quinta-feira, 4 de maio de 2017


Alguma Poesia de Tomás da Fonseca

 

Não temos conhecimento de nenhum livro de poesia de Tomás da Fonseca, nem de nenhuma colectânea dos seus poemas dispersos pela pelos jornais da época.
Hoje pretendemos dar um modesto contributo para quem quiser levar a cabo essa tarefa- reunir em livro a poesia de Tomás da Fonseca, ou, quem sabe, dos poetas relacionados com Mortágua.
Os poemas que transcrevo em seguida serão talvez uma pequena parte, mas aqui ficam para que não se percam.

 in Tomás da Fonseca: Dor e vida – poemeto, Coimbra, Tipografia de Luiz Cardoso, 1900, pp. VII-VIII.  

Conta agora aqui ao teu menino, ó Mãe,
Noites de amargura que por ele velaste.
Deus te valha, ó santa pela vida além,
E te dê ventura que para ele sonhaste.

Compôs ela um hino para me embalar,
E a sua voz cantava-o, que me lembro bem.
«Minha mãe não cantes, oiço-te chorar!
Mas, ó Mãe, não chores, vou chorar também!»

Noite e dia olhava para o seu tesouro,
Seu menino que era alívio no cansaço;
Meigo e puro como aquele anjinho louro
Que Maria Virgem tem no seu regaço.

E meu Pai no campo, quer chovesse ou não,
Trabalhava sempre todo esfarrapado,
Como um velho mouro, a fabricar o pão
Para o dia d’ouro do meu batizado.
 

Revista Nova, I Anno, Num.III, 20 de Maio de 1901

 Cadeias

Ao Lopes d’Oliveira

 
Casas erguidas para a desgraça,
Tumulo e carcere, lar e caverna !
Treme de medo quem alli passa ...
Vcrgonha eterna da nossa raça,
D’um povo livre vergonha eterna !

Dia de gala, dia de festa,
E os miseraveis na escuridão ...
O' tu, que passas na vida honesta,
Abre um sorriso que inda te resta
Aos condemnados d'essa prisão.

Antes de andarem pelas cadeias .
Uns foram livres, foram já nobres ;
Outros viviam em alcateias
Pedindo esmolas pelas aldeias,
Moços de cegos, filhos de pobres.

Outros na guerra foram soldados,
Amando a Patria. do coracão ...
Passada a lucta foram olvidados ;
Depois, já velhos, foram algemados
Quando nas ruas pediam pão !

Na vida heroica da juventude,
Cavando a terra, foram gigantes;
Da primavera na plenitude,
Braços de ferro na vida rude,
Sonharam patrias como houve d'antes.

E agora mortos p' rá vida honrada
Morta a ventura que um sonho foi ! ..
Não mais o ferro de velha enxada
Cavará montes desde a alvorada ...
Foram-se as glorias do antigo heroe !

E os condemnados dízem comsigo :
- Que vida amarga ! Que negra sorte !
De tanto amigo nem um amigo
Que este calvario suba commigo ...
Benvinda a hora da nossa morte !

Cabeças loucas de indignação,
Rugem na sombra como leões :
O' tu, que passas, dá-lhe o teu pão,
Dá-lhe um bocado do coração,
Que elles tem mortos os corações.

Casas soturnas ! mettem-me medo
Estas cadeias que o sol não vê ...
Ouvem-se passos sobre o lagedo
De condemnados para o degredo,
Porque fizeram, - sabe Deus quê !

Gritos na sombra, - quem é que os dá ?
Tiros de bala, -- quem matarão?
O' reis, cautella, que o sol vem já
Subindo, e os gritos ouvem-se cá :
Ha boccas hiantes de indignação ...

 Que importa a vida, que importa a Morte
A nós, que somos os desherdados?
Abreviaremos a nossa sorte ...
Nossa cabeça; Que ella se corte,
Mas que se arranquem os algcmados!

 Ó reis, cautella, que a luz é perto
E a treva longe dos corações,
Sobre as cabeças ha o ceu aberto ...
Que importam  balas, se já vem perto
O peito d'aço das multidões !

Povo em revolta - guilhotinae-o !
Onda que passa - vão agarral-a !
Povo em revolta ... loucos, dcixae-o !
Que valem armas? Força de raio
Não se aniquilla com uma bala.

 Podeis lançal-os na escuridão,
Sob as algemas: cobrir-lhes d'aço
Os frios gonzos d'essa prizão,
Que as negras furnas abrir-se-hão
Quando o meu Povo mover um braço

.Se ámanhã cedo se apresentar,
Punhos erguidos, olhos em fogo,
As grossas portas hão-de estalar,
Serão abertas de par em par
E essas cadeias desertas logo !

 Porque é por elles, os opprimidos,
Que a vida anceia, que o mar se agita ...
Exploram minas, veios perdidos,
E são lançados, como bandidos
Para esses antros que a morte habita.

Almas velhinhas, encarceradas,
Que eu amo tanto como a Verdade,
Andam ardendo mais alvoradas
Nas vossas crenças apunhaladas
Do que ha de estrellas na immensidade.

