sexta-feira, 3 de junho de 2016


Lopes d’Oliveira e o Tarrafal

“Em finais de 1945 surgiu num dos jornais do regime “Diário da Manhã” um artigo contra a sua pessoa. Embora sujeitos a possíveis penalizações, o Reitor e professores do Liceu Passos Manuel, decidiram manifestar-lhe solidariedade. Como político contra o regime, esteve diversas vezes preso, tendo sido até desterrado para o Tarrafal ( Cabo Verde ).”   In  www.cm-mortagua.pt

Quem lê esta parte de um texto, publicado pela Câmara Municipal de Mortágua, sobre Lopes d’Oliveira, é levado a pensar que este esteve preso no terrível campo prisional conhecido como do Tarrafal, mas que na realidade está situado em Chão Bom, distanciado alguns quilómetros da povoação de Tarrafal na ilha de Santiago.
O que aconteceu, na realidade, é que Lopes d’Oliveira foi preso em 1927, na sequência de um protesto contra o pedido de empréstimo a Portugal, que o Ministro das Finanças pretendia contrair, através da Sociedade das Nações. Várias organizações contestaram a legitimidade do governo da Ditadura para fazer o pedido de empréstimo, e manifestaram-se frente à Embaixada Inglesa e das legações da França e dos Estados Unidos. Subscreveram as declarações o Partido Republicano Português, a Acção Republicana, a Esquerda Democrática, o Partido Socialista Português, o Partido Republicano Nacionalista, o grupo da Seara Nova e o Partido Republicano Radical, de cujo Directório Lopes d’Oliveira fazia parte. A maior parte dos dirigentes foram presos nos dias 12 e 13 de Janeiro, e exilados sem julgamento.
Lopes d’Oliveira foi embarcado, com outros oposicionistas, no paquete Niassa. Estavam convencidos que iriam para S. Tomé, conforme se constata pela nota que conseguem que seja publicada a 18 de Janeiro, no « Diário de Notícias » do Funchal, onde o navio fez escala :

“Ao País: Os deportados de S. Tomé levam em sua alma a certeza inquebrantável de que a ofensiva infamante levantada contra eles, que á Patria devotaram inteiramente a sua vida, não poude toca-los sequer.
Em toda a parte onde o destino os levar, a sua voz se erguerá altivamente por Portugal e pela República.
Bordo do Niassa, no porto do Funchal, aos 17 de Janeiro de 1927.
-(aa) Sá Cardoso, general; Helder Ribeiro, tenente-coronel; Vitorino Guimarães, major; Cortez dos Santos, major; Lopes de Oliveira.”

Contrariamente ao que supunham, foram colocados na ilha de Santiago, em Cabo Verde. No entanto as condições do exílio nada tinham a ver com o que viria a passar-se, alguns anos mais tarde, com os prisioneiros que foram internados no campo do Chão Bom, próximo da povoação do Tarrafal. Por essa prisão, que só foi criada em 1936, passaram muitos resistentes antifascistas, cerca de 340, entre eles um mortaguense natural da Marmeleira, Basílio Lopes Pereira. Nela morreram 10% dos que ali entraram. O campo viria a ser fechado a seguir à Grande Guerra, devido a pressões internacionais.
Em 1962, seria de novo aberto por Adriano Moreira, mas então destinado a militantes de movimentos de libertação das colónias.

Mas, como dizíamos, as condições em que os exilados viveram em Santiago, foram muito diferentes. Atentemos nas descrições que faz Lopes d’Oliveira no seu livro «…- E mesmo contra a maré! »:  

23 de Abril,1927
Que deslumbrante filme o da estrada da Praia a Santa Catarina!
É a terceira vez que a percorro, em arroubamentos de emoção e êxtasis contemplativos.
O cenário desdobra-se por largas horas: ressacas de penedia e ondas de verdura alternam panoramicamente, em assombros de côr, como de uma terra que acabasse de nascer, e ainda escorressem tintas das mãos do Criador.

