Lopes d’Oliveira e o Tarrafal
“Em
finais de 1945 surgiu num dos jornais do regime “Diário da Manhã” um artigo
contra a sua pessoa. Embora sujeitos a possíveis penalizações, o Reitor e
professores do Liceu Passos Manuel, decidiram manifestar-lhe solidariedade.
Como político contra o regime, esteve diversas vezes preso, tendo sido até
desterrado para o Tarrafal ( Cabo Verde ).” In www.cm-mortagua.pt
Quem lê esta parte de um texto, publicado pela Câmara
Municipal de Mortágua, sobre Lopes d’Oliveira, é levado a pensar que este
esteve preso no terrível campo prisional conhecido como do Tarrafal, mas que na
realidade está situado em Chão Bom, distanciado alguns quilómetros da povoação
de Tarrafal na ilha de Santiago.
O que aconteceu, na realidade, é que Lopes d’Oliveira foi
preso em 1927, na sequência de um protesto contra o pedido de empréstimo a
Portugal, que o Ministro das Finanças pretendia contrair, através da Sociedade
das Nações. Várias organizações contestaram a legitimidade do governo da
Ditadura para fazer o pedido de empréstimo, e manifestaram-se frente à
Embaixada Inglesa e das legações da França e dos Estados Unidos. Subscreveram
as declarações o Partido Republicano Português, a Acção Republicana, a Esquerda
Democrática, o Partido Socialista Português, o Partido Republicano
Nacionalista, o grupo da Seara Nova e o Partido Republicano Radical, de cujo
Directório Lopes d’Oliveira fazia parte. A maior parte dos dirigentes foram
presos nos dias 12 e 13 de Janeiro, e exilados sem julgamento. Lopes d’Oliveira foi embarcado, com outros oposicionistas, no paquete Niassa. Estavam convencidos que iriam para S. Tomé, conforme se constata pela nota que conseguem que seja publicada a 18 de Janeiro, no « Diário de Notícias » do Funchal, onde o navio fez escala :
“Ao
País: Os deportados de S. Tomé levam em sua alma a certeza inquebrantável de que
a ofensiva infamante levantada contra eles, que á Patria devotaram inteiramente
a sua vida, não poude toca-los sequer.
Em
toda a parte onde o destino os levar, a sua voz se erguerá altivamente por
Portugal e pela República.
Bordo
do Niassa, no porto do Funchal, aos 17 de Janeiro de 1927.-(aa) Sá Cardoso, general; Helder Ribeiro, tenente-coronel; Vitorino Guimarães, major; Cortez dos Santos, major; Lopes de Oliveira.”
Contrariamente ao que supunham, foram colocados na ilha
de Santiago, em Cabo Verde. No entanto as condições do exílio nada tinham a ver
com o que viria a passar-se, alguns anos mais tarde, com os prisioneiros que
foram internados no campo do Chão Bom, próximo da povoação do Tarrafal. Por
essa prisão, que só foi criada em 1936, passaram muitos resistentes antifascistas,
cerca de 340, entre eles um mortaguense natural da Marmeleira, Basílio Lopes
Pereira. Nela morreram 10% dos que ali entraram. O campo viria a ser fechado a
seguir à Grande Guerra, devido a pressões internacionais.
Em 1962, seria de novo aberto por Adriano Moreira, mas
então destinado a militantes de movimentos de libertação das colónias.
Mas, como dizíamos, as condições em que os exilados
viveram em Santiago, foram muito diferentes. Atentemos nas descrições que faz
Lopes d’Oliveira no seu livro «…- E mesmo contra a maré! »:
“23
de Abril,1927
Que
deslumbrante filme o da estrada da Praia a Santa Catarina!É a terceira vez que a percorro, em arroubamentos de emoção e êxtasis contemplativos.
O cenário desdobra-se por largas horas: ressacas de penedia e ondas de verdura alternam panoramicamente, em assombros de côr, como de uma terra que acabasse de nascer, e ainda escorressem tintas das mãos do Criador.