E quantas vidas alli paradas,
E quantos, quantos trabalhadôrcs !
O' pão, ó vida, que é das enxadas,
Que é das choupanas desmanteladas,
Onde viviam teus bemfeítorcs?

Nessas cabeças de revoltados
Fermentam genios, dormem ideias.
São operarios acorrentados ...
Eis o progresso d'olhos vendados !
Eis o trabalho prezo em cadeias!

Se a raiva e odio, postos em foco,
Incendiassem, nada mais queria !
Serieis livres. O odio é louco,
E o meu é tanto que posto em fóco
Essas muralhas incendiaria !

Nem um só raio de claridade:
Vos chega nunca na vida toda
Nem ceu, nem terra, nem liberdade :
Sois como netos na orphandade,
Sois como noivos mortos na boda!

Mora a desgraça n'aquellas casas,
Tumulo e carcere dos desherdados ...
- Cortava os braços p'ra lhes dar azas;
la descalço por sobre brazas
Para não vel-os encarcerados !

Thomaz da Fonseca.
 
 

Revista Nova, I Anno, Num.VIII, 31 de Janeiro de 1902

 
AOS QUE AINDA DORMEM

Erguei as frontes para a luz que nasce,
Vós todos, meus irmãos, que andaes na lida.
Que importa que ella vos escalde a face,
Se ella vos abre os olhos para a vida ?

Quantos nasceram e quantos já  morreram
Sem o beijo sagrado d essa mãe !
Mas esqueçamos : novos tempos vieram
E com elles a fé no eterno Bem.

Temos o céo aberto em nossa frente
E o desejo bastante p'ra ganhal-o .. .
Se nós subirmos continuadamente,
Hoje, ámanhã, havemos de tocal-o.

Eu não venho enganar a vossa fé;
Amo-vos muito para ser cobarde.
Venho dizer-vos como a Vida é,
Mostrar o bom caminho, embora tarde.

E por isso vos grito : camaradas !
Uni-vos todos, porque a união é força.
Que o futuro se abra a enxadadas
E o braço, embora quebre, que não torça.

Somos a legião dos esquecidos,
Os filhos d'uma terra condemnada.
Temos na lucta o premio dos vencidos
E uma vida que é morte continuada.

Por este valle de lagrimas errante,
Ninguem nos abre a porta nem dá um pão!
E démos vida aos campos verdejantes
E volvemos na dôr o arido chão . ..

E inda falam de patria á mocidade,
Esses que nos fizeram desgracados 1
Mas a patria é uma só : a Humanidade,
E tudo o mais povos sacrificados.

Patria p'ra quê, se a patria é um egoismo
E uma falta d'amôr aos estrangeiros?
Homens, deixae o vosso patriotismo,
Porque nós somos todos companheiros.

Amae, amae, sem distincção de raça :
O amôr á patria é odio á Humanidade ! ... ,
Ah ! que o bom sol em noite se me faça,
Antes que eu minta em nome da Verdade !

Bem sei que ergo palavras para o vento,
E muitos dizem que trabalho em vão ...
Mas fogachos que deita o pensamento
Ou cedo ou tarde hão de formar clarão.

Quem sabe se este grito que levanto
Não vae encontrar echo n'outros peitos?
O mundo é largo : e a lucta que hoje canto
Hade tornar os homens mais perfeitos.

Depois eu não me enfado de o dizer :
O Bem não morre, ó meus amigos! e hade
A fama de Alexandre inda esquecer
Sem que se esqueça nunca uma verdade.

O que nos fala á alma não se apaga,
Nem se mistura ao que deslumbra a vista.
Homens, ao mar! e embora cresça a vaga
Onde ha força a que a fome não résista ?

Nós tambem somos como os marinheiros,
Cada dia lancamos nossa rêde.
O amor do Bem faz-nos aventureiros,
A ancia de justiça traz-nos sêde.

Eu por mim sigo d'olhos no futuro,
Em demanda do Reino da Verdade.
Para viver basta-me o veio puro
Que emana da tua fonte, ó Liberdade!

Embora o sangue tombe gota a gota
Seguirei sempre e heide alcançar a luz.
Tambem se alguem me vir a farda rota
Não dirá que matei, mas vesti nus.

Siga cada um de vós este caminho,
Fite cada um de vós este clarão,
E inda que todos vão devagarinho,
Acharão terra que dê vinho e pão

Palmo a palmo acabarão os espaços,
Pedra a pedra as montanhas serão razas ...
-Assim, por tanto erguerdes vossos braços,
Um dia chegará que tereis azas l...

 Thomaz da Fonseca.

 
Chamamos a atenção para o director desta revista, Ângelo Jorge, o autor da novela "Irmânia", publicada em 1912, onde Basílio Lopes Pereira deverá ter ido buscar a ideia da chamar esse nome à sua aldeia, e até ao seu filho.