…O automóvel, arfante, despenha-se dos morros atormentados às várzeas remansosas onde cantam as ribeiras, trepa impetuosamente íngremes encostas até aos picos altaneiros, corre pelas vastas achadas, desliza pelas fajãs deliciosas, passa pequenos povoados, perdidos no descampado, atravessa pontões sobre que se debruçam ramarias, e segue, sempre veloz, por montes e vales, sob a explosão magnificente do sol e surtos de neblina que velam a paisagem de todos os cromatismos esvaecentes do sonho.
…. Desmontando, entramos no pátio, onde nos recebem D. Branca e D. Maria Carvalhal, comproprietárias da Fazenda.
Feitos os cumprimentos, saímos para o terraço, que domina um pomar, onde laranjeiras rescendem. Sôbre o portal, uma parreira; ao lado, um jardinzinho todo em flor.
Sá Cardoso, Vitorino Guimarães, Cortez dos Santos e eu somos condecorados com cravos rutilantes; Rodrigo de Carvalhal, filho de D. Branca, que nos trouxe de automóvel, com um jasmim do Cabo.
A amabilidade das senhoras logo nos prende no mais grato convívio; a sua educação esmeradíssima vai proporcionar-nos horas repousantes de trato inesquecível.”

 … Abril, 24
….Ao jantar, Cortez dos Santos, que é o meu companheiro de eleição, brinda por meu filho José, que lá anda cursando o seu Direito em Lisboa, e faz hoje vinte anos.
Vinte anos! E há verdadeira comoção nas saudações que dirigem ao querido filho, os bons amigos…Improviza-se um serão festivo: D. Margarida toca ao piano, com uma virtuosidade de artista: o ritmo musical une-se ao pulsar vibrante do seu coração.

 …Abril,25
Partiremos amanhã. Aqui o exílio ser-me-ia mais dôce. Êste abençoado torrão é uma maravilha; foi, decerto, a estância de recreio do valoroso major Carvalhal, que tantos serviços prestou à sua pátria em Cabo Verde: deve-lhe muito o desenvolvimento da agricultura em S. Tiago, onde criou várias fazendas.

…Ouço agitar a água na reprêsa, como de alguém que se debate, aflitamente.
Corro pressuroso; mas paro, ao ver saltar na areia uma rapariga negra, que acaba de banhar-se. Que formas perfeitas!
Escondo-me atrás duma árvore, para lhe não fazer vergonha. Está de pé, sacudindo os braços, a enxugar-se ao sol. E sente-me…
O seu primeiro impulso é de pudor: acocora-se, voltando-me as costas; arrasta-se para as suas roupas, que estão longe.
De repente, ergue-se, volta-se, e, toda núa, caminha para mim, com a segurança e magestade de uma deusa do Olimpo.
Confuso, vou fugir? Mas ela corta-me a retirada, rindo, e lança-se a uma arrancada baixa da árvore a que me abrigo; suspende-se, e balouça a sua nudez gloriosa!
É a Vénus Negra que me tenta? Mas não a acompanha Cupido: para outra se guarda meu coração… “

Regresso à terra natal
20 de Junho
O África espera ao largo.
A despedida, no cais, é cerimoniosa, fria. Só Miguel Correia- alma de herói, coração magnânimo – tem os olhos entristecidos, enevoados de lágrimas.
No bote, acompanham-nos Abílio de Macedo, presidente da Câmara, com cara de pau, impassível; Carlos de Vasconcelos, do Conselho da Província, concentrado, repuxando os pelos do pequeno bigode, o tenente Reboredo, ajudante de Governador, protocolar, quási solene, e Fonseca, administrador do concelho, insignificantemente reservado…
….. O navio vem abarrotado de passageiros. Sou aquartelado no beliche 27, já ocupado pelo professor João de Almeida , que vem de Angola.
Ainda ouço o general Sá Cardoso altercar sobre o camarote que lhe distribuem: querem acamaradá-lo com o almirante Câmara Leme, que vem também de Angola, e ele reclama um camarote só para si – o impossível…Êste bom general não cede nada das suas prerrogativas!
Parece-me que cessou a comédia dos Grandes de Portugal exilados, em que representei seis meses, ao descer eu para as profundezas do África, a uns tantos metros da coberta, onde ficam os camarotes dos meus quatro consócios da política – todos ex-ministros e dois ex-Presidentes do Concelho…De bom grado aceitaria o próprio porão, desde que lá encontrasse sossego e silêncio.
Ao jantar, porém, encontro-me à mesa do comandante do navio, ao lado dos meus habituais companheiros…Não se desce facilmente dos pináculos da glória!”

Depois de ler estas descrições, quase invejamos a desdita destes companheiros.

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