Do
altar ao prego!
Vou
dar uma notícia que, senão fosse fácil comprová-la, todos julgariam uma
calúnia.
Eis
o que com efeito acontece.
Na
casa de penhores do cidadão João Favas, em Coimbra, encontra-se uma porção de
santos, de aspectos e tamanhos diversos, que são o alvo de todas as atenções.
Entre
eles está um S. João Baptista, quase do meu tamanho, um biso de mitra e báculo,
talvez Santo Agostinho, e uma Nossa Senhora, já desbotada, mas na grave posição
de quem dá de mamar ao criador e redentor do mundo! quando eu descobri,
anichadas a um canto, aquelas místicas figuras, à mistura com baldes e bidets, lançando os seus divinos olhos
àquele montão de coisas várias, onde o mais que se vê são misérias humanas,
entulho social, alegrias desfeitas, orgulho decaído, casos de desespero,
coisas, enfim, que se não podem traduzir; quando eu, pois, as descobri, no
triste olvido do seu canto, benzi-me duas vezes, com a mão direita aberta, da
testa ao peito e do ombro esquerdo ao direito!
A
que estado chegou a religião da igreja! Em que triste miséria vão caindo as
coisas do senhor!
Pois
então esses santos de prodigiosos feitos, de poder tão excelso, que tanta vez
acudiram á humanidade aflita, não terão cá na terra um olho que os veja? Não
haverá no mundo uma alma compadecida que ali vá resgatá-los? Restituí-los ao
altar e ao culto público? Levá-los para Deus?
Eles,
que em tantos casos suspenderam as leis naturais, que tanta, vez mudaram o
curso aos rios e aos factos, que a tantos cegos deram vista, a tantos tristes
alegrias, pão a tantos famintos, vigor a tantoa alquebrados; que tanta vez
recuperaram faculdades abaladas, aliviaram dores insofridas, dando fala aos
mudos, ouvido aos surdos, pernas aos coxos, juízo aos doidos, ali foram cair,
numa casa de prego, sujeitos à zombaria da plebe, aos insultos da canalha, à
troça da heresia, à gargalhada do cinismo!
Eles,
que foram deuses omnipotentes, expostos agora ao óbolo de quem quiser
comprá-los.
S.
João, que baptizara Deus e o anunciara como tal, chegando mesmo a perder a
caabeça pela fé, não tem agora quem lhe deite um olhar de compaixão. A voz que clamava no deserto, reduzida ao
silêncio, na galeria mercantil de uma casa de prego!
Divino
precursor, primo e amigo de Deus? Isso que vale, se a realidade é aquilo: um
mono silencioso, em meio de outros monos igualmente silenciosos e avelhados.
E,
todavia, quantos príncipes e reis terão beijado aqueles pés, adorado aquela
imagem, pedindo-lhe juízo e entendimento? Quantos padres, quantos cónegos,
quantos bispos o terão venerado e suplicado, de mãos erguidas e joelhos em
terra?
Pois
não obstante tudo isso, ele ali está, despido e solitário, para sempre apeado
do seu altar, expulso do seu templo, privado dos seus crentes e ofertas
respectivas. Triste, não é verdade?
Mas
o que direis então da Virgem Imaculada, igualmente deposta do seu trono? O que
pensareis da Mãe de Deus, igualmente esquecida entre esses monos, encalhada e
poeirenta, sem recato nem defesa, encostada a um figurão de mitra, como
qualquer mundana deste século, exposta à zombaria dos descrentes?
Durante
o curto espaço que à vista deste grupo me detive, ponderando estas coisas
tremendas e sacrílegas, pessoas várias desfilaram, deitando olhares
perscrutadores, inquirindo alguns deles o preço das figuras.
-
Quanto quer cá pelo sujeito? perguntou um académico, apontando para o bispo da
mitra. – E este figurão, quanto é que vale? indagou um sujeito baixo e gordo,
passando a mão pelo ombro do Baptista. Outro, de bigode ruivo e chapéu mole,
perguntou, apontando com o chapéu de chuva para Nossa Senhora: Quanto quer cá
por este mono? E este gajo do lado?
Benzi-me
de novo! O comprador apontava para um pobre e miserável santo da côrte do céu,
mártir pela segunda vez, pois tinha os braços e as pernas partidas, sem dúvida
na execução de algum milagre mais difícil.
Que
escândalo tremendo! que punhaladas na fé! que desastre para a seriedade do
culto!
Há
pouco tempo ainda, diante destes santos, ninguém comparecia senão de rastos e
com profunda unção religiosa. Os crentes, humilhados, só se aproximavam deles
gemendo e chorando, com uma vela acesa ou um rosário bento. Eram louvados com te-deums e turiferados com incenso. Os
homens só se correspondiam com eles entoando-lhes hinos de glória ao som de
músicas celestes.
E
hoje? Vede como na frente deles passa toda a gente. Uns descalços, outros em
mangas de camisa; este em chinelos, aquele em tamancos e todos de chapéu na
cabeça e cigarro no beiço, conversando em voz alta.
Nenhuma
devoção, nenhum respeito!
Uns
voltam as costas, outros jogam chalaças e todos passam adiante, sem uma
genuflexão, sem uma reza, não havendo mesmo quem se benza ou diga – ámen!
Em
certa altura chega uma pobre velha. E quando eu julgava vê-la cair de joelhos,
numa súplica fervente à Mãe de Deus, apenas noto que ela se dirige ao sr.
Favas, a propor-lhe o penhor daquele
embrulho, sem duvida para ver se ainda almoçava naquele dia.
