segunda-feira, 6 de junho de 2016


 LYSIA, IRMÂNIA OU IRMANAI ?

Em que ficamos?

Desde há alguns anos vem sendo frequente ouvir chamar Irmânia ou  Vila da Irmânia à aldeia da Marmeleira.

Esta designação, terá sido  recuperada a partir de um comunicado anónimo e sem data, surgido em 1974, pouco tempo após o 25 de Abril, onde um grupo de moradores da Marmeleira se propunha reactivar uma Escola Livre da Irmânia que teria sido fundada em 1908 e encerrada pelo Estado Novo.  O comunicado rezava assim:
«Amigo !
Existiu na Marmeleira, entre os anos de 1908 e 1939, uma Escola Livre que a polícia política do anterior regime encerrou.
Esta Escola Livre tinha como principais finalidades o desenvolvimento físico, cultural e moral das gentes da região da “Irmânia”.
Hoje que as liberdades de reunião e associação nos foram restituídas, sentimos, profundamente, a falta deste centro de convívio. Assim pensa o povo desta região que, representado por um punhado de jovens e apoiado por antigos sócios, se propõe reabrir a “Escola Livre” e manter os ideais que presidiram à sua fundação.
Amigo, a maneira brutal como a nossa “Escola” foi encerrada e confiscada, prova que a instrução era o pior inimigo dos “Senhores” do antigo regime.
Ora nós sabemos que quanto mais esclarecido for um POVO mais livre se tornará. E por sabermos isso é que desejamos restaurar a “Escola Livre da Irmânia”.
Contamos com a tua presença e colaboração de democrata para que esta “Escola” seja do POVO  e para o POVO.
Comparece, pois , ao plenário, a realizar na Marmeleira, Domingo dia 20 de Julho, às cinco horas da tarde junto da escola.

TODOS À MARMELEIRA NO DIA 20 DE JULHO ÀS CINCO HORAS DA TARDE »

As intenções dos responsáveis pelo documento seriam as melhores, certamente, mas logo a afirmação inicial,  Existiu na Marmeleira, entre os anos de 1908 e 1939, uma Escola Livre”, não é correta.  Penso saber de onde lhes veio o erro. Alguém deveria ter apresentado um sobrescrito e um papel de ofício timbrado da “Escola- Livre da Irmânia “ , impressos depois de 1923  que induzem as pessoas em erro ao conterem como  sub-título  “Iniciada  em 6 de Janeiro de 1908”.
Se tomarmos atenção ao que está escrito em rodapé, veremos que “A  secretaria-geral da Confederação das Escolas-Livres da prov. das Beiras, é, provisoriamente em Oliveira de Azeméis (B. Marítima), que dá todas as informações sobre orgânica das Escolas-Livres e das Lusíadas.”
Acontece que o Dr. Basílio Lopes Pereira, iniciou as suas funções como Notário em Oliveira de Azeméis, em 1921. Em 1922, juntamente com Bento Landureza, funda o jornal Correio de Azeméis, de que é o primeiro director, e no ano seguinte lidera o movimento que leva à fundação da Escola-Livre de Oliveira de Azeméis, em 1 de Dezembro de 1923.  (António Magalhães, Editorial, 31 de Dezembro de 2013, “No 90º aniversário da Escola Livre” ).
A impressão dos documentos referidos dificilmente ocorreria antes de 1924.

Mas é o próprio Basílio Lopes Pereira que nos informa que os nomes de Escola Livre , e de Irmânia,  nada têm a ver com a data de 1908.
Há perto de dois anos, durante uma pesquiza que me foi autorizada no espólio documental de António Lopes de Araújo na Fundação Balmar, deparei-me com o documento original da acta da reunião em que foi decidida a criação do Centro Democrático de Educação Popular, manuscrito por Basílio Lopes Pereira, que secretariou a reunião.
A reunião ocorreu a 25 de Setembro de 1912, em casa do Sr. Joaquim Lopes Pereira, e além dele estiveram presentes os Srs. Francisco Nunes Cordeiro, João Pereira de Sousa (da Marmeleira), Júlio Baptista dos Reis, Manuel Soares Oliveira, Serafim Lopes Pereira, Luciano Ferreira dos Reis, José Luiz Gonzaga e Basílio Lopes Pereira. Fez uso da palavra o Sr. Serafim Lopes Pereira para convidar a presidir à sessão, que se ia efectuar, o Sr. João Pereira de Sousa que por sua vez, convidou a secretaria-lo o Sr. Basílio Lopes Pereira. Trancrevemos de seguida, mantendo a grafia original:

