Que
danos provocaram as invasões francesas no concelho de Mortágua?
Desconhecemos se a Câmara tem em arquivo algum
registo da época das invasões francesas. Seria interessante investigar o que
existe, mas não se viu até agora, nenhum interesse dos sucessivos executivos
municipais em organizar e disponibilizar o património documental municipal para
que possa ser estudado, isto admitindo que não tem sido sistematicamente
destruído. Daí o nosso sorriso amarelo e os comentários ácidos quando ouvimos o
actual presidente pedir para os munícipes contribuírem com documentos ou
objectos para um centro interpretativo das invasões francesas em Mortágua. Que
tal arrumar primeiro a casa e verificar o que existe nas instalações
municipais?
Sabemos que os franceses andaram pelo concelho de
Mortágua durante um período relativamente longo, entre 23 e 28 de Setembro de
1810 e que só nessa data iniciaram a viagem até ao Boialvo e seguiram em
direcção a Coimbra. Também sabemos que a logística das forças napoleónicas era
limitada no que diz respeito à alimentação, no pressuposto de encontrar
sustento ao longo dos territórios por onde ia passando. Essa política de
aquisição de alimentos passava necessariamente pela pilhagem e violência sobre
os habitantes. A retirada das populações à aproximação dos franceses, por
indicação do comando britânico, levando consigo tudo o que pudessem, e
escondendo, ou destruindo, o que não pudessem transportar, despertava nos
franceses maior agressividade e crueldade ao verem gorados os seus intentos.Se acrescentarmos a isso a destruição que naturalmente resulta de uma situação de guerra, poderemos talvez imaginar os danos provocados pela passagem francesa pelo concelho de Mortágua.
Assis e Santos, sem nunca dar indicação do local onde recolheu a informação, dá-nos alguns dados:
“ Duas povoações desapareceram inteiramente: a aldeia do Algido bombardeada pela artilharia inglesa e a povoação de Freirigo incendiada pelos franceses do 2º exército.
Quarenta casas, em diversas povoações, foram pasto das chamas ateadas pelos franceses.
Ainda hoje impressionam as ruínas de certas partes dessas povoações que os habitantes tiveram repugnância de reconstruir, por supersticioso temor.
Foram assassinadas 108 pessoas da classe civil – sem contar os mortaguenses que caíram em combate no Buçaco e em Santo António.
….
A tradição local ainda recorda que o exército anglo-português mandava retirar os moradores das aldeias para o norte, deixando destruído tudo o que não pudessem levar; por quanto Napoleão proibira a remessa de abastecimentos para o exército de Portugal e as tropas francesas tinham de viver do que encontrassem nas povoações.
Em resultado da destruição de cereais neste concelho por ordem da Regência, para dificultar o abastecimento do exército invasor, a população sofreu terrivelmente todo o ano de 1811; ainda hoje é recordada a fome de então e a procura de cereais no concelho de Águeda, por preços elevadíssimos, nesse tempo.
O acréscimo de mortalidade que se registou em todo o país durante as invasões francesas deve-se ter feito sentir particularmente neste concelho, único em que o exército francês se demorou sete dias e sete noites – exceptuando-se, é claro, as imediações das linhas de Tôrres Vedras.
….
A saúde da população ainda hoje se ressente dos sete dias e principalmente das sete noites que aqui permaneceram mais de 50.000 franceses.
A difusão paradoxal das doenças venéreas nos povoados sertanejos e recônditos- as quais se sabe terem recrudescido pavorosamente em Portugal com as invasões francesas só se pode explicar por um daqueles horrores da guerra a que Vieira pelo seu pundonor de sacerdote mal ousou referir-se.
...
Alguns sacerdotes foram desacatados – cita-se o exemplo dum padre de Santa Cristina que teve de marchar na frente dum destacamento francês ajoujado debaixo dum pipo de vinho…”
Simão José da Luz Soriano, na “ História da Guerra Civil e do
estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal “ dá-nos alguns dados
retirados da “Memória breve dos estragos causados em Coimbra pelo exercito francez
,comandado pelo general Massena, etc., Lisboa, Impressão Régia, anno de
1812” , “resultado das informações
colhidas dos diferentes parochos do respectivo bispado”:
“Seis
aldeias que estavam situadas ao longo da serra do Bussaco foram pelos invasores
reduzidas a cinzas. Na freguesia de Espinho, distante da dita serra pouco mais de uma légua, oito
povos foram queimados. Na freguesia de Pala arderam trinta e quatro casas. Na
de Santa Comba Dão teve igual sorte uma aldeia e metade de outra, acontecendo o
mesmo na freguesia do Sobral a três
povoações. Correu parelhas com este estrago das casas e povoações o que se
experimentou nos gados, cuja perda foi incalculável. A devastação das arvores
fructíferas, e com especialidade a das oliveiras, foi cousa que profundamente a
agricultura de todo o bispado de Coimbra, reduzindo os proprietários à mais
extrema pobreza e irremediável miséria. O exercito francez sustentava-se à
custa dos povos por onde passava, destruindo todos os víveres de que não tinha
tempo de se utilizar, ou que não podia levar consigo.”Na “Tábua geral dos assassínios, incêndios, etc. praticados nos dez arcyprestados de que se compunha o bispado de Coimbra”, inserida no mesmo livro, são referidos 108 assassinatos, 47 casas incendiadas, e 191/2 povos incendiados.