NAS BARRICADAS
A Marcellino Correia

 
Eis-me na luta emfim ! Perguntam d'onde venho,
Minha patria qual é, quem sou e o que procuro ...
Homens! venho buscar aquilo que não tenho,
Alargar eu tambem a estrada do futuro!

Ha quanto tempo que eu, viseira desprendida,
Venho correndo atraz desta miragem linda,
Miragem que talvez não tocarei na vida,
E meus filhos depois mal gosarão ainda.

Desherdado da vida, olhos no céu distante,
Resei, cantei, chorei, cavando a terra exangue,
Mineiro e cavador, soldado e navegante,
Minha estrada reguei com lagrimas de sangue.

Uma manhã, sentindo a fome no meu lar,
Peguei n'uma sacola ao hombro e fui pedir,
A vêr se alguem me dava um pão para jantar,
A vêr se alguem me dava um leito onde dormir.

E do mundo atravez, sofrendo e mendigando,
A dor no coração, tal qual a sinto agora,
Aos palacios bati, a vida suplicando,
Mas lançavam-me os cães para me porem fora.

O' sonho virginal d'essa existencia pura,
Em que eu sonhava o mundo e os homens irmanados:
Nossa vida afinal é como a noite - escura -
Onde ha feras mordendo e uivando aos desherdados.

Ah! antes tu, ó luz do sol, nunca me visses!
Pois que vale eu viver n'esta miseria, quando
Outros comem meu pão, como ao guerreiro Ullisses
Do seu proprio palacio ás portas esmolando ?

A vida! o que é p'ra mim, sem norma e sem direito,
Pobre filho da terra, obscuro, acutilado?
Os assassinos tem-me engatilhada ao peito
Uma espingarda, - eu vou morrer assassinado ...

Embora! hão de encontrar-me alerta, no meu posto,
E hade descer a noite e a aurora hade subir,
E quando o sol divino iluminar meu rosto,
Os que me vem seguindo hão de depois fugir.

No emtanto pesa a dor e eu vivo subjugado
Ao peso d'essa dor, a dor que ninguem tem ...
O' morte entrando á noite ao quarto do noivado!
O' lágrima d'um fi lho ao colo d'uma mãe!

Na rua choram mães e os filhos pedem pão,
Operarios sem lar vão maldizendo a vida ...
O´ meu povo, onde está quem te estendia a mão,
E te enganou, falando em Terra Prometida?

Conheço bem que a nossa independencia é morta,
E que só um sangue bom pode ressuscital-a.
Que se derrame, pois! Morrer: viver que importa
Se os que ficam depois de nós vão alcançal-a?

O ferro já lampeja ao lume das fornalhas;
Nas vigornas estão-se amalgamando enxadas ...
E' isto a que se chama o sopro das batalhas,
Companheiros, é assim que se fabricam espadas.

Temos já os pés em  sangue e esfarrapada a farda,
O' terra, nossas mãos, vida não podem dar-ta.
Mas sabemos pegar inda n'uma espingarda
Saberemos morrer como um soldado em Esparta.

Mas ai! onde é que estás, luz da felicidade,
Quando te mostrarás, Terra da Promissão?
Que eu por mim só desejo o sol da liberdade,
E o teu amor, mulher, onde meus sonhos vão.

 Tomás da Fonseca

 
Poema de Tomás da Fonseca (1877 - 1968), publicado na Ilustração Portuguesa , 2ª. série, nº459, 7 de Dez. de 1914, p. 712. A ilustração é de Stuart Carvalhais

Canção do Soldado

I
Tremula ao vento a bandeira
E soa ao largo o clarim,
A Pátria chama por mim,
Eu vou entrar na fileira.
Sofrerei a vida inteira,
Tudo quanto a dôr encerra,
Contamto que a minha terra,
Meu Portugal seja amado,
E o portuguez, que é soldado,
Nunca teve medo a guerra.

II
Minha enxada abandonei-a,
Meu alvião lá ficou,
Coração, que tanto amou,
Outra estrela hoje o norteia,
Deixo, alegre, a minha aldeia,
Os meus amores, o meu lar,
Vou p’rá França batalhar
A’ luz viva desta espada,
Que a honra da Pátria amada,
A’ vitoria ha de levar.

III
Meu braço, que á neve e ao vento,
As duras terras volveu,
Sabe que é sob este céu
Que fica o meu pensamento.
Se, portanto, fôr sangrento
E rude o seu combater,
Não estranheis que o dever
Assim lh’o ordene, ó teutões:
Vai defender corações,
Salvar a Pátria ou morrer.

IV
Soldado, vamos marchar
Unidos como um só corpo.
Que importa que fiques morto
Se vais mundos resgatar?
Ou nas terras d’além-mar,
Ou n’essa França querida,
Não me importa dar a vida
***

E  finalmente um papel volante distribuído na Festa da Vitória, realizada na Marmeleira em 10 de Agosto de 1919,  em honra dos soldados do Concelho que participaram na 1ª Grande Guerra.

 
E por hoje, é tudo. Quando encontrarmos outros poemas, deles daremos conta.



 

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