stellung des attributiven Adjectivs vom Latein bis zum Neufranzösischen.
«Romanica Helvetica», vol. 53, Berna, 1956.
Importante da história
toponímica portuguesa e peninsular em geral, que, salvo erro, não foi ainda
seriamente examinado no seu conjunto: o de saber quais os nomes de substância
latina, - refiro-me evidentemente aos não transmitidos em fontes da
antiguidade, os quais, aliás, não são numerosos e se referem apenas a
localidades que então possuíam certa importância – que se radicam ainda na
época romana ou visigoda, e quais se devem considerar como sendo de formação
românico-portuguesa. Devido às vicissitudes da história hispânica ( arabização,
ermamento parcial, Reconquista9 esta ultima categoria vem a ser, como se sabe,
de longe a mais importante, mas não oferece dúvida que uma porção relativamente
considerável de topónimos portugueses e espanhóis, formados de elementos do
léxico comum latino, remonta ainda ao próprio período romano. Faltam, porém,
por ora critérios seguros para distinguir estas duas camadas históricas. (6).
4º -
Falta ainda referir –me ao aspecto geomórfico da questão. Invoca o Dr. Silveira
a opinião de entendidos na matéria, que negam a possibilidade da existência, em
tempos históricos, de uma bacia lacustre nas imediações de Mortágua. – Registo
de bom grado esta rectificação, mas não creio que afecte decisivamente o
aspecto filológico do problema. Se o suposto lago pré-histórico «se foi»,
sempre pode ter ficado um resíduo dele
ou ter existido uma água estagnada qualquer, que motivasse a denominação
Mortuus Lacus, pois lacus em latim não designa necessariamente uma grande
extensão de água parada, podendo o termo aplicar-se até a uma simples poça.
5º -
Finalmente, permito-me insistir novamente num pormenor, que o Sr. Dr. Silveira
na sua «Explicação» passou em silêncio, mas que me parece merecedor da maior
atenção. É o topónimo Mortázel, ant. Mortalazelio (985), povoação que fica a
pouca distância de Mortágua(7)
(6)
Nos casos em que um topónimo corresponde a um arcaísmo ou
regionalismo lexical português, facto que tenho a impressão se observa com
particular frequência no Minho e Douro Litoral, sem falar da Galiza, não
hesitaria em atribuí-lo, de preferência, à época romana ou visigoda.
(7)na freguesia de Sobral, próximo de Vila Moinhos, conc. de Mortágua
e cujo nome só pode ser
interpretado como diminuitivo do ant. Mortalago.
Não será lícito inferir daquela forma, com z,
que o g de Mortalago supõe um c (k)
etimológico (8), sendo pois *Mortalaco
a forma primitiva a postular, o que viria trazer alguma água ao moinho do nosso
lago? É verdade que, por outro lado, a forma Mortalazelio (9) atestaria a grande antiguidade do a da segunda sílaba de Mortalago,
obrigando-nos a atribuir o fenómeno assimilatório ou dissimilatório, que fez de
*mortolago: mortalago, a uma época
proto- ou pré-românica. Estou consciente da fragilidade desta suposição.
Tentei expor o mais
fielmente possível o estado do dificílimo problema da origem de Mortágua. Se o Dr. Silveira voltou a
concluir que «este nome é ainda um enigma que aguarda decifração aceitável»,
procurei reunir alguns elementos tangíveis que talvez possam atenuar este
cepticismo extremo em relação à suposta etimologia *mortu lacu, a qual, sem de
modo algum se poder considerar definitivamente assente, sempre merece ser
tomada em conta.
Não teria ousado insistir
no assunto, se ele não envolvesse problemas de método e de princípio, que só
através de um diálogo se podem aclarar, e se não fosse para mim um prazer
espiritual trocar impressões com um erudito tão competente e sabedor em
assuntos da toponímia portuguesa como o é o Sr. Dr. Joaquim da Silveira, a quem
peço que considere esta nota como uma homenagem que lhe pretendo prestar.
(8)
De Mortalago, com
–g- primitivo, resultaria normalmente
*Mortalagelio/ *Mortagel . O z de Mortalazelio
deveria articular-se como dz, em
conformidade com a sua procedência de ts
< c(e).
(9)
Não me atrevo a pronunciar-me sobre o problema de saber se a
terminação antiga -elio está por –elho <
-iculu (cf. Montelhos, Valhelhas, etc.), ou se representa uma
forma arbitrariamente ampliada do moçárabe –el
< -ellu, segundo faz supor a forma moderna do topónimo.
*****
Desde os artigos de Joaquim Silveira e Joseph Piel, não existem
publicações que tragam mais luz à questão.
