terça-feira, 28 de junho de 2016

Invasões Francesas e Mortágua (continuação)


Que danos provocaram as invasões francesas no concelho de Mortágua?

Desconhecemos se a Câmara tem em arquivo algum registo da época das invasões francesas. Seria interessante investigar o que existe, mas não se viu até agora, nenhum interesse dos sucessivos executivos municipais em organizar e disponibilizar o património documental municipal para que possa ser estudado, isto admitindo que não tem sido sistematicamente destruído. Daí o nosso sorriso amarelo e os comentários ácidos quando ouvimos o actual presidente pedir para os munícipes contribuírem com documentos ou objectos para um centro interpretativo das invasões francesas em Mortágua. Que tal arrumar primeiro a casa e verificar o que existe nas instalações municipais?
Sabemos que os franceses andaram pelo concelho de Mortágua durante um período relativamente longo, entre 23 e 28 de Setembro de 1810 e que só nessa data iniciaram a viagem até ao Boialvo e seguiram em direcção a Coimbra. Também sabemos que a logística das forças napoleónicas era limitada no que diz respeito à alimentação, no pressuposto de encontrar sustento ao longo dos territórios por onde ia passando. Essa política de aquisição de alimentos passava necessariamente pela pilhagem e violência sobre os habitantes. A retirada das populações à aproximação dos franceses, por indicação do comando britânico, levando consigo tudo o que pudessem, e escondendo, ou destruindo, o que não pudessem transportar, despertava nos franceses maior agressividade e crueldade ao verem gorados os seus intentos.
Se acrescentarmos a isso a destruição que naturalmente resulta de uma situação de guerra, poderemos talvez imaginar os danos provocados pela passagem francesa pelo concelho de Mortágua.
Assis e Santos, sem nunca dar indicação do local onde recolheu a informação, dá-nos alguns dados:
“ Duas povoações desapareceram inteiramente: a aldeia do Algido bombardeada pela artilharia inglesa e a povoação de Freirigo incendiada pelos franceses do 2º exército.
Quarenta casas, em diversas povoações, foram pasto das chamas ateadas pelos franceses.
Ainda hoje impressionam as ruínas de certas partes dessas povoações que os habitantes tiveram repugnância de reconstruir, por supersticioso temor.
Foram assassinadas 108 pessoas da classe civil – sem contar os mortaguenses que caíram em combate no Buçaco e em Santo António.
….
A tradição local ainda recorda que o exército anglo-português mandava retirar os moradores das aldeias para o norte, deixando destruído tudo o que não pudessem levar; por  quanto Napoleão proibira a remessa de abastecimentos para o exército de Portugal e as tropas francesas tinham de viver do que encontrassem nas povoações.
Em resultado da destruição de cereais neste concelho por ordem da Regência, para dificultar o abastecimento do exército invasor, a população sofreu terrivelmente todo o ano de 1811; ainda hoje é recordada a fome de então e a procura de cereais no concelho de Águeda, por preços elevadíssimos, nesse tempo.
O acréscimo de mortalidade que se registou em todo o país durante as invasões francesas deve-se ter feito sentir particularmente neste concelho, único em que o exército francês se demorou sete dias e sete noites – exceptuando-se, é claro, as imediações das linhas de Tôrres Vedras.
….
A saúde da população ainda hoje se ressente dos sete dias e principalmente das sete noites que aqui permaneceram mais de 50.000 franceses.
A difusão paradoxal das doenças venéreas nos povoados sertanejos e recônditos- as quais se sabe terem recrudescido pavorosamente em Portugal com as invasões francesas só se pode explicar por um daqueles horrores da guerra a que Vieira pelo seu pundonor de sacerdote mal ousou referir-se.
...
Alguns sacerdotes foram desacatados – cita-se o exemplo dum padre de Santa Cristina que teve de marchar na frente dum destacamento francês ajoujado debaixo dum pipo  de vinho…”

Simão José da Luz Soriano, na “ História da Guerra Civil e do estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal “ dá-nos alguns dados retirados da “Memória breve dos estragos causados em Coimbra pelo exercito francez ,comandado pelo general Massena, etc., Lisboa, Impressão Régia, anno de 1812”  , “resultado das informações colhidas dos diferentes parochos do respectivo bispado”:
“Seis aldeias que estavam situadas ao longo da serra do Bussaco foram pelos invasores reduzidas a cinzas. Na freguesia de Espinho, distante  da dita serra pouco mais de uma légua, oito povos foram queimados. Na freguesia de Pala arderam trinta e quatro casas. Na de Santa Comba Dão teve igual sorte uma aldeia e metade de outra, acontecendo o mesmo na freguesia do Sobral  a três povoações. Correu parelhas com este estrago das casas e povoações o que se experimentou nos gados, cuja perda foi incalculável. A devastação das arvores fructíferas, e com especialidade a das oliveiras, foi cousa que profundamente a agricultura de todo o bispado de Coimbra, reduzindo os proprietários à mais extrema pobreza e irremediável miséria. O exercito francez sustentava-se à custa dos povos por onde passava, destruindo todos os víveres de que não tinha tempo de se utilizar, ou que não podia levar consigo.”
Na “Tábua geral dos assassínios, incêndios, etc. praticados nos dez arcyprestados de que se compunha o bispado de Coimbra”, inserida no mesmo livro, são referidos 108 assassinatos, 47 casas incendiadas, e 191/2 povos incendiados.


 
 
 
Quando observamos atentamente este quadro publicado por Soriano, ficamos com a certeza que algo estava mal, na elaboração. Fomos procurar o original, mas verificamos que o quadro corresponde exactamente ao que foi inicialmente publicado
 


Ampliando um pouco o quadro, constatamos que estão atribuídas 30 paróquias a Mortágua, o que é certamente um erro, por troca com Coimbra.
Ora isso deixa-nos a dúvida, se os dados referentes a assassinatos e incêndios também estão trocados, embora o que está escrito no texto nos leve a admitir que são corretos.


O que foi a política de “terra queimada”, e como funcionou em Mortágua?