Quando observamos atentamente este quadro publicado por Soriano, ficamos com a certeza que algo estava mal, na elaboração. Fomos procurar o original, mas verificamos que o quadro corresponde exactamente ao que foi inicialmente publicado
Ampliando um pouco o quadro, constatamos que estão atribuídas 30 paróquias a Mortágua, o que é certamente um erro, por troca com Coimbra.
Ora isso deixa-nos a dúvida, se os dados referentes a assassinatos e incêndios também estão trocados, embora o que está escrito no texto nos leve a admitir que são corretos.
O que foi a política de “terra queimada”, e como funcionou em Mortágua?
Os franceses, por opção, tinham pouco apoio
logístico alimentar, pensando em obter mantimentos localmente, por apropriação,
ao longo da sua progressão.
Sabendo disso, Wellington definiu como estratégia
não dar luta aberta ao exército de Massena, resguardando-se para enfrentar o
inimigo já próximo de Lisboa, onde preparara as chamadas Linhas de Torres
Vedras, um conjunto de duas linhas de fortificações que lhe davam vantagem
tática sobre o exército francês e ao mesmo tempo estava bastante perto do porto
de Lisboa, onde os militares ingleses poderiam embarcar para Inglaterra, em
caso de insucesso.
Era pois conveniente a Wellington, que a par de
ocasionais acções de desgaste e de atraso provocado ao exército francês, este
não encontrasse alimentos ao longo da sua marcha. Para isso havia que deslocar,
antes da chegada dos franceses, as populações e tudo o que fosse possível
transportar, e destruir tudo o que restasse para que os franceses não o
pudessem aproveitar. A essa política se chamava de “terra queimada”.
Wellington, em 4 de Agosto de 1810, fez uma
proclamação ao povo português, que é base dessa política. e que transcreveremos
em tradução livre, já que a publicada pela Gazeta de Lisboa nos parece pouco
adequada:
“O tempo durante o qual o inimigo permaneceu nas fronteiras de
Portugal, felizmente, forneceu à Nação Portuguesa experiência do que tem a
esperar dos Franceses.
O povo permaneceu em algumas vilas tinham ficado nelas, fiado nas
promessas do inimigo, e em vão acreditando que, tratando os inimigos da sua
país de uma maneira amigável, poderiam assim conciliar, e conduzir o inimigo a
praticar com eles sentimentos humanos, e uma conduta indulgente, e que os seus
bens seriam respeitados, as suas mulheres livres de uma brutal violação, e as
suas vidas poupadas.Vãs esperanças! Os habitantes destas resignadas povoações têm sofrido todos os males que um inimigo cruel podia ministrar. Os seus bens foram roubados, as suas casas e alfaias queimadas, as suas mulheres atrozmente violadas, e os infelizes moradores, cujas idades e sexo não provocavam a brutal violência dos Soldados, caíram vítimas da imprudente confiança, que depositaram nas promessas, que unicamente foram feitas para serem violadas.
Os Portugueses vêem agora
que não lhes resta outro remédio para evitarem os males com que são ameaçados,
senão uma resistência determinada. Resistência e determinação para tornar o avanço
do inimigo para o interior do seu país o mais difícil possível, removendo do
seu alcance todas as coisas que são de valor, ou possam contribuir para a sua
subsistência, ou frustar o seu progresso, são os únicos e mais certeiros
remédios para os males com que são
ameaçados.
O exército sob o meu
comando, protegerá a maior porção do País que lhe for possível; porém, é óbvio
que o povo unicamente se pode salvar pela resistência ao inimigo, e os seus
bens unicamente removendo-os.Contudo, o dever a que estou obrigado perante S.A.R. o Príncipe Regente de Portugal, e a Nação Portuguesa, obrigar-me-ão a fazer uso do poder e autoridade depositada nas minhas mâos para forçar os fracos, e os indolentes a fazerem esforços para se salvarem do perigo que os espera, e para salvarem o seu país. E nesta conformidade declaro que todos os magistrados e autoridades, que ficarem nas suas cidades ou povoações depois de terem recebido ordens de quaisquer oficiais militares para se retirarem, e todas as pessoas, de qualquer classe que sejam, que mantiverem a menor comunicação com o inimigo, e que os ajudarem, ou assistirem em alguma maneira, serão considerados traidores ao Estado, e serão julgados e punidos em conformidade.
Quartel General, 4 de Agosto de 1810
Wellington “.
Não
temos dados para averiguar como foram cumpridas estas ordens no conjunto do Concelho de Mortágua, mas as
descrições que transcrevemos a seguir fazem-nos pensar que muitas povoações, ou
não foram avisadas, ou não acataram as ordens dos militares. As mortes de
civis, referidas na “Memória breve dos
estragos causados em Coimbra pelo exercito francez ,comandado pelo general
Massena, etc., Lisboa, Impressão Régia, anno de 1812”, parecem confirmar a
nossa suspeita.
