João Lopes de Morais
aos Deputados da Nação
Existe no Arquivo Histórico Militar uma exposição de João Lopes de Morais aos Deputados da Nação, a que é possível aceder através da Internet. O documento está incompleto, mas mesmo assim é muito interessante, e até porque não temos muitos documentos da sua autoria que possamos consultar facilmente, transcrevo aqui o que está disponível, certo que valerá uns minutos de atenção. Certamente que contribuirá para o conhecermos melhor...
Senhores
Deputados da Nação Portuguesa
O Doutor João Lopes de Morais, Lente na faculdade de
Medicina da universidade de Coimbra, bem que possa duvidar que forma do Governo
mais teria convido a seu interesse particular, contudo afeto sempre ao Governo
representativo, nunca pôde nem poderá mudar d’opinião e de afeição política,
nem deixar de prestar à causa da Liberdade Nacional os bons ofícios e serviços,
permitidos em qualquer ocasião pela sua posição social. Nunca porém o suplicante
arrotou, nem arrotará serviços feitos por inclinação e de que o dever de
cidadão tolhe solicitar recompensa fora do bem da Liberdade, e prosperidade da
sua pátria, fito de suas esperanças.
Tão lisonjeiras esperanças foram em 1826 engodadas
com a Carta aonde os bons portugueses bebiam outras d’uma sabia e justa
Legislação que segurasse a cada um seu Direito, tranquilizasse os bons e
reprimisse os maus: porém o resultado foi em 1828, por seis anos consecutivos
tragarem o cálice d’uma perseguição horrorosa sem mais motivo nem fim, do que
destruir tudo o que cheirava a constitucional para impossibilitar a volta da
Rainha e da Carta, que seus inimigos tanto temiam como odiavam. Por desgraça ou
por fortuna todos provaram mais ou menos deste amargoso cálice, e o suplicante
foi culpado e preso, e por muitas vezes roubado em sua casa, abandonada com
dois tenros filhos, que teve a fortuna de ver depois de 4 para 5 anos de
prisão, donde soube escapar-se com honra e com a coragem cívica, que não é
fácil encontrar em situação tão arriscada. Excitados por desenlace tão contrário
às suas esperanças d’acabar com o suplicante e receosos os seus primeiros e
últimos perseguidores, aliás públicos e encarniçados inimigos de todos os
constitucionais, depois de toda a qualidade de dano e afronta, feita durante a
usurpação á casa, pessoa e família do Suplicante trataram então de assassinar o
suplicante, convidando para isso um criado seu, com promessas de dinheiro e
outras, e recorrendo na falta deste a soldados, que publicamente roubaram de
novo o Suplicante, cuja vigilância o salvou da morte, passando-se para o Porto
com todo o custo e risco.
Depois de tantas ruínas, tantos sofrimentos, e tanto
sangue derramado, restaurada a carta com a Rainha, todo o bom português dá por
bem empregados todos os sofrimentos e esforços passados, que esquecem com a
satisfação de tão justas e lisonjeiras esperanças. Não falta porém boa gente, a
que além da cessação da usurpação, tudo o mais parece novo engodo; e só vê na
Carta um livrinho, uma letra morta, como é toda a Lei sem execução, seja por
vício dela, seja de seus executores. Se a Carta é uma realidade, ou um engodo,
uma aparência, não ousa o Suplicante pronunciar: o que é real, são os
sofrimentos, que por ela têm experimentado os constitucionais, e que o § 28 do
Art. 145 da mesma, dá ao suplicante o Direito de reclamar pela execução do §40
do mesmo Art. que diz – Ninguém será julgado senão em virtude e na forma de Lei
anterior; Assim como o Art. 118 estabelece os jurados só nos casos, e na forma
que os Códigos determinarem; e o 119 diz que os jurados só julgam de facto:
fundado portanto na Carta, só por ela representa o suplicante o seguinte.
1º Que o §10
do Art. 145 da Carta exclui da forma do novo Processo todos os factos cíveis e
crimes praticados antes dos Códigos; por que ninguém pode ser obrigado a penas,
obrigações e formas judiciarias, senão por Leis anteriores aos factos, a que elas
anexam Direitos e obrigações; o que é expresso no citado § pela palavra
anterior, que só pode referir-se ao facto e nunca á sentença; aliás se escusaria,
porque a sua contrária –posterior - nunca se lhe pode referir.