Os franceses, por opção, tinham pouco apoio logístico alimentar, pensando em obter mantimentos localmente, por apropriação, ao longo da sua progressão.
Sabendo disso, Wellington definiu como estratégia não dar luta aberta ao exército de Massena, resguardando-se para enfrentar o inimigo já próximo de Lisboa, onde preparara as chamadas Linhas de Torres Vedras, um conjunto de duas linhas de fortificações que lhe davam vantagem tática sobre o exército francês e ao mesmo tempo estava bastante perto do porto de Lisboa, onde os militares ingleses poderiam embarcar para Inglaterra, em caso de insucesso.

Era pois conveniente a Wellington, que a par de ocasionais acções de desgaste e de atraso provocado ao exército francês, este não encontrasse alimentos ao longo da sua marcha. Para isso havia que deslocar, antes da chegada dos franceses, as populações e tudo o que fosse possível transportar, e destruir tudo o que restasse para que os franceses não o pudessem aproveitar. A essa política se chamava de “terra queimada”.
Wellington, em 4 de Agosto de 1810, fez uma proclamação ao povo português, que é base dessa política. e que transcreveremos em tradução livre, já que a publicada pela Gazeta de Lisboa nos parece pouco adequada:

“O tempo durante o qual o inimigo permaneceu nas fronteiras de Portugal, felizmente, forneceu à Nação Portuguesa experiência do que tem a esperar dos Franceses.
O povo permaneceu em algumas vilas tinham ficado nelas, fiado nas promessas do inimigo, e em vão acreditando que, tratando os inimigos da sua país de uma maneira amigável, poderiam assim conciliar, e conduzir o inimigo a praticar com eles sentimentos humanos, e uma conduta indulgente, e que os seus bens seriam respeitados, as suas mulheres livres de uma brutal violação, e as suas vidas poupadas.
Vãs esperanças! Os habitantes destas resignadas povoações têm sofrido todos os males que um inimigo cruel podia ministrar. Os seus bens foram roubados, as suas casas e alfaias queimadas, as suas mulheres atrozmente violadas, e os infelizes moradores, cujas idades e sexo não provocavam a brutal violência dos Soldados, caíram vítimas da imprudente confiança, que depositaram nas promessas, que unicamente foram feitas para serem violadas.

Os Portugueses vêem agora que não lhes resta outro remédio para evitarem os males com que são ameaçados, senão uma resistência determinada. Resistência e determinação para tornar o avanço do inimigo para o interior do seu país o mais difícil possível, removendo do seu alcance todas as coisas que são de valor, ou possam contribuir para a sua subsistência, ou frustar o seu progresso, são os únicos e mais certeiros remédios para  os males com que são ameaçados.
O exército sob o meu comando, protegerá a maior porção do País que lhe for possível; porém, é óbvio que o povo unicamente se pode salvar pela resistência ao inimigo, e os seus bens unicamente removendo-os.
Contudo, o dever a que estou obrigado perante  S.A.R. o Príncipe Regente de Portugal, e a Nação Portuguesa, obrigar-me-ão a fazer uso do poder e autoridade depositada nas minhas mâos para forçar os fracos, e os indolentes a fazerem esforços para se salvarem do perigo  que os espera, e para salvarem o seu país. E nesta conformidade declaro que todos os magistrados e autoridades, que ficarem nas suas cidades ou povoações depois de  terem recebido ordens de quaisquer oficiais militares para se retirarem, e todas as pessoas, de qualquer classe que sejam, que mantiverem a  menor comunicação com o inimigo, e que os ajudarem, ou assistirem em alguma maneira, serão considerados traidores ao Estado, e serão julgados e punidos  em conformidade.

Quartel General, 4 de Agosto de 1810

Wellington “.

Não temos dados para averiguar como foram cumpridas estas ordens  no conjunto do Concelho de Mortágua, mas as descrições que transcrevemos a seguir fazem-nos pensar que muitas povoações, ou não foram avisadas, ou não acataram as ordens dos militares. As mortes de civis, referidas na “Memória breve dos estragos causados em Coimbra pelo exercito francez ,comandado pelo general Massena, etc., Lisboa, Impressão Régia, anno de 1812”, parecem confirmar a nossa suspeita. 
Tomás da Fonseca, no seu livro “O Pinheiro”, publicado em 1948, descreve como se passaram as coisas na sua aldeia:

" Quando em 1810 – fez agora um século – os franceses invadiram Portugal, pela terceira vez, as populações, aterradas ou por ordem do exército anglo-luso, fugiram levando na sua frente os gados e tudo o que podiam transportar.
Uns para as serras altas, onde não pudesse rodar a artilharia nem trepar a cavalaria do inimigo, outros na cauda desse exército, para o desconhecido tudo se deslocou.
Pois bem, caros amigos, da minha terra ninguém tomou a fuga, a não ser uma criança de 10 anos, meu tio avô Serafim, que foi para os Jueus, no alto do Caramulo, onde tinha parentes, os demais firmaram o pé na terra e lá ficaram. Venderam parte dos gados ao exército e o resto, incluindo bois, éguas, porcos, etc., internaram tudo pela ribeira fora , e por lá andaram nas pastagens, que abundavam nos vales. Os donos abriram foços pelas várzeas, enterraram os cereais, o azeite, o mel, e lavraram e gradaram par indicar semeadura recente.
Seguidamente, carregando roupas e comestíveis, foram refugiar-se nas florestas, que nesse tempo se estendiam d’ali até à Serra da Galinha.
Infelizmente, um dos bois, com saudades do curral e das bandeiras verdes, conseguiu furtar-se à vigilância dos seus donos, e mal entrou na aldeia logo foi agarrado, abatido esfolado, esquartejado e assado na eira de meus antepassados entre os clamores da soldadesca esfomeada.”

 Também no “ Diario memorial dos acontecimentos observados em o convento do Bussaco em os mezes de setembro e outubro de 1810, por occasião da guerra franceza, escripto por fr. José de S. Silvestre, religioso do mesmo convento, que foi testemunha de tudo” encontramos testemunho de que muitos habitantes se mantiveram por perto das suas casas:

 Dia 23 “Os moradores dos povos visinhos, opprimidos da tropa, e receiosos do inimigo, largaram immediatamente suas casas e fugiram para esta serra, e muitos acharam entre nós o seu asylo.”