Maria Luísa S. M. de Azevedo, na sua
dissertação de Doutoramento25 na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, em 2005, faz uma súmula do conhecimento actual, sem
acrescentar novos dados:
“ De facto, Mortágua
situa-se
na área de uma antiga concha lacustre, hoje desaparecida (a chamada Bacia de
Mortágua); e o pequeno povoado de Mortazel, a norte, evoca
“outro lago mais pequeno também «morto», situado não muito longe do primeiro”.827
Joaquim da Silveira deu a conhecer abonações antigas, como Mortalago
(985),
Mortalaga (986), Mortaagua (século XII) e Mortalazelio (985); e propôs para o
827
Aristides
de Amorim GIRÃO, Geografia de Portugal, Porto, 1941, p.
129. Alfredo Fernandes
MARTINS,
O esforço do Homem na bacia do Mondego, Coimbra, 1940, p.
20. Ambos os
geógrafos conheciam bem a zona em causa.
nome
da vila a origem MORTALE AGUA ‘água que mata’.828 Mais tarde, J.
Piel, considerando que em documentos do século X há quatro ocorrências de Mortalago e só uma de Mortalaga, encara a primeira “como merecedora de
maior confiança, fazendo entrever o étimo MORTUUS LACUS, que recebe a sua
confirmação em
Mortalazelio”, que sugere, no
segmento final, um ponto de partida em “LAC- ELLUS”.
Quanto
à evolução de Mortágua, acha que “numa
forma proto-histórica *Mortolago, o o átono
se assimilou ao a” acentuado; e na sequência da
síncope de -L- perdeu-se a significação de -ago, “de que a etimologia popular fez água”.829
A
estas abordagens seguiram-se dois outros artigos de cada um dos autores,
gerando uma controvérsia que se prolongou por mais vinte e três anos e cujas
conclusões passam a resumir-se.
Joaquim
da Silveira
rejeitou a proposta de Piel, sublinhando em especial que no sintagma proposto
como fonte etimológica — mortuus lacus — o adjectivo anteposto ao nome (como nas línguas
germânicas) não era conhecido em topónimos da Península Ibérica nem da Gália; o
mesmo argumento levou-o a pôr também de parte a sua própria sugestão inicial — mortale aqua — e a concluir, no final de ambos os
artigos, que “este nome é ainda um enigma, que aguarda decifração aceitável”.830
Joseph
Piel,
por sua vez: refuta com bastantes exemplos a ausência do referido tipo de
sintagmas no âmbito geolinguístico
mencionado;
reconhece que se trata de um problema etimológico difícil; considera todavia,
no último artigo, ter aduzido elementos que podem atenuar o “cepticismo extremo
em relação à suposta etimologia *mortu
lacu,
a qual (...) sempre merece ser tomada em conta”.831 No mesmo
trabalho, este Autor volta a considerar a morfologia histórica de Mortazel com base na antiga abonação Mortazelio: talvez -elio
pudesse
representar -elho (< -iculu); mas
inclina-se para a origem que anteriormente propusera — deve
tratar-se de uma grafia “arbitrariamente ampliada do moçárabe -el
<
-ellu, segundo faz supor a forma moderna
do topónimo”.832
828
J. da
SILVEIRA, “Toponímia portuguesa”, Revista
Lusitana,
vol. 17, 1914, p. 119-120.
829
Joseph
M. PIEL, “As águas na toponímia galego-portuguesa”, cit., p. 307-309.
830
J. da
SILVEIRA, “Notas”, Índice Geral dos Artigos de Toponímia
Portuguesa de Joaquim da
Silveira, Coimbra, 1959, p.
33-35; IDEM, “Uma explicação sobre “Mortágua””, Revista
Portuguesa de Filologia, vol. X, 1960, p.
278-284. A frase citada encerra os dois artigos.
831
Joseph
M. PIEL, “A propósito do nome da Vila de Mortágua”, Revista
Portuguesa de
Filologia, vol. X, 1960, p.
273-277; IDEM, “Ainda a etimologia de Mortágua”, Boletim
de
Filologia, t. XXII, 1973, p.
59-63. Este último título merece especial atenção porque resume, de
forma
sistematizada, todos os argumentos que foram dirimidos. A citação é da p. 63.
832 Joseph M. PIEL, “Ainda a etimologia de
Mortágua”, cit., p. 62 “
25 AZEVEDO, MARIA LUÍSA SEABRA MARQUES DE ::
TOPONÍMIA MOÇÁRABE NO ANTIGO CONDADO CONIMBRICENSE.
FACULDADE DE LETRAS - UNIVERSIDADE DE COIMBRA 2005
*****
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