2º Que na falta de Códigos o Decreto nº 24 de 16 de
maio, não pode, nem deve infringir o citado§, aplicando o Processo por jurados
aos factos cíveis ou crimes ocorridos antes do mesmo Decreto ter força e vigor
de lei, e Código de processo; por que nem os Códigos podem prejudicar o Art.
Constitucional subsistente; por isso.
3º Que o citado Decreto no Art.290 excluindo do novo
Processo os factos cíveis e crimes conforme as alturas de seus Processos, em
que se acham no Processo velho, é inconstitucional; por que devia regular essa
excepção pelas datas dos factos , e não pelas alturas dos seus Processos: não obstante
esta falta, o citado Art. do Decreto exclui os crimes, em que houver pronúncia;
por que essa é uma sentença, dada em virtude e na forma de Lei anterior e por isso envolve Direito; mas o
Governo por sua Portaria posterior estendeu a excepção, que só podia restringir à data do
facto, executando assim o §10 do Art. 145. Desta maneira o Art. 290 do citado
Decreto já inconstitucional, mais inconstitucional ficou pela Portaria
subsequente, que ofende o Art.13 da Carta no §6º em que revoga a Lei, o Art.119
em quanto aplica o Júri ao Direito e sempre o §10 do Art. 145 em quanto
restringe a excepção do Art., já ofensivo do mesmo §; e por isso.
4º Que o Suplicante não pretende o Direito de interpretar
Leis mas julga-se no dever de fazer por entende-las para regra da sua conduta;
assim as entende, e nesta inteligência deu querela o suplicante de José Ferreira Tavares, ex-capitão mor de
Mortágua, Manuel Duarte dos Reis, José de
S. Thiago e seu filho
Francisco, escrivães da mesma vila
e perseguidores públicos e encarniçados dos súbditos fieis, por convidarem e
concertarem com um criado, Caetano,
do suplicante o assassínio e roubo do seu amo por preço de 50 moedas; vindo a
verificar-se roubo público por meio de soldados na falha do criado, que veio
depois de algum tempo a comunicar o caso a seu amo para acautela-lo. Diretamente
provou o facto o mesmo criado e Tabelião Pedro José da Costa, mandado pelo suplicante
observar como pudesse fora da porta uma das conferências sobre o assassinato,
feitas de noite, e circunstancialmente depuseram mais 6 testemunhas de fé, e de
ouvida ao mesmo criado convidado quando depois se tornou tudo público pelo
roubo público aonde foi o sobredito Francisco de S. Thiago, o que depuseram de
vista as testemunhas. A querela foi no tempo legal, e com esta prova que é de impor
pena pelas leis e formas judiciarias, que lhe competem, foi julgada por um
homem de Lei, hoje na Relação do Porto, em qualidade de assessor; pronunciando
a prisão e livramento os 4 nomeados, que graças à Constituição que tanto odeiam
como ignoram, os absolveu, bem que infringida, da justa pronuncia, que os
obrigava; mas como? Eu o digo.
O
domicílio dos R R. é no julgado de S. Comba Dão, cuja população agrícola é no
geral extremamente rústica e ignorante: uns concelhos como Mortágua,
naturalidade do Suplicante, têm bom espírito, e disto se tomou motivo no tempo
da usurpação para persegui-lo, a ponto de seus inimigos requererem à Alçada,
pedindo-lhe um exemplo no Suplicante, isto é que o enforcassem, porque
desmoralizava o povo, como diziam e dizem ainda; porque o Suplicante é bem
quisto dele, e tirados os quatro poucos têm a queixar-se. Outros concelhos pelo
contrário são sumamente miguéis; armaram-se em guerrilhas, e corpos de voluntários
no tempo da usurpação, e iam roubar e prender ou perseguir os constitucionais a
toda a parte; de boa ou má fé proclamavam que matar e roubar constitucionais
era obra pia; nada acreditam a favor do governo constitucional; que os ingleses
em 1826 cá viessem; que D. Pedro estivesse no Porto; que a nossa rainha casasse
ou case é coisa que não creem; esperaram por Miguel a cada instante, e a esta
estupidez fanática reúnem uma imoralidade atroz. Juram o que imaginam por
malícia, como se viu nas Devassas da usurpação, matam, ferem, roubam e estão
prontos para toda a desordem, em que possa furtar-se alguma coisa, e esta
esperança é fomentada pelos que figuram na usurpação, e que tem mais, e mais
alguma manha: destes todos é a maior parte dos jurados, aonde há mau espírito:
mas o mais geral e o pior é a ignorância, e a imoralidade.