Dia 30” Hoje pela manhã foram- se os soldados inglezes que estavam de sentinella. Recommendaram-nos que dessemos agua aos feridos que estavam na capella das Almas, que os livrassemos dos paizanos que não faziam senão roubar e matar, e que mandássemos buscar uns poucos, que ainda estavam na serra desamparados.”

“Marchei só até á Moura: encontrei n'este povo três homens; disse-lhes: se me queriam acompanhar'? Foram logo.”

“Depois de conversar um pouco com elles, disse aos paisanos que tinham ido comigo, quizessem ir-lhes buscar agua: elles me responderam: que isso não faziam elles: que não haviam de fazer bem aos seu inimigos.
Eu lastimado em ver a deshumanidade d'aquelles corações, fiz todas as diligencias possiveis pelos mover á compaixão. Disse-lhes que aquelles já não eram nossos inimigos: que se antes o tinham sido, estavam já em estado de não poderem fazer mal a alguem: que se elles estivessem no mesmo estado, e na mesma miseria, desterrados das suas terra, sem o abrigo de seus paes, desamparado dos amigos , dos conhecidos, dos mesmos nacionaes, abandonados de todo o auxilio humano, entregues ao rigor do sol, do frio. da fome, e da sede. sem poderem dar um passo
para procurarem alguma subsistencia: se lhes sucedesse a mesma desgraça em que viam aquelles miseraveis, que desejariam? que quereriam lhes fizessem? Façamo –lhes pois o mesmo, que então quereriamos nos fizessem a nós. Devemos amar ao nosso proximo, aos mesmos inimigos: assim o manda Jesus Christo, a santa igreja a mesma razão. Isto faz o bom christão e o deve fazer tambem todo aquelle que deseja ir para o ceu.
Apesar de toda esta minha pratica elles não se moveram logo. Disse-lhes por fim: que se elles não queriam ir buscar-lhes a agua, eu mesmo lha ia buscar.
Tomei logo umas poucas de botelhas, e outras vasilhas, que ali tinham, e parti por um valle abaixo.
Vendo este meu desembaraço, os paizanos moveram-se então á misericordia: um d'elles foi comigo; pediu-me a grandes intancias lhe deixasse levar a agua; porém eu não quiz dar-lhe mais que uma das vasilhas. Cheguei com a agua, reparti-a por todos, e um paizano deu-Ihes também um bocado de broa que trazia no bolso da vestia. Estes feridos não comiam mais que o proprio grão de alguma espiga de milho que tinham junto a si.”

Como se depreende destes registos, as ordens de Wellington não foram tomadas à letra por estas terras de Mortágua.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Alfredo Fernandes Martins ( 1893 -1965 )
 
 
O número único  do Jornal Sol Nascente, que foi publicado em 5 de Outubro de 1912 apresenta como directores e proprietários, Basílio Lopes Pereira e Alfredo Fernandes Martins. Quando fomos ler os números seguintes, publicados a partir de 1913, o nome de Alfredo Fernandes Martins já não aparecia no cabeçalho do jornal. Isso despertou-nos alguma curiosidade quanto ao personagem, mas não conseguimos nenhuma informação oral sobre o assunto, provavelmente por já terem falecido as pessoas que tinham algum conhecimento sobre o assunto.
Nesse número único, Alfredo Fernandes Martins assina um artigo intitulado "Emancipação d'um Povo", que termina com o endereço de Cerdeira- Mortágua. Isso leva-nos a pensar que deveria ter alguma ligação com essa aldeia, ou aí residia.
 
 
Pouco mais de um ano depois, vamos encontrar o jornal Sol Nascente em plena guerra com o jornal Sul da Beira, e não conseguimos entender  qual o tipo de ligação de Fernandes Martins a esse jornal.
 

 
*** 
 
No dia 9/03/1916, há cem anos,  o governo alemão declarou guerra a Portugal. A reacção  no meio estudantil fez-se sentir de várias maneiras, entre as quais na música. António Menano  compôs e cantou um Fado Patriótico (Ninguém me diga que morre), com letra de Alfredo Fernandes Martins que aqui transcrevemos da DISCOGRAFIA DE JOSÉ DIAS E RESPECTIVAS LETRAS , de José Anjos de Carvalho e António M. Nunes, in guitarradecoimbra.blogspot.com/2006 :
 
Já se ouviu de serra em serra
A voz da Pátria, a gritar:
Tomai as armas, meus filhos,
Que temos de batalhar.

Erguei-vos novos e velhos,
A pé todos em geral!
Erguei-vos todos à uma
Para salvar Portugal.

Ninguém me diga que morre
A minha Pátria… ninguém!
Que primeiro que ela morra
Hemos nós morrer também!

Ó Pátria da minha mãe,
Ó minha mãe duas vezes:
São barreiras invencíveis
Os peitos dos portugueses!
 
 
Seria autor  de outras letras cantadas por António Menano.
Da mesma fonte, que atrás referimos, consta a letra original de A Maior Dor  na primeira edição musical, constituída por quatro quadras de autoria de Alfredo Fernandes Martins:
 
Quando me vires passar
D’olhos pregados no chão,
Não me perguntes que trago
Dentro do meu coração.

Que a minha dor é tão grande,
Que, se eu a fosse contar,
Não haveria ninguém
Que não rompesse a chorar.

Pois, mal nasci – Ai de mim!
Leu-me a desgraça o meu fado.
Era negro, só dizia:
Hás-de ser um desgraçado.

E pra eu ser mais desgraçado
No mundo do que ninguém,
Basta nunca ter andado
Ao colo de minha mãe!

**** 
 
Em 1919, na sequência da tentativa de restauração da monarquia, levada a cabo por Paiva Couceiro, e que ficou conhecida por Monarquia do Norte, a revista Ilustração Portugueza publica uma notícia sobre Fernandes Martins.
 
 
" O quintanista de Direito sr. Fernandes Martins, membro da junta republicana de Mortágua e chefe do grupo civil «Legião da Beira», que restaurou a Republica naquele concelho e tem prestado assinalados serviços na defeza das instituições vigentes."
 
**** 

 Consultamos o Annuário da Universidade de Coimbra. - 1918-1919
e confirmamos que só existia um estudante com esse nome:
 "— Alfredo Fernandes Martins,  filho de José Fernandes Martins, natural do Pôrto" , e que efectivamente era aluno do 5º ano de Direito.
 