Tomás da Fonseca, no seu livro “O Pinheiro”, publicado em 1948, descreve
como se passaram as coisas na sua aldeia:" Quando em 1810 – fez agora um século – os franceses invadiram Portugal, pela terceira vez, as populações, aterradas ou por ordem do exército anglo-luso, fugiram levando na sua frente os gados e tudo o que podiam transportar.
Uns para as serras altas, onde não pudesse rodar a artilharia nem trepar a cavalaria do inimigo, outros na cauda desse exército, para o desconhecido tudo se deslocou.
Pois bem, caros amigos, da minha terra ninguém tomou a fuga, a não ser uma criança de 10 anos, meu tio avô Serafim, que foi para os Jueus, no alto do Caramulo, onde tinha parentes, os demais firmaram o pé na terra e lá ficaram. Venderam parte dos gados ao exército e o resto, incluindo bois, éguas, porcos, etc., internaram tudo pela ribeira fora , e por lá andaram nas pastagens, que abundavam nos vales. Os donos abriram foços pelas várzeas, enterraram os cereais, o azeite, o mel, e lavraram e gradaram par indicar semeadura recente.
Seguidamente, carregando roupas e comestíveis, foram refugiar-se nas florestas, que nesse tempo se estendiam d’ali até à Serra da Galinha.
Infelizmente, um dos bois, com saudades do curral e das bandeiras verdes, conseguiu furtar-se à vigilância dos seus donos, e mal entrou na aldeia logo foi agarrado, abatido esfolado, esquartejado e assado na eira de meus antepassados entre os clamores da soldadesca esfomeada.”
Também no “
Diario memorial dos acontecimentos observados em o convento do Bussaco em os mezes
de setembro e outubro de 1810, por
occasião da guerra franceza, escripto por fr. José de S. Silvestre, religioso do mesmo convento, que
foi testemunha de tudo” encontramos
testemunho de que muitos habitantes se mantiveram por perto das suas casas:
Dia 30” Hoje pela manhã foram- se os soldados inglezes que estavam de sentinella. Recommendaram-nos que dessemos agua aos feridos que estavam na capella das Almas, que os livrassemos dos paizanos que não faziam senão roubar e matar, e que mandássemos buscar uns poucos, que ainda estavam na serra desamparados.”
…
“Marchei só até á Moura: encontrei n'este povo três homens; disse-lhes: se me queriam acompanhar'? Foram logo.”
…
“Depois de conversar um pouco com elles, disse aos paisanos que tinham ido comigo, quizessem ir-lhes buscar agua: elles me responderam: que isso não faziam elles: que não haviam de fazer bem aos seu inimigos.
Eu lastimado em ver a deshumanidade d'aquelles corações, fiz todas as diligencias possiveis pelos mover á compaixão. Disse-lhes que aquelles já não eram nossos inimigos: que se antes o tinham sido, estavam já em estado de não poderem fazer mal a alguem: que se elles estivessem no mesmo estado, e na mesma miseria, desterrados das suas terra, sem o abrigo de seus paes, desamparado dos amigos , dos conhecidos, dos mesmos nacionaes, abandonados de todo o auxilio humano, entregues ao rigor do sol, do frio. da fome, e da sede. sem poderem dar um passo
para procurarem alguma subsistencia: se lhes sucedesse a mesma desgraça em que viam aquelles miseraveis, que desejariam? que quereriam lhes fizessem? Façamo –lhes pois o mesmo, que então quereriamos nos fizessem a nós. Devemos amar ao nosso proximo, aos mesmos inimigos: assim o manda Jesus Christo, a santa igreja a mesma razão. Isto faz o bom christão e o deve fazer tambem todo aquelle que deseja ir para o ceu.
Apesar de toda esta minha pratica elles não se moveram logo. Disse-lhes por fim: que se elles não queriam ir buscar-lhes a agua, eu mesmo lha ia buscar.
Tomei logo umas poucas de botelhas, e outras vasilhas, que ali tinham, e parti por um valle abaixo.
Vendo este meu desembaraço, os paizanos moveram-se então á misericordia: um d'elles foi comigo; pediu-me a grandes intancias lhe deixasse levar a agua; porém eu não quiz dar-lhe mais que uma das vasilhas. Cheguei com a agua, reparti-a por todos, e um paizano deu-Ihes também um bocado de broa que trazia no bolso da vestia. Estes feridos não comiam mais que o proprio grão de alguma espiga de milho que tinham junto a si.”
Como se depreende destes registos, as ordens de Wellington não foram tomadas à letra por estas terras de Mortágua.
Na época o Arciprestado de Mortágua tinha exactamente 30 paróquias, tal como consta do Relatório feito pelo Arcipreste Joaquim Lebre Teixeira em 1811. davidalmeida.tm@gmail.com penacovaonline2@gmail.com
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