O
Juiz de Direito é um bacharel Tunes
Duraens, por alcunha o Doutor Zampa; muito ordinário advogado dum povo do
julgado, nunca foi mais que n’um ano juiz dos órfãos de Mortágua, donde o
deitaram fora por ter muita justiça e pouca misericórdia com os órfãos; crê nos
adivinhões, é geralmente infamado d’uma corruptibilidade sórdida, …
(… folha não disponível no documento publicado
na Internet…..)
Com
estes precedentes, com o Doutor Zampa, seu compadre ou de seu irmão, arranjou o
assassino ex-capitão mor alguns jurados de molde para o dia 28 de Janeiro
passado, e apesar da prova da pronúncia confiava nos amigos, e pouco recearia;
porque contava que o Suplicante não ia; e quando fosse, o seu compadre com que
tratava, bem que culpado, sustentaria do seu lado o cumprimento da promessa dos
4, com a ajuda d’outros agentes exteriores. Mas por uma curiosidade o Suplicante
foi ver o grande Tribunal de S. Comba Dão já famoso por muitos precedentes
relativos ao Doutor Zampa. Depois d’entrar em casa d’um amigo que me disse que
o Juiz de Direito era muito amigo de coscorões, e que um prato d’eles podia com
ele tudo, sabido que a Audiência se fazia em casa dele, aí me dirigi ao Grande Júri
para onde fui citado. Encontrei dentro da porta da entrada um sarilho d’armas
embaraçante e vários voluntários aí, e pela escada até à sala da Audiência.
Entrei nesta, e ocupado assento, depois d’um leve rumor, eis aqui o que vi. Em
frente da entrada estava o Doutor Juiz Zampa, de mais de 50 anos; gordo e
barrigudo, baixo, troncho e gotoso, cara larga e bochechuda, russo, mas muito
encabelado; testa mui baixa, sobrancelhudo, olhos esbugalhados, nariz e beiços
grossos, barba cerrada, e abarbilhado: fisionomia d’um frade Bernardo, que come
e dorme bem: a cor era a mesma do seu compadre. Este estava á direita daquele
sentado, e na mesma linha: tinha cara de Réu; mas os fumos eram de juiz, em que
se arvorou em 1828 para perseguir o Suplicante e outros: no meio destes fumos luziam
as insígnias da poeira de 1823, e este ferrete, o colocava não Réu, mas diretor
do Grande Júri, muito da mesma cor do Juiz, e Réu com fumos de juiz. Seguia-se
à direita em linha perpendicular o Delegado do Procurador Régio, da cor do Suplicante;
e logo após os jurados no seu banco. O primeiro e o decano era de 50 anos,
magro, testa alta e estreita, fontes deprimidas, sobrancelhas delgadas, olhos
pequenos, faces proeminentes e angulosas, nariz seco e comprido, beiços
delgados, boca sorvida, barba rebitada, cara comprida e estreita, barba mui
rara e por fazer; pomo d’Adão muito saído e escarnado, o que sem lenço ou
gravata lhe fazia sobressair as queixadas de bacalhau: estava de capote de
burel amarelo por idade, polainas, e um saco atrás de si por baixo do banco: em
fim fisionomia d’um fanático cruel: lembrei-me dos que iam ao cerco do Porto
com saco; e soube que era criado ou feitor dum realista desses povos, onde
abunda a consciência e o miguelismo; mas falta a moralidade e a instrução: os
outros não tinham fisionomia tão expressiva, estavam no mesmo habito, só dois eram
mais limpos, tinham seus lenços ao pescoço e fisionomia aberta, e outros sinais
de franqueza, juízo e bom senso. Nenhum conhecia eu pessoalmente, e o
substituto do Juiz de Direito, que me estava próximo á direita,
reperguntando-se a ultima testemunha, única, que ouvi, porque veio mais tarde,
assim como eu, disse-me – os jurados já
trazem os votos de casa; as testemunhas ratificaram seus ditos com firmeza
e sangue frio da verdade e convicção; mas para tais jurados é perder tempo, porque
nem entendem, nem querem entender; ao Réus tem um mês para os subornar, e o
Juiz de Direito mesmo se tem mostrado empenhado, dizendo há pouco que a
testemunha, que está ratificando seu dito estava em Lisboa, quando sucedeu o
facto, contando que ele não vinha; veremos agora como ele se sai – e
tratando-se esse ponto ficou mentiroso o juiz.