***
José de Araújo Coutinho em Histórias para os meus netos - A Monarquia de Mortágua -  Lisboa, 2010, publica um depoimento de Alfredo Fernandes Martins, ouvido como testemunha indicada por Joaquim Tavares Festas, no Auto de Corpo de Delito contra o Dr. Joaquim Tavares Festas, João Tavares Festas, Albano Abel Fernandes de Abreu e padres Abel José Paulo, Francisco Diniz de Abreu, Cipriano Rodrigues Coimbra e António Maria Gomes Pires, presos e acusados de terem  proclamado a monarquia e hasteado a bandeira azul e branca, nos Paços do Concelho de Mortágua, em 19 de Janeiro de 1019, obtido do Arquivo Histórico Militar:

« AOS QUINZE DIAS DO MÊS DE MARÇO DE MIL NOVECENTOS E DEZANOVE:
 (…) ALFREDO FERNANDES MARTINS, solteiro, estudante do quinto ano de Direito, de vinte e quatro anos, natural do Porto, residente em Coimbra. Prometeu pela sua honra dizer a verdade e aos costumes disse nada. Perguntado disse: que no dia dezanove de Janeiro último, aquando dos acontecimentos monárquicos de Mortágua, se não encontrava ali, não só porque reside a cinco quilómetros de distância, mas também porque a sua condição de exilado do movimento de doze de Outubro, em que tomou parte, lho não permitia; que sendo informado da restauração do regímen monárquico ele, como velho republicano, resolveu lutar ainda na defesa da República, para o que convidou um grupo de dedicadíssimos correligionários seus, entre os quais o antigo senador e publicista Tomás da Fonseca; que, reunido o grupo, caminharam sobre Mortágua, onde uma junta de defesa da República de que ele fez parte, assumiu a direcção do Concelho, restaurando no salão nobre, no meio de uma ovação estrondosíssima, o regímen republicano que na véspera fora banido; a junta republicana nomeara para Administrador do Concelho, o velho republicano e prestigioso oficial do exército, Capitão João Henriques de Almeida; que a mesma junta fora ainda ocupar revolucionariamente o edifício dos correios e telégrafo e ainda, já de noite, mandaram buscar a três quilómetros de distância, à Carreira de Tiro, as espingardas Mauser-Vergueiro e respectivos cunhetes que ali se encontravam para instrucção dos alistados na Sociedade Militar; que ninguém se opôs a que a junta republicana e o administrador do concelho procedessem como era conveniente na defesa da República, não havendo da parte dos adversários uma atitude caracterizadamente hostil, que aliás seria energicamente reprimida; que no seu entender o movimento de Mortágua foi exclusivamente militar, não lhe repugnando a ideia que algum partidário do extinto regímen manifestasse a sua alegria ao ver flutuar a bandeira azul e branca; porém , está convencido que a bandeira monárquica não seria hasteada nos Paços do Concelho se uma força militar, conduzida em automóvel o não tivesse feito; que a restauração republicana se fez vinte e quatro horas depois da proclamação monárquica; que por isso ele não pode afirmar absolutamente nada sobre a acusação agora feita aos arguidos; que no entanto protesta sobre a detenção do distinto clínico Doutor Joaquim Tavares Festas, pelo qual empenharia a sua honra garantindo-lhe  a inocência; que pode afirmar que este preso se encontra gravemente enfermo há muitos meses, de uma doença rebelde cujo tratamento anda sendo ministrado pelo ilustre médico desta cidade, Excelentíssimo Doutor João Rodrigues de Oliveira, chefe do partido unionista; que afirma e garante, sob juramento, que no dia vinte e um de Janeiro ao dar-se o incidente monárquico ele se encontrava afastado de Mortágua e acidentalmente na sua casa da Gândara, onde tinha ido de Coimbra com pouca demora (…)  
in Arquivo Histórico Militar, Fundo 1, Secção 37, Caixa 59 »
 

***
 
Em 1920, vamos ter notícias de Alfredo Fernandes Martins, relacionadas com a sua actividade como dirigente estudantil da Associação Académica de Coimbra, de que terá sido presidente, encabeçando um movimento que passaria a ser conhecido como Tomada da Bastilha.
 


«Em 1913 o Senado Universitário concedeu à AAC o rés do chão do Colégio de São Paulo na Rua Larga, onde já estava instalado o Clube dos Lentes, oriundo da mesma raiz: a Academia Dramática.
As instalações no Colégio eram já escassas para toda a actividade académica, que já incluía a dos organismos autónomos então existentes: o Orfeão e a Tuna.
A relação com o Clube dos Lentes não era boa e o primeiro andar que eles ocupavam já tinha sido destinado à academia, mas a entrega tardava.
No dia 25 de Novembro de 1920, pela madrugada, quarenta estudantes ocupavam os andares superiores, num assalto que se tornou famoso e que a academia denominou de Tomada da Bastilha. O Colégio passou a ser conhecido como a Bastilha e o dia 25 de Novembro passou a ser o dia da Academia de Coimbra.
Alfredo Fernandes Martins, estudante de Direito, ajudado pelo seu colega Padre Paulo Evaristo Alves e os estudantes de Medicina João Rocha, Pompeu Cardoso e Augusto da Fonseca Júnior, conhecido por "Passarinho" foram os principais mentores de memorável conquista.
Dividiram-se em três grupos: um para ocupar a torre da Universidade usando chaves falsas, outro para o assalto ao Clube dos Lentes, e outro para defender a sede da AAC, isto é, o rés do chão do Colégio.
»

in cidade-coimbra.blogspot.com/2007/11/associao-acadmica-de-coimbra-aac.HTML


Alfredo Fernandes Martins, primeiro à esquerda, com os outros conspiradores

Do livro "Coimbra de Capa e Batina" de Carminé Nobre, a página da Associação Académica de Coimbra transcreve uma descrição mais pormenorizada:

Eram quarenta os conjurados, que cegamente obedeciam ao comité central, constituído pelos estudantes Fernandes Martins, Paulo Evaristo Alves (Padre Paulo) de Direito, Pompeu Cardoso, Augusto da Fonseca (o Passarinho) e João Rocha de Medicina.Em sucessivas reuniões, o comité central foi afinando o plano de assalto. Uma delas realizou-se na Torre de Anto onde a nostalgia de António Nobre pairava ainda em fortes traços de lirismo. Além do comité central, havia os chefes de grupo de inteira confiança, os quais por sua vez, recrutariam os elementos sobre que agiriam directamente.Uma noite, à luz mortiça de um lampião de azeite, velha relíquia de antigas gerações, o comité central deliberou, definitivamente, fazer o assalto no primeiro dia de Dezembro, comemorando o feito histórico de igual data, em 1640. Porém, um dia depois chegou ao conhecimento do comité a notícia, fundamentada ou não, de que a Reitoria apesar de todo o sigilo havido nas diligências já realizadas, tinha conhecimento do que pretendia fazer-se, e procurava evitá-lo, inclusivamente auxiliada pela intervenção da força pública.Uma reunião de urgência levou o comité revolucionário a precaver-se contra qualquer surpresa da Universidade e, assim, deliberou antecipar o movimento e marcar a sua realização para a madrugada de 25 de Novembro.
Chegou a noite. O bairro latino afogava-se em penumbras. Numa casa antiga e em volta de uma mesa escalavrada, reuniu pela última vez o comité. Nessa noite, o Clube dos Lentes deixaria de existir na casa da Rua Larga. Por volta das onze horas estavam as forças reunidas e é curioso notar que os conjurados não conheciam o comité central. Todos os juramentos de fidelidade à causa eram feitos ao chefe de grupo, que, por sua vez, os transmitiam. Sobre a madrugada, frigidíssima e chuvosa, foi escalonado um grupo para assaltar a Torre da Universidade e repicar os sinos festivamente, logo que um morteiro lhe anunciasse que o Clube dos Lentes estava nas mãos da Velha Briosa.Ao partir, receberam as chaves falsas que lhes abriam a porta da Torre.
A chuva caía em bátegas, e como se receasse o êxito desta diligência, que tinha de principiar pelo escalamento da Porta de Minerva, logo Augusto Fonseca, tranquilo e sorridente, destrui essa preocupação, afirmando: "a Torre é connosco". Vem a propósito dizer, que a agitação política daquela época, estendia a sua paixão até aos espíritos mais humildes. E foi certamente por isso, que o serralheiro Alfredo Garoto, com oficina na rua das Covas, ao ser peitado em confidência para fazer as chaves falsas, se apercebeu de que alguma coisa de muito sério se ia passar. E nesta convicção, interrogou em meia voz:-É contra os talassas? Se é, faço tudo de graça.Não foi contra os talassas, mas as chaves ainda hoje estão em dívida.Às 6 e 45 da manhã, a explosão de um morteiro sobressaltou a cidade e os estudantes que se encontravam na Torre ficaram assegurados que o assalto estava consumado.Repicaram os sinos e logo uma girândola de 101 tiros, lançada das varandas do antigo Clube dos Lentes, tornado naquele momento Associação Académica de Coimbra, chamou a Academia à realidade da conquista.Acorreram os estudantes de todos os lados da cidade. Nas primeiras impressões Coimbra julgou tratar-se de um movimento político.O dia 25 foi de festa rija para a Academia. Ao rasar da noite, partiu da Alta com destino à Baixa - a via sacra do estudante - uma marcha luminosa (hoje recordada como o cortejo dos archotes) com milhares de pessoas, pois a cidade associou-se ao regozijo à Briosa. E quando outra madrugada rompeu ainda no bairro latino se ouvia o grito heróico da conquista:- Viva a Academia!

fonte: http://www.aac.uc.pt/historia/tomadabastilha.php

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João Pedro Campos, no seu livro AAC: os rostos do poder também nos dá algumas informações:
“ Conhecido boémio, Fernandes Martins estudou Direito na Universidade de Coimbra durante muitos anos, tendo chegado a estudar e trabalhar ao mesmo tempo.”
“ Chegou à presidência da Associação Académica de Coimbra em Junho de 1921 e teve dois momentos marcantes no mandato: a reabertura da sede da AAC em Outubro desse ano (havia sido encerrada nas férias de Verão para obras), e a inauguração do Campo de Santa Cruz (terreno de jogos para a Académica) em Março de 1922, num jogo entre a “Briosa” e o Académico do Porto. (…) A Queima das Fitas também foi retomada  , depois de um ano de suspensão.”
“ Fernandes Martins terminou o curso em 1926, ano em que foi eleito presidente do Orfeon Académico de Coimbra. Dedicou-se depois à advocacia, tendo feito parte de alguns casos importantes.”
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O jornal Santacombadense, de 4 de Maio de 1930, dá a notícia do falecimento  do médico Dr. Joaquim Tavares Festas, antigo líder dos monárquicos de Mortágua, e das homenagens fúnebres, nas quais participou o Dr. Fernandes Martins, em tempos membro da Junta Republicana de Mortágua, e chefe do grupo civil «Legião da Beira».
 
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António Manuel Nunes  dá-nos conta da presença de Alfredo Fernandes Martins nos " festejos de um centenário da Real República Baco (fundada em 30/04/1934), possivelmente realizados em 1945, ou no ano anterior. A fotografia vem publicada em Carminé Nobre, "Coimbra de Capa e Batina. Volume II", Coimbra, Coimbra Editora, 1945.
Na fotografia são reconhecíveis o estudante Sobral Torres (com violão) e a seu lado o Dr. Alfredo Fernandes Martins (advogado e poeta). "
 
 

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O mesmo autor(A.M.Nunes), informa-nos da presença de Alfredo Fernandes Martins "letrista, advogado em Coimbra" , nas Bodas de Diamante do Orfeon Académico de Coimbra, que tiveram lugar em Coimbra entre 23 de Abril e 1 de Maio de 1955. 
Entre outros ilustres participantes consta alguém intimamente ligado a Mortágua: Manuel Simões Julião, "cantor, funcionário administrativo".
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Alfredo Fernandes Martins, faleceu em Coimbra no dia 18 de Maio de 1965.
 
***
 
Isto foi o que conseguimos apurar, até agora, sobre Alfredo Fernandes Martins, natural do Porto e estudante em Coimbra, que esteve ligado ao Concelho de Mortágua, em especial a Cerdeira.
Seria interessante perceber a natureza desta ligação.
Sabemos também que o seu filho, com o mesmo nome, foi um eminente Professor Catedrático de Geografia da Universidade de Coimbra, falecido em 1982.
 