…O
automóvel, arfante, despenha-se dos morros atormentados às várzeas remansosas
onde cantam as ribeiras, trepa impetuosamente íngremes encostas até aos picos
altaneiros, corre pelas vastas achadas, desliza pelas fajãs deliciosas, passa
pequenos povoados, perdidos no descampado, atravessa pontões sobre que se
debruçam ramarias, e segue, sempre veloz, por montes e vales, sob a explosão
magnificente do sol e surtos de neblina que velam a paisagem de todos os
cromatismos esvaecentes do sonho.
….
Desmontando, entramos no pátio, onde nos recebem D. Branca e D. Maria
Carvalhal, comproprietárias da Fazenda.Feitos os cumprimentos, saímos para o terraço, que domina um pomar, onde laranjeiras rescendem. Sôbre o portal, uma parreira; ao lado, um jardinzinho todo em flor.
Sá Cardoso, Vitorino Guimarães, Cortez dos Santos e eu somos condecorados com cravos rutilantes; Rodrigo de Carvalhal, filho de D. Branca, que nos trouxe de automóvel, com um jasmim do Cabo.
A amabilidade das senhoras logo nos prende no mais grato convívio; a sua educação esmeradíssima vai proporcionar-nos horas repousantes de trato inesquecível.”
Vinte anos! E há verdadeira comoção nas saudações que dirigem ao querido filho, os bons amigos…Improviza-se um serão festivo: D. Margarida toca ao piano, com uma virtuosidade de artista: o ritmo musical une-se ao pulsar vibrante do seu coração.
…Ouço agitar a água na reprêsa, como de alguém que se debate, aflitamente.
Corro pressuroso; mas paro, ao ver saltar na areia uma rapariga negra, que acaba de banhar-se. Que formas perfeitas!
Escondo-me atrás duma árvore, para lhe não fazer vergonha. Está de pé, sacudindo os braços, a enxugar-se ao sol. E sente-me…
O seu primeiro impulso é de pudor: acocora-se, voltando-me as costas; arrasta-se para as suas roupas, que estão longe.
De repente, ergue-se, volta-se, e, toda núa, caminha para mim, com a segurança e magestade de uma deusa do Olimpo.
Confuso, vou fugir? Mas ela corta-me a retirada, rindo, e lança-se a uma arrancada baixa da árvore a que me abrigo; suspende-se, e balouça a sua nudez gloriosa!
É a Vénus Negra que me tenta? Mas não a acompanha Cupido: para outra se guarda meu coração… “
“Regresso
à terra natal
20
de JunhoO África espera ao largo.
A despedida, no cais, é cerimoniosa, fria. Só Miguel Correia- alma de herói, coração magnânimo – tem os olhos entristecidos, enevoados de lágrimas.
No bote, acompanham-nos Abílio de Macedo, presidente da Câmara, com cara de pau, impassível; Carlos de Vasconcelos, do Conselho da Província, concentrado, repuxando os pelos do pequeno bigode, o tenente Reboredo, ajudante de Governador, protocolar, quási solene, e Fonseca, administrador do concelho, insignificantemente reservado…
….. O navio vem abarrotado de passageiros. Sou aquartelado no beliche 27, já ocupado pelo professor João de Almeida , que vem de Angola.
Ainda ouço o general Sá Cardoso altercar sobre o camarote que lhe distribuem: querem acamaradá-lo com o almirante Câmara Leme, que vem também de Angola, e ele reclama um camarote só para si – o impossível…Êste bom general não cede nada das suas prerrogativas!
Parece-me que cessou a comédia dos Grandes de Portugal exilados, em que representei seis meses, ao descer eu para as profundezas do África, a uns tantos metros da coberta, onde ficam os camarotes dos meus quatro consócios da política – todos ex-ministros e dois ex-Presidentes do Concelho…De bom grado aceitaria o próprio porão, desde que lá encontrasse sossego e silêncio.
Ao jantar, porém, encontro-me à mesa do comandante do navio, ao lado dos meus habituais companheiros…Não se desce facilmente dos pináculos da glória!”
Depois de ler estas descrições, quase invejamos a desdita
destes companheiros.
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