Pela
minha direita logo após e próximo ao substituto estava em separado numa cadeira
em frente dos jurados um bacoco Sapateiro com sua casaca; foi perseguido pelos
miguéis, sendo Miguel no nome e no mais nada, e por isso come deles alguns
caldos por que tem fome, e do Réu e seu consogro come ele, sendo por eles
oculta ou ostensivamente incomodado na usurpação, porque a ninguém poupavam:
mas tem fome e para mata-la estava a fazer grimaças para o grande Júri, grimaças, que depois me explicaram – não!
não! - significavam as tais grimaças. Daí
seguiam-se os espectadores, que naquele dia foram mais, e de cores diversas.
Com este aparelho começou o acto, e com ele o achou o Suplicante à ratificação
da última testemunha, tendo os mais já ratificados seus ditos, menos uma não
citada a pretexto de ausente, por ser de longe. Duas eram, um escrivão e um
tabelião, gente de fé pública; e o último afirmou ao mesmo Réu ter-lhe ouvido
oferecer as 50 moedas ao criado, e instrui-lo no modo de assassinar seu amo.
Perguntado o Réu, negou de tal maneira, que a cada passo se contradizia em circunstâncias;
e o Suplicante foi por isso excitado a notá-lo, e a tomar a palavra, ao que se opôs
o Doutor Zampa; a que o Suplicante redarguiu que a Lei que o chamava o não
tolhia; e implicitamente lhe concedia de falar. Algumas coisas disse o Suplicante
e concluiu para o Juiz – que seu dever era instruir e dirigir, mas nunca iludir
jurados rústicos e simples, e para estes – que posto na querela houvesse prova
para pena, quanto mais para pronuncia; com tudo nenhum interesse particular ou
desejo tinha no sofrimento do Réu, que por seu crime tinha ofendido também o
Público, que por seu ministério obraria este conforme as Leis, mas que ele prometera
ao Réu, quando lhe pediu perdão, não o perseguir, o que tinha cumprido, e o
juiz confirmou; que não acusava, mas se queixava: entretanto que eles
consciência tinham, boa ou má, ou nenhuma; e que aí estava o seu arbítrio –
Dito isto, entregou o juiz ao decano dos jurados os autos com o quesito, e o Suplicante
advertiu ao juiz lhe explicasse; a que ele replicou não ser preciso. O Suplicante
entendeu; saiu, e os jurados entrarão para um quarto da casa, com o ultimo
panal de grimaças, apresentado pelo tal bacoco que lhe estava próximo, era da
mesma fornada, e tinha servido na precedente sessão.
Depois de um
tempo estranhado, pelo costume, com que seus antecessores tinham sempre em
breve decidido, durante o qual constou que da rua para a janela lhe fez por
vezes grimaças um outro bacoco da terra, Miguel, que com o primeiro tinha
ajudado a arranjar 4, saiu em fim o – não- por 4; o que segundo dizem eles
mesmo custou; por que vacilaram por muito tempo; o depois decidiram em perdoar,
(expressão do decano) por que o juiz queria, e o Suplicante declarou no júri nenhum
interesse ter em contrário.
Eis aqui o
que é justiça de compadres em casa do juiz, que só pensa e se lembra do bolo do
afilhado; eis aqui o grande Júri na aldeia, aonde os jurados só pensam na broa
do saco: e bem que a Lei ordene afasta-los de toda a influencia externa e
dolosa ou interessada no seu juízo; proporcionam-se-lhe no local do julgado e
nos vícios da mesma Lei, tudo aproveitado por juízes corruptos, todos os meios
d’abusar da sua influência, para trocar em ridículo a majestade da justiça. A
voz pública, expressão da observação quotidiana, denuncia este ridículo em
todas as Províncias, e por ele uma serie continuada de injustiças. Nunca os juízes
ordinários, desacreditaram assim o oficio de julgar, julgando aliás em Direito
e facto. Os factos escusam comentários, estão sobre a cena nesses julgados, ou
tem documentos vivos nesses cartórios: o clamor público os denuncia, e o
Suplicante o observou esta vez por todas. Os mais corréus, assassinos do
suplicante esperavam com este precedente boa fornada para Fevereiro, e todo o mês
trabalharão com o juiz e jurados para se representar outra comedia, que
findasse a tragedia que na usurpação prepararam; mas o suplicante não julga
competente a cena conforme a Carta, e porque não devia prejudicar o ensino médico
por ver uma comédia, que já viu, não foi: talvez que por não ir o condenassem
nas custas, e ainda alguma multa. Se o
não fizeram foram asnos, porque para tudo servem os jurados; e eu vou fazer-lhe
declarar que os Senhores Deputados e Dignos Pares não estão agora em Cortes, se
me derem alguma coisa para lhe dar: e tudo há-de ser em sua consciência.