 
 

domingo, 26 de junho de 2016


Manuel Simões Julião

Nos anos 50 do século passado, veio residir em Mortágua um homem que os mais idosos conheceram. Chamava-se Manuel Simões Julião, era natural da Pampilhosa, licenciado em Histórico-Filosóficas, e veio chefiar a Secretaria da Câmara Municipal da Mortágua.

 Pensamos que o acompanhante do Dr. Julião, é Manuel Branquinho, guitarrista e cantor consagrado, que gravou vários discos.
 
 
Sabemos que participou em iniciativas de caracter teatral e musical, que estão documentadas em fotografias da época, e a ele devo a minha primeira actuação pública, numa récita do Externato Infante de Sagres de Mortágua, em 1965.  Teve a gentileza e paciência de ensaiar, e acompanhar à viola o aluno de sua esposa, Dª Maria José Abreu, que tinha por incumbência cantar o “Manuel das Cebolas”. Mas eu, como a maioria dos habitantes do concelho, nunca me apercebi da sua real importância no panorama musical da chamada Canção de Coimbra. Só recentemente me apercebi que o Dr. Julião foi, na sua época, o mais proeminente cantor de Coimbra.

Fotografia extraída do Catálogo da Exposição "Mortágua, um olhar sobre o passado"
 
Depois de uma época  em que abundaram  em Coimbra cantores célebres (1920-1930), surgiu um período durante o qual poucos cantores se evidenciaram.
António Manuel Nunes, um dos mais dedicados estudiosos do fado de Coimbra, refere-se assim ao Dr. Julião:
«A crise de cantores arrastava-se desde 1935. Na primeira metade de Quarenta, os louros vão para o primeiro tenor e estudante de Letras Manuel Martins Catarino (Julião)*. Formado circa 1944-1945, era senhor de uma voz “pura e sonora , de grande efeito”, “potente e galvanizadora”..

* Manuel Julião por vezes assinava como Catarino, em homenagem ao seu pai.
Nunes, António Manuel . Da(s) Memória(s) da Canção de Coimbra, in Canção de Coimbra, Testemunhos Vivos. Edição D.G.A.A.C. 2002,Coimbra

José Anjos de Carvalho e António Manuel Nunes, em publicações nos blogs guitarradecoimbra.blogspot.com    e   guitarradecoimbra4.blogspot.com, informam-nos :
«Enquanto aluno, MSJ destacou-se como solista titular do naipe dos primeiros tenores do Orfeon de Raposo Marques (1943-44 e 1944-45). Neste organismo chegou a integrar os respectivos corpos directivos e a colaborar com o regente como júri de selecção de candidatos. Em 1944-45 dividiu os solos do Orfeon com outros dois serenateiros, Napoleão Amorim e Mário Mendes. A título de exemplo foi MSJ quem examinou Augusto Camacho Vieira nas provas de aptidão vocal para o Orfeon.»

Manuel Simões Julião não gravou qualquer disco.
É possível que haja  registos da sua participação em alguns eventos:
- Serenata do Centenário de Hilário,  no Pátio da UC em 4/06/1964 - teve transmissão na Emissora Nacional e na RTP.
- Homenagem a Lucas Junot, no pátio do Museu Machado de Castro em 25/07/1970
“Serenata” realizada por Manuel Julião/Manuel Branquinho em 1973, no auditório do Instituto de Antropologia, no âmbito dos encontros anuais de antigos estudantes promovidos pela AAEC, habitualmente  gravados por Condorcet Pais Mamede.

Como compositor, temos conhecimento de dois fados de sua autoria, que vieram a se gravados por outros cantores seus amigos, e que algumas vezes o visitaram em Mortágua.

Manuel Duarte Branquinho, no EP “Manuel Branquinho”, Porto, Orfeu, ano de 1968 gravou o tema:
MINHA MÃE (Ó minha mãe, minha mãe)
Música: Manuel Simões Julião; Letra: Manuel Simões Julião
Data: 1945


Oh minha mãe, minha mãe,
Oh minha mãe pobrezinha,
Guarde-te Deus lá nos céus,
Oh minha santa mãezinha.

Sou pobre, não sou ninguém,
É grande a minha pobreza;
Eu só vivo da saudade
Que é toda a minha riqueza.


Em 2007, Fernando Rolim  no CD “O regresso de quem nunca partiu”,  Ovação, gravou o outro fado

FADO DA LOUCA (Chamou-me louco uma louca)
Música: Manuel Simões Julião ; Letra: 1ª quadra de Manuel Simões Julião; 2ª quadra de Henrique de Miranda Martins de Carvalho
Data: 1949-1950


Chamou-me louco uma louca
Que me trata com desdém.
Sou louco mas é por ela,
(Ai2) Que é louca não sei por quem.

Todas as vezes que eu passo
Pela rua onde tu moras,
Eu coro quando te vejo
(Ai) E tu, ao ver-me, descoras

Manuel Simões Julião faleceu em Mortágua no dia 11 de Junho de 1982, estando sepultado no cemitério da Pampilhosa, Mealhada.

Nota: Exceptuando as informações de natureza pessoal, o texto é no geral copiado, sem qualquer intenção de plágio, de José Anjos de Carvalho e António Manuel Nunes, em publicações nos blogs guitarradecoimbra.blogspot.com  e   guitarradecoimbra4.blogspot.com, sem dúvida alguma, fontes indispensáveis a quem se queira debruçar sobre a Canção de Coimbra, pelo rigor e abundância de informação que disponibilizam nas suas publicações.

sábado, 25 de junho de 2016


Cadastro de Mortágua - 1527

O Rei D. João III, em 17 de Julho de 1527 escreveu uma carta aos corregedores das  seis comarcas *  em que o país estava dividido, ordenando que efectuassem um cadastro geral do Reino, no qual dizia:
Follgarey de saber quantas çidades vyllas e lloguares ha em vossa correiçom e assy quantos moradores nelles ha [e] quamtas lleguoas cada çidade e vylla tem de termo pera cada parte e com que lloguares outros parte”.

