domingo, 5 de junho de 2016

Chanfana, Lampantana, Carne assada - 2

A Versão do Dr. José Baptista

Para que não digam que estamos a citar uma versão truncada, ou deformada da história da Chanfana/ Lampantana, em que se baseiam todas as que têm vindo a ser difundidas, sobre o assunto, nos documentos produzidos pela Câmara Municipal de Mortágua, começaremos por reproduzir, na íntegra, o escrito original do Dr. José Baptista, e publicado pela primeira vez no livro “Nos caminhos do Património” da autoria de Mário Nunes e editado pelo Grupo de Arte e Arqueologia do Centro e pela Livraria Minerva, em Coimbra, no ano de 1989.

« Pelo Carnaval, há cerca de 60 anos, na Marmeleira, povoação do Concelho de Mortágua, uma senhora chamada Angelina, teve a ideia de improvisar para a refeição um “prato” surpresa, confeccionado com carne de ovelha, e do seguinte modo: 
Para uma caçoila, de barro preto de Molelos, cortou a carne aos pedaços e a cada camada de carne juntou um pouco de colorau, pimenta, cebola picada, alho esmagado, sal e folhas de louro. Depois da carne acondicionada deste modo na caçoila, juntou-lhe ainda um ramo de salsa e uma golada de azeite e conservou-a assim, a tomar contacto com os temperos, durante o tempo que ia decorrer para aquecer o forno de lenha, onde ia cozer o pão de trigo, que nessa altura se chamava o “pão de festa”.
Quando o forno já estava à temperatura ideal, meteu lá os pães (também chamados “pão caseiro”), cobriu a carne na caçoila com bom vinho tinto e introduziu-a também no forno para assar.
De vez em quando, “regava essa carne com vinho para que não ficasse a descoberto de molho , enquanto assava.

A carne assim preparada ficou  uma maravilha. E chegado o dia da sementeira das batatas, a mesma senhora mandou abater outro lanígero do seu rebanho e preparou-o para a merenda, do mesmo modo como tinha preparado no dia de Carnaval, por se tornar fácil a sua confecção.
A dita merenda, da qual fizeram parte, também, alguns convidados, constou de :
- carne, assim assada
- pão caseiro, de trigo, pão de festa
- batata cozida com casca, conhecida por “batata fardada”, que se descascava no momento que se ia comendo, temperada com o molho da carne;
- grelos, na época ( quando da falta destes, servia-se com alface);
-e vinho.
A merenda foi muito apreciada, todos gostaram da carne assim preparada, uma especialidade que merecia um nome.

As sementeiras, as colheitas, e digamos, quase todos os trabalhos agrícolas são uma faina sã. E como nessa época havia entre nós, beirões de Mortágua e, especialmente, nos trabalhadores do campo um pouco de sotaque “xim”, isto é, pronúncia do “s” por “x”, como por ex.: xim xenhor,  xou de Vixeu, etc.; esta especialidade gastronómica merecia um nome, entenderam que o nome devia fixar a faina agrícola, com muita alegria e camaradagem, ficando baptizada de XANFANA, que traduz FAINASÃ.
Antigamente, a agricultura, entre nós, era conhecida por “ a arte de empobrecer alegremente”. Na realidade, assim era, e algumas das fainas agrícolas mais violentas, como sementeiras, plantações e arranque de batatas, ceifas e malhas (outrora as debulhas dos cereais eram feitas malhando as espigas com a força humana e o peso do mangual) realizavam-se com o auxílio de pessoas amigas que se ajudavam umas às outras, em franca camaradagem, que terminava sempre em “comes e bebes” num aparato de apetitosas merendas no campo, no fim das fainas, em agradecimento pelo trabalho realizado.

E , foi nos anos 30, no início desta década, que se preparou pela primeira vez, a XANFANA, que sendo alimento forte, fácil de preparar e apetitoso, se servia nesses “comes e bebes” no campo.
Até aí, cozinhavam, já, carnes assadas de várias maneiras, mas não deste modo. E com o tempo, foi-se verificando que a XANFANA era melhor se fosse preparada com carne de ovino velho do que com carne de caprino e de animais novos.
Mas sendo a XANFANA um prato de tão simples preparação e ao alcance de todos nessa época, porque no nosso concelho quase toda a gente tinha rebanhos, era muito apreciada  e não tardou que fosse conhecida e servida nos jantares de festas, ficando a constituir, digamos mesmo, o “prato favorito” nos dias de festa das aldeias da nossa região da Irmânia(*), assim se chamava a actual freguesia da Marmeleira.
Apresentava-se nas mesas fartas dos dias de grandes festas: Festa Geral (festa para todos) e sobretudo nas festas da Escola Livre da Irmânia (**) ou Centro de Educação Popular da Marmeleira, festas estas que se realizavam nos dias de Reis , que duravam sempre uma semana e às quais afluía gente de muitos  lados, sendo , também , uma festa de todos fossem ou não sócios do nosso Centro de Educação Popular ou Escola Livre da Irmânia.
A estas festas da Escola Livre vinham, também, pessoas intelectuais, como professores da Universidade, advogados, arquitectos, engenheiros , médicos, etç., de Lisboa, Porto, Coimbra e outras terras para proferir  conferências no Salão da Escola Livre da Irmânia. Durante o convívio com essas pessoas, falando de XANFANA, como era preparada e comida, foi-lhe dado ainda outro nome:

LAMPANTANA
em que:

               LAM             PAM         et                   ANA

          (ovelha)                 (pão)      (abreviatura do nome da cozinheira Angelina)
           Carne              com que se come       (carne que se come com pão)

 Estas festas eram abrilhantadas por orquestras da Bairrada – Jazz “Os Perús do Troviscal” e “Tuna de Aguim”. Ora, sendo a XANFANA ( enão Chanfana) apreciada e uma novidade gastronómica para todos, e especialmente para os visitantes, não tardou que passasse a ser também conhecida e preparada nas redondezas e por toda a parte. Assim se justifica, quererem atribuir esta especialidade à Região da Bairrada, o que não corresponde à verdade. Os rebanhos existiam na nossa região e não na Bairrada, e ainda , quer pela caçoila preta que é fabricada em Molelos – louça de Molelos – que era a louça mais abundante na nossa região e que já se vendia na feira de Vale de Açores.
(*) “Região da Irmânia (Terra de irmãos). Situa-se na Beira Alta, sendo limitada a Nascente pela Linha da Beira Alta, a Norte pela Estrada Nacional 234, a Sul pelo Rio Mondego e a Poente pela Serra do Buçaco.

(**) “Escola Livre da Irmânia”. Foi a segunda escola livre do País e fundada  pelo Dr. Basílio Lopes Pereira, ilustre filho da Vila da Irmânia e encerrada pela PIDE por volta de 1937. A primeira escola Livre existiu em Oliveira de Azeméis e também fundada pelo Dr. Basílio, quando, também, notário, naquela localidade. »

Em próximas mensagens iremos comentar o que conseguimos apurar  sobre o assunto, as nossa opiniões,  e as dúvidas que ainda temos. Pode ser que assim, alguém nos ajude a ultrapassar as falhas de conhecimento que ainda temos.

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