Seja o que
for, o Suplicante não se queixa, aponta leis e refere factos judiciários
contrários a elas, que também se contrariam; mas então terá mais esse, a que
resistirá. Agora só observa que na ordem velha a reprovação quase geral dos
juízes nunca tocava as Leis; talvez mais por velhas e portuguesas do que por
boas, de que tinham fama. Na ordem nova tudo se queixa tanto dos juízes como do
sistema estrangeiro, administrativo e judiciário. Tudo é um caos: diz o clamor
público, e o suplicante diz que um caos é pior que uma ordem imperfeita. Força
será passar por esse caos para vir a melhor ordem, mas tempo era já que ela
fosse aparecendo, e que se tivesse observado que os garfos só pegam e frutam
quando se enxertam em árvore, com que têm afinidade; aliás se definha e atrasa
a arvore sem proveito. O senhor Deputado Leonel Tavares disse numa Sessão
passada há pouco, que o actual sistema judiciário para nada servia; e o Senhor Júlio
Sanches chamou admirável a instituição do Júri: ambos estes dois patriotas tiveram
razão.
O novo sistema,
garfo francês, que apesar de todos os apósitos de que o premuniu a Assembleia
Constituinte para se não corromper, em breve se tornou terrível arma nas mãos
de facções, e talvez não contribuísse pouco para o reinado do terror e da
anarquia que o seguiu de perto; este garfo enxertado sem aquelas nem outras
garantias à portuguesa para nada serve de bem; mas tem a virtude admirável e
magica de diminuir os criminosos e aumentar os crimes; porque a impunidade
anima os ofensores e agrava os ofendidos, e nenhuns receando ou esperando pena
ou satisfação nos Tribunais e em jurados, que se corrompem ou aterram como se
quer, fazem justiça e injustiça por suas mãos; e assim as mortes, os
assassínios e os roubos passam em moda, e as nossas autoridades sem força
moral, são nada. Tudo vai indo por si mesmo a uma completa anarquia nas
Províncias, e muita gente boa vê só nessa crise necessária o remedio do mal,
que corrompe o corpo social. O Suplicante não é dos medrosos como sabem muitos
dos Senhores Deputados, se essa crise vier, o que Deus não permita, achará em
si, como no tempo da usurpação, recursos para resistir a seus assassinos, que
devem rir com os mais dos delírios constitucionais que só a eles aproveitam:
vamos ao Júri.
O Júri é
admirável, é o Juízo Nacional, inato nos povos livres, qualquer que seja o
nome: se nos princípios da nossa Monarquia julgavam os Condes, e Governadores
das Províncias com os homens bons (pro
bono et aquo), aí temos uma imagem dele: mas na sua simplicidade bárbara com
poucas Leis e costumes simples nunca os povos foram tão insensatos, que não
escolhessem para juízes os mais velhos e prudentes, mais atilados e probos, e
nos nossos homens bons devemos supor isso, e que não se escolhiam à francesa. O
Suplicante também é jurado, porque tem 50 mil reis; mas esta condição só o faz
o jurado popular, mas não nacional, porque isso não dá juízo, amor de verdade,
independência e força d’espírito para declara-la em juízo: são estas as
qualidades requeridas no jurado para julgar bem, e são estas as que quer a Nação.