 Este inquérito decorreu entre 1527 e 1532, e centrou-se essencialmente sobre os fogos que compunham cada aglomerado populacional. De modo que, onde está escrito moradores, devemos entender fogos.
Para o cálculo do número de habitantes é habitual utilizar-se um coeficiente de multiplicação de 4.3, que corresponderia à média de habitantes por cada fogo. Em resultado disso, estima-se que a população de Portugal, nessa época, rondasse 1 216 000 habitantes, residentes em 282 718 fogos.

Os resultados foram publicados no livro “Cadastro da população do Reino (1527) actas das comarcas Damtre Tejo e Odiana e das Beiras
João Maria Tello de Magalhães Collaço. Lisboa 1929, e

na «Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa» (Ano II, 1943) - «Cadastro da população do reino: 1527» – D. João III.

 Há algum tempo tivemos oportunidade de aceder a uma fotocópia das folhas  respeitantes ao Concelho de Mortágua, que pensamos pertencer ao citado livro, e que aqui reproduzimos para que todos possam ver os primeiros dados demográficos que nos dizem respeito.  

 
 
 
Pelo que aqui vemos, o Concelho de Mortágua teria cerca de 2 322 habitantes, em 1527.

*  Entre Douro e Minho, Trás-os –Montes, Estremadura, Beira , Entre Tejo e Guadiana, e Algarve.

 Outra Bibliografia:
“População e rede urbana nos séculos XVI-XVIII”, José Vicente Serrão in César Oliveira (dir), História dos municípios e do poder local (dos finais da Idade Média à União Europeia), Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 63-77

sexta-feira, 24 de junho de 2016


Chanfana / Lampantana - Final

A origem da Chanfana ou lampantana não está completamente esclarecida. As teorias que têm sido divulgadas, e que os seus partidários  defendem com termos equívocos do tipo “como reza a tradição”, ou apodando-as de “lendas”, são na maioria dos casos de uma fantasia delirante, para não dizer que são mentiras elaboradas para enganar os cidadãos crédulos, por ingenuidade ou conveniência.

1- Os que defendem uma maior antiguidade, ligam a origem da chanfana ao pagamento das rendas aos conventos ou mosteiros, em géneros, nomeadamente em  cereais, animais e vinho. Face á abundância de animais velhos dados como tributo, e  à dificuldade de conservar os alimentos, as freiras terão inventado  um método de confecção que possibilitava a sua conservação, nesse tempo em que não havia  os aparelhos de frio, de que dispomos actualmente. Esta hipótese poderia ter alguma viabilidade, mas é estranho que não apareça descrito o prato em nenhum dos livros de culinária até ao século XX.

2- Existem depois as teorias que de algum modo relacionam a chanfana  com as invasões francesas:

a)- Para evitar o roubo das reses pelos franceses, as freiras inventaram uma maneira de conservar a carne depois de assada com vinho, que permitia que a escondessem do invasor. É estranho que só nessa altura tivessem descoberto o processo de conservação.

b)- Os habitantes  envenenaram os poços (e os rios?) para que os franceses não tivessem acesso à água para consumir, e então cozinharam a carne com vinho.

c)- Os franceses envenenaram os poços, e os habitantes resolveram a situação cozinhando a carne com  vinho.

Qualquer destas duas hipóteses é inverosímil, dado que se é possível envenenar um poço durante algum tempo, não é possível envenenar um rio por um período de  tempo considerável. Por outro lado, não se consta que o pão, as batatas ou os grelos, que acompanham a carne, tenham sido alguma vez preparados com vinho.

3-  Outras teorias centram-se na descoberta individual:

a)- Uma delas deu até lugar a um livro de banda desenhada, com o beneplácito de Presidente da Câmara de Vila Nova de Poiares e da Confraria da Chanfana do mesmo concelho. E conta-nos que o Ti Maria  do Ti Henrique do Alveite, que decidiu cozinhar a cabra demasiado velha cobrindo-a com vinho, por uma qualquer inspiração, certamente divina.

b)- Encontramos uma outra, em que um indivíduo que devia cuidar do cozinhado da carne no forno, se embebedou e em vez de colocar água na caçoila, encheu-a com vinho,  e daí a descoberta acidental da especialidade  culinária.

c) – Finalmente, na aldeia da Marmeleira do concelho de Mortágua, a D. Angelina, inventou a chanfana, que depois passaria a Lampantana, em homenagem à sua autora, depois de discussão entre muitos intelectuais, na Escola Livre da Irmânia.

Sobre esta teoria, já fizemos a sua contestação noutra mensagem deste “blog”.  Sobre as duas anteriores é difícil contestá-las, dado que não temos reportagem jornalística que nos ajude, e também não conhecemos a Ti Maria  do Henrique, nem o cozinheiro Borrachão.

A nossa opinião

1- Origem

Sabemos que utilização do vinho para amaciar as carnes já era uma prática habitual entre os Romanos, que ocuparam toda a península Ibérica. No entanto, não encontramos qualquer referência da persistência desse hábito em Portugal, nos livros de cozinha anteriores ao século XX.

Sabemos também pela literatura que o termo chanfana já existia há muito em Portugal, pelo menos desde a segunda metade do século XVIII, mas correspondia a um cozinhado cuja descrição feita por cronistas e poetas não corresponde àquilo que conhecemos hoje por esse nome. Existem em Espanha e nos países de expressão castelhana, pratos designados por Chanfaina, que correspondem “grosso modo” às descrições que Nicolau Tolentino e o Lobo da Madragoa fizeram no início do século XIX.

Há algum consenso que o prato culinário que actualmente conhecemos começou a ser confeccionado na época das Invasões Francesas. Os franceses tinham pouco apoio logístico, e era nos locais por onde passava que recolhia os alimentos para o seu sustento. Habituados como estavam a cozinhar as carnes com vinho ( Coq au vin, Boeuf Bourguignon), não deixariam de confeccionar desse modo o que foram encontrando pelo caminho (cabras, ovelhas, vacas, galinhas, etc) , desde que tivessem vinho à sua disposição. Apesar da chamada “politica de terra queimada” que Wellington tentou impor às populações a verdade é que terão sido muitos os contactos, voluntários ou involuntários, da população com o exército francês, e daí terá certamente resultado a aprendizagem da técnica, posteriormente acrescentada pela creatividade de quem as executou.

Alguns testemunhos pessoais também apontam para a origem francesa da actual Chanfana.

