sexta-feira, 3 de junho de 2016

Um grupo de amigos



Esta fotografia não datada, mas certamente do início do Século XX, mostra-nos quatro mortaguenses, dos quais três são sobejamente conhecidos, embora não seja esta a imagem mais divulgada deles.
O primeiro a contar da esquerda é Júlio Simões Jesus e Cunha, de Cercosa, e é de todos o menos conhecido.
O segundo é Tomás da Fonseca, das Laceiras, que nesta altura ainda não usava as longas barbas que associamos á sua imagem, mas um bigode ligeiramente retorcido.
O terceiro, envergando um fato claro “ à brasileiro” e botas de cano alto, é nem mais nem menos que Martins e Abreu, de Pinheiro.
Finalmente, aparentemente envergando traje universitário, com a capa pousada no chão, está José Lopes d’Oliveira, de Vale de Açores. Ora, considerando que Lopes d’Oliveira terminou os seus estudos em 1905, é de supor que a fotografia tenha sido tirada algum tempo antes.

Por esta fotografia, não hesitaríamos em classifica-los como amigos, e é quase certo que o eram, por esta altura.
Não sei quando começaram a divergir os seus caminhos, mas Martins e Abreu, num livro intitulado “A Republica na Beira Alta”, publicado em 1913, não poupa críticas a Tomaz da Fonseca e a Lopes de Oliveira. Começa por uma pretensa peça teatral “Um drama na Republica “ em que apelida Lopes d’Oliveira de Erostrato* e ridiculariza Tomás da Fonseca a quem chama Tolstoi, e descreve-o como um personagem que nada entende do que se está a discutir. Sugere também que vivem os dois ás custas de Branquinho, o sogro de ambos.
(*Erostrato (Herostrato) foi um incendiário grego que destruiu o templo de Ártemis em Éfeso com o fim de se tornar famoso no mundo inteiro pelo seu acto.)

Termina o livro com a reprodução de uma Carta ao Presidente da Republica, Manuel Arriaga, na qual  Martins e Abreu lhe pede para ter um papel mais interveniente e volta a criticar os antigos amigos:
«Os republicanos em quem confiei, como Tomaz da Fonseca e Lopes de Oliveira, tudo sacrificam, parece, ao arranjo de clientelas.»

Quanto a Júlio Simões de Jesus e Cunha, não sabemos como evoluíram as relações de amizade com os outros elementos. Sabemos que foi professor  do ensino primário durante toda a sua vida, e aos 80 anos, em Janeiro de 1956, publicou um livro de poesia intitulado “Poema da Decrepitude” em que manifesta as suas crenças religiosas e políticas. Apreciemos os seus sonetos religiosos:

DEUS EXISTE

Em noite de luzeiros dardejantes

Olhai o firmamento qual sacrário

Esmaltado de estrelas cintilantes

Como luzes no Grande Santuário
 

Transportai-vos em mente e radiantes

Do Universo ao centro imaginário,

E vêde em movimento astros distantes,

E do Sol o sistema planetário.


Vêde a perfeita ordem dos planetas

E órbitas alongadas dos cometas

Que em várias direcções sulcam os céus;

 
Esses orbes com giro seu constante

No espaço, são prova exuberante

Da existência verídica de Deus.

 
CREIO EM DEUS


Creio em Deus sumamente poderoso

E símbolo perfeito de bondade;

Mar de misericórdia bonançoso

É o seu seio de amor e caridade.


Criou o Sol brilhante e luminoso

Que nos envia a luz, a claridade;

E as estrelas criou no céu formoso

Onde reina por toda a eternidade


Autor da vida, a vida nos quis dar,

Segredo que a ciência portentosa

Não conseguiu ainda desvendar


A reverberação da nebulosa

Tão longínqua que até nós faz brilhar

É ‘inda bênção sua carinhosa.


Mas se o seu discurso religioso nos surpreende um pouco, dado o anticlericalismo patente da maioria dos republicanos, maior é a surpresa pelo seu discurso político, principalmente pelo 1º dos Três sonetos dedicados a Camões


Do alto pedestal resplandecente

Contempla a nossa Pátria redimida

Por um seu filho enérgico e prudente*

Neste século de luz tão difundida…


Perseguições sofreste em tua vida

E o infame desterro no Oriente

Provocado pela inveja desmedida

Jorrando dos ineptos em torrente.


Mas guardaste na escala mais subida

O amor da Pátria túrgido e fremente

Como a relíquia mais apetecida.


Qual se estivesses entre nós presente,

No coração da Pátria agradecida

O teu poema brilha intensamente

 
* Em nota de rodapé, faz questão de assinalar que o  “filho enérgico e prudente”  é  António de Oliveira Salazar, não vá alguém pensar outra coisa…

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