Estas
qualidades porém não podem ser comuns aos homens de 50 mil reis de renda; os quais
podem ser de pouco juízo e menos amor da verdade; pobres e dependentes conforme
a família, que tem, bêbados, caloteiros, viciosos e imorais, e sobre tudo
fanáticos, e em sua consciência fazer por isso toda a injustiça. Mais iguais
quanto menos cultos é força que os homens se desigualem pela civilização em
suas capacidades intelectuais, e morais; e por isso em seus Direitos Políticos,
garantida a igualdade em seus Direitos civis. Uma massa de Povo com um modo de
vida uniforme, costumes símplices, e poucas Leis poderá julgar e legislar em
massa, ou por indivíduos à sorte porque o pequeno grau de capacidades as
iguala; e a sua lei, ou seu juízo será popular e nacional ao mesmo tempo: mas
isto não pode ter lugar quando a civilização desiguala as capacidades; e muito
mais porque tanto as eleva muitas vezes n’uma porção, como as abaixa na outra:
então é força que uma porção escolha e outra seja escolhida conforme seu grau de
capacidade; e esta escolha por designadas, e em designadas porções da massa: e
de nada mais serve o rendimento, do que para essa designação. Assim se forma o
Poder Legislativo, a quem dá o caracter nacional e escolha da Nação. O Poder de
julgar também é um poder Político, e abraça a vida do cidadão em todas as suas
relações; por ele se reina; e confia-lo à sorte a 4 bêbados ignorantes de aldeia,
é pior que quantos juízes ordinários nunca houve; estes procuravam as luzes em
seus assessores e tinham responsabilidade, mas aqueles bastam-lhes 50 mil reis,
e consciência boa, má ou nenhuma; não importa que lhes falte o juízo e as
luzes, bem que a falta destas seja o maior mal como judiciosamente, diz um
historiador, e panegirista do júri – Le
Jury étant la réprésentation du peuple pour la justice, comme le corps
legislatif est la réprésentation du peuple pour la loi, doit avoir ses
electeurs, ses élìgibles, et ses elús. Ce serait un plus grand mal encore si la
justice était rendue sans lumières que si la loi était fait sans discernement.
–Aignan.
Tudo no
mundo são factos inclusive as Leis; mas a sua multiplicidade exige que para os
julgar melhor em suas multiplicadas relações, uns homens se dediquem ao estudo
d’uns, outros doutros; d’aqui as diversas profissões: umas mecânicas,
aprendidas por imitação, e por ela exercidas sem maior intervenção do juízo;
outras liberais, em que a inteligência e o juízo faz a principal figura, seja
para aprende-las, seja para exerce-las: neste caso está o julgador de facto: o
facto, sobre que tem a decidir, é passado, e só por uma inducção tirada das
provas, sejam reais ou pessoais: isto é por uma convicção intelectual ou moral,
chega a existência pretérita d’um facto morto; forçoso é conhecer as relações
entre os factos probatórios presentes e os provados pretéritos; e bem se vê já
que pela multiplicidade d’uns e d’outros, pela sua natureza diferente, e
relações diversas são necessárias luzes e uso de julgar, pelo qual se adquirem:
juízos são nossas ideias; e estas não são inatas. A natureza nada mais dá, que
aptidão; mas esta sem uso é nada. Os nossos jurados de saco e broa, agrícolas e
oficiais mecânicos aprendem, e exercem suas ocupações, (quando não são ociosos
e viciosos, o que é pior) por imitação; basta-lhe ver, ouvir, e os mais
sentidos para satisfazer as suas primeiras necessidades; e aí limitam o círculo
de seus conhecimentos, sem necessidade de inducções: comparam pouco, e por isso
pouco julgam, e menos raciocinarão ainda; e os que tem mais aptidão, apenas se limitam
a exerce-la em enganar os outros, e a julgar de factos em relação à sua
conservação; e passam por finos, manhosos e velhacos; mas seu juízo pouco ou
nada se exerce nas relações dos factos uns com os outros, e é destas que eles
são chamados a julgar no júri conforme sua consciência! Na ordem velha havia um
tribunal dela, e dizia-se ser de coisa, que não existia; e na terra do Suplicante
diz-se ser uma cabra velha dum povito, Gontinho, que há muito morrera. A
consciência é um termo vago, que sempre importa a ideia de moralidade; e no
caso consistiria em exprimir o seu juízo, não mentir; mas se há incapacidade
para julgar como pode haver consciência; a não se dizer – não sei, não ajuízo.
A Lei porém
exige uma declaração positiva ou negativa, e o jurado ignorante, que não julga,
mas tem consciência n’outro sentido; se é constitucional por fé, vota contra o
realista, se realista pelo contrário, é sempre em consciência: se é fanático
contra o desabusado; se libertino e vicioso contra o comedido e regular; e
sempre em boa consciência, porque consciência, ou nada exprime, ou muitas
disposições morais tanto boas, como más; e deve por isso desterrar-se da
linguagem das Leis: Convicção intelectual, e moral ou persuasão, entende-se o
que é: consciência não. Um consumado logico, um conhecedor dos factos em suas
relações uns com os outros; um Filosofo moralista conhecedor do coração humano
seria o verdadeiro julgador de facto. O de Direito menos conhecimentos e menos
logica precisa ainda; só tem a comparar o facto da Lei com o facto da decisão
do júri, e pouca ou nenhuma inducção a tirar; e quanto à extensão de
conhecimen…(…)
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