A Dra. Maria Celeste Torres (Professora)  numa página da  Confraria Gastronómica do Leitão da Bairrada relata-nos:

 

Segundo me disse a Dr.ª Teresa Mamede, bairradina de gema, natural e residente em Anadia, a avó dela dizia que tinha tido origem por altura das Invasões Francesas e que teria sido “inventada” pelos franceses que, aquando da última invasão (1810) e antes da Batalha do Bussaco, estiveram acantonados durante algum tempo nas abas serranas da Bairrada”

Há aqui alguma confusão histórica, uma vez que os franceses só acederam à região da Bairrada depois da Batalha do Bussaco, em trânsito para Coimbra, em direcção a Lisboa que era o seu objectivo.

 Um nosso parente, Sérgio M. Pinto, natural de Vale  de Remígio e residente na Póvoa, contou-nos que a sua avó, Maria Vitória Oliveira, que morreu em 1968 com 90 anos de idade, sempre lhe disse que o pai dela, António Belmiro, que trabalhou muitos anos na Quinta das Águias, em Vale de Remígio, afirmava que o prato tinha sido aprendido com os franceses, durante as Invasões Francesas, quando estes permaneceram durante algum tempo instalados na referida quinta.
2 - Distribuição geográfica

 in  www.jn.pt

A distribuição geográfica da divulgação da chanfana não apresentando uma sobreposição, tem alguma aproximação aos trajectos das invasões francesas.

Podemos encontrar na Internet ofertas de chanfana em lugares tão diversos como:

Vila Flor, concelho do Sul do Distrito de Bragança

Terras do Bouro, distrito de Braga

Moscoso, concelho de Cabeceiras de Basto, distrito de Braga

Germil, concelho de Ponte da Barca, distrito de Viana do Castelo

Ponte da Barca

Vila Verde, concelho de Alijó, distrito de Vila Real

Cerva, concelho de Ribeira de Pena, distrito de Vila Real

Mondim de Basto, distrito de Vila Real

Santa Marta de Penaguião, Distrito de Vila Real

Lamego, distrito de Viseu

Mortágua, distrito de Viseu

Monte Frio, Aldeia da freguesia da Benfeita, concelho de Arganil,

Aveiro

Águeda

Barrô, Águeda

Cordinhã, Cantanhede

Arganil, distrito de Coimbra

Souselas, distrito de Coimbra

Manteigas , distrito da Guarda

Sarzedo, concelho da Covilhã, distrito de Castelo Branco

Reguengo do Fetal , distrito de Leiria


3- Designação

Partilhamos a opinião de Lima Reis JP no artigo Chanfana, publicado na revista Alimentação Humana, 2009, vol.15, nº3, segundo o qual  a designação de chanfana “não terá sido senão uma usurpação do nome antigo por vaga semelhança visual das duas confecções em confronto.”

Desconhecemos o momento em que se começou a utilizar o termo Lampantana para designar a especialidade culinária. É provável que tenha sido uma tentativa de evitar a confusão com outro prato que ainda existia, embora já em declínio como sugere Alberto Pimentel no livro  A triste canção do Sul, publicado em 1904:

“Nas tabernas, onde as iscas vieram desthronar a chanfana, tão decantada no seculo XVIII por Tolentino e pelo Lobo da Madragôa, também o fadista tem preferências especiaes, segundo os bairros.”

O termo Lampantana, mais usado em algumas zonas dos concelho de Mortágua e dos concelhos limítrofes no Distrito de Aveiro. Não existe qualquer relação com o tipo de carne utilizada, como podemos ver no livro A Cova dos Leões  de Tomás da Fonseca, (Lisboa,1958) : “ E, cá fora, duas dúzias de pessoas, de boca aberta, à espera que amigos ou parentes da terra as convidassem a saborear o chibo à lampantana, que os visitantes igualmente conheciam das suas andanças pela serra.”  

Ignoramos também o que leva a diferenciar Chanfana e Lampantana que são apresentadas na mesma lista de especialidades, em publicações na internet relativas ao distrito de Aveiro. Vejamos:

“Do inigualável sabor do leitão à Bairrada, à chanfana ( de borrego ou de cabrito), da vitela ou carneiro à lampantana, à chouriça com grelos, aos rojões ou ao cabrito assado, a gastronomia da região permite-lhe encontrar magníficos pratos capazes de satisfazer o mais exigente dos apreciadores.”

www.visitportugal.pt - Turismo de Portugal, I.P, www.turismodocentro.pt - Região de Turismo Rota da Luz

ou ainda:

“Quanto às carnes, prove que não se arrepende o suculento carneiro à lampantana (assado na caçoila de barro preto), o estaladiço leitão assado, a chanfana de borrego ou de cabrito, o chouriço com grelos ou, ainda, uns apetitosos rojões.”

Texto de Joana Simões especialmente para o regiaocentro.net

ou:

Ainda nos pratos de carne, especial destaque para a chanfana de borrego, para os saborosos rojões, a carne de carneiro ou, ainda, a cabra à lampantana.”
N-ESCAPADINHAS  Águeda

 

Resumindo:

- Existe uma relação temporal entre o conhecimento do prato culinário e as Invasões Francesas.

- Há alguma coincidência geográfica da distribuição da chanfana e do trajecto das Invasões Francesas, em especial, a 2ª e a 3ª.

- Os franceses têm na sua tradição culinária, pelo menos dois pratos cozinhados com vinho: Coq au vin e Boeuf Bourguignon.

- A logística do exército francês era reduzida, o que os obrigava a adaptarem-se ao que encontravam na sua progressão.

- A utilização do termo chanfana deriva, provavelmente, de apropriação do nome por alguma semelhança visual com um outro prato culinário, anteriormente existente.

- Não sabemos quando surgiu o termo Lampantana, mas é provável que tenha sido criado para evitar a confusão com o guisado de vísceras.

- O termo Lampantana não está vinculado à carne de Cabra ou de Ovelha.

- Desconhecemos o que leva a que, no distrito de Aveiro se diferenciem, na mesma lista de pratos culinários, chanfana e lampantana, sem estabelecer ligação ao tipo de carne utilizada.

É uma questão que gostaríamos de esclarecer, mas ainda não nos foi possível. De momento ficamos por aqui.