E
como ela, todos os mias que entram: olham as imagens, sorriem e passam
comerciando… - Quanto custa este jarro? Por quanto deixa o cobertor?... Veja se
pode fazer algum desconto neste catre… E o sr. Favas, sempre de lado para lado,
apenas diz, a todos : - São preços fixos. Se lhe serve …
*
* *
Mas
o pior não está ainda aqui.
Reparem
nisto agora: amanhã o sr. Favas há de fazer o seu leilão. Imaginem pois o
leiloeiro deitando a mão ao pescoço do bispo e dizendo: santo Agostinho, bispo
e doutor da Igreja: dois tostões! …Está
em doze vinténs!...Ninguém dá mais? Doze vinténs!... Depois, voltando-se para o
grande Baptista: O precursor de Cristo e o maior santo da corte do céu:
quatrocentos réis!... Cinco tostões!... – até que o levam num saco ou numa
padiola, por menos do que se compra um alqueire de batatas ou a língua de um
porco!
Em
seguida, o mesmo leiloeiro há de deitar a mão à pobre virgem e ao seu menino,
clamando, do alto, à multidão, lívida de
pavor: - A Imaculada Conceição: sete vinténs e meio!...
Horrível,
srs. padres! Simplesmente horroroso, sr. bispo!
E
o paço episcopal mesmo pegado! E a Sé mesmo na frente! E o seminário mais além,
onde os ordenandos hão de saber do facto, perdendo assim muito da sua fé, no
que respeita ao culto das imagens e à eficácia das mesmas.
Porque - reparem bem – aquilo já não é a Igreja
triunfante, mas tão somente a santidade a preço e a divindade em hasta pública.
E
lembrar-me eu das grandes festas, do culto fervoroso que se dispensava às
imagens dos santos e da Virgem, no meu tempo de seminarista!
Nessa
época, não havia por lá um único santo – e mais não tinham a majestade nem a
grandeza que estes têm – que não tivesse o seu altar, com o seu nicho e a sua
vela acesa, havendo ainda, em frente de todos eles, alumiando-os, ricas
alampadas suspensas, que ardiam sempre, de noite e dia, de verão e inverno.
Comparai
pois o destino glorioso desses bem-aventurados
com a desdita destes mártires. Uns glorificados e adorados, incensados
pelos padres e presenteados pelas damas, tendo em sua frente alampadas brilhantes
e tapetes riquíssimos aos pés, cercados de esplendores e de atenções, em
altares de prata, com colunas de mármore precioso, e outros apodrecendo, como
estes, no olvido e na miséria mais flagrante, vendo apenas em sua frente
quinquilharias várias; saias e calças já rafadas, cheirando a vício e a
heresia; baldes e potes de usos os mais diversos; malas e alfarrábios,
torneiras e panelas, espelhos e regadores, almofadas e xailes, chapéus e
sobretudos, coisas de pobres e de ricos, objectos de adorno e de conforto,
brinquedos e utensílios, trastes, enfim, para todo o mister.
Além
disso, em frente das imagens uma série de leitos de todos os tamanhos e
maciezas. E a Rainha dos Anjos, que já vira a seus pés as multidões rendidas,
cantando ladainhas com os padres, entre infinitas luzes e espirais de incenso,
apenas tem, para fixar os olhos, esses leitos mundanos, onde dormiram já muitas
mulheres formosas e se mostraram muitos corpos, que em seguida se entregaram a
homens libertinos, que neles se rebolaram, em delírios de luxúria, em longas e
repetidas saturnais!
Quantos
e quantos desses leitos, donde a Mãe do Senhor não tira nunca os olhos púdicos,
viram gemer corpos de virgens, soluçando ternuras ou derramando lágrimas?
Quanta miséria humana? quantas fraquezas da carne? quantos sonhos do espírito?
Ah!
nem eu quero pensar nisso. Penso apenas na situação da Imaculada, esquecida de
todos, dos padres e dos bispos, da Igreja e do Senhor, que assim a deixam
apodrecer e escarnecer, naquele montão de coisas torvas, aos ratos e às moscas,
às aranhas e ao pó.
Que
ela – diga-se de passagem – também tem seu bocado de culpa. Pois porque não fez
ela como em tempos antigos, quando sía dos templos, muitas vezes até pelo
telhado, quando não era pela fechadura, indo anichar-se pelos vales, em tocos
de castanheiros?
No
meu concelho fez ela isso várias vezes.
E
noutras partes? e outras coisas ainda mais prodigiosas, que eu omito apenas
para não maçar mais o leitor paciente?
Por
isso eu, à vista destes factos tão estranhos, é natural que pergunte: Porque
não foge ela ao sr. Favas e vai anichar-se ali na Sé? São dois passos apenas.
Não pode fugir pelo telhado? Mas não é preciso: a porta está aberta a toda a
hora e, para quem tem o dom da invisibilidade, nada mais fácil neste mundo.
Depois,
havia nisso uma dupla vantagem – para ela e para a cristandade: mudava de
situação e ferrava um calote ao sr. favas, por ele a ter comprado, a ela que é
soberana dos homens e do mundo.
Porque
não o fez desde logo? Porque não o faz ainda?
Responda
a isto o sr. reitor do seminário, que é muito entendido em teologia, porque nós
não sabemos responder sem contestar e beliscar nos divinos poderes da
Imaculada…
Para
honra da Igreja e manutenção do culto público, fico esperando a resposta do
grande teólogo e não menos abalizado metafísico, que nesse mesmo dia eu
encontrei, em frente da dita casa de penhores, com um dedo no queixo e um
guarda-sol na mão, na atitude de quem rumina um alto problema ou define um
grande princípio filosófico.
Thomás da
Fonseca.
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