“Depois de aprovadas, unanimemente, as escolhas feitas, Basilio Lopes Pereira disse que estava na memoria de todos a tentativa infrutífera , levada a efeito em 1908, no intuito de fundar uma associação de instrução e educação popular a que, então, se havia dado o nome de Biblioteca Marmeleirense e que, por conselho do ilustre professor do Liceu Central de Viseu, Sr. dr. Lopes de Oliveira, se substituira por Biblioteca Popular, denominação mais definidamente característica. Disse mais que se tornava necessário, apesar do insucesso dos primeiros esforços para os tão carinhosamente haviam contribuído, entre outros, e que é de justiça ali recordar, os senhores José de Matos e José Caetano Ferreira, o primeiro nomeado secretario da comissão que então se constituira, tentar, de novo, fazer triunfar essa simpática iniciativa. É da maior vantagem para o progresso da freguesia da Marmeleira e de toda a região vizinha a constituição d’um centro educativo que não só mostre todas as inúmeras utilidades que podem advir da instrução e da educação, mas ainda, e muito principalmente, ampare os alunos das escolas no momento em que tenham de abandonal’as .Correrão o perigo de esquecer, em breve tempo, tudo quanto os professores se tenham esforçado por lhes ensinar, se não tiverem facilidade em encontrar uma certa assistência intelectual que os oriente e lhes proporcione leituras uteis, de modo a não perderem a curiosidade de saber. Será ociosidade repetir ali todas as razões que aconselham a  fundação de semelhante instituição, e por isso, vai fazer uma proposta que procurará sintetizar o seu programa que, por honra de todos os presentes, será unanimemente aprovada. Diz confiar, absolutamente, no muito amor, que todos os que ali estão nutrem pela sua terra. Ninguem, de certo, regateará um pouco do seu esforço, na medida das forças de cada um, para o bem de todos, para o desenvolvimento económico e moral da sua terra, desenvolvimento esse que só poderá conseguir-se, assentando na instrução e na educação do povo. Em seguida leu a proposta que vai adiante, e que o Sr. presidente poz à dicussão: «Proposta» -« Proponho,no interesse da Marmeleira e da sua região, que se emprehenda a fundação d’uma sociedade que traduza, por uma forma mais ampla, a tentativa feita em 6 de janeiro de 1908 com o fim de instituir uma “Biblioteca Popular” e que essa sociedade, tomando a denominação de “Centro Democrático de Educação Popular” assente nos moldes seguintes:
) Como fim geral, propor-se promover o progresso moral, cívico e material do povo, desenvolvendo a instrução e a educação popular, e, como particular e especial, crear e sustentar uma “Biblioteca Popular”, desenvolver a instrução agricola, como a mais útil aos seus futuros sócios, e procurar que todos os ex-alunos das escolas primarias, solicitando para isso o auxilio dos seus professores, garantindo, quanto possível, todos os ensinamentos ministrados por estes, continuem a sua cultura intelectual, frequentando a Biblioteca e assistindo às conferencias e palestras que se deverão realizar;
) O “Centro” envidará todos os esforços por que se funde um sindicato agricola, uma caixa de credito agricola e uma sociedade de seguros mútuos de gado;
3º) Realizará, além de conferencias e palestras, passeios de estudo e festas de instrução, devendo merecer-lhe especial cuidado a festa da arvore para o que procurará a cooperação das escolas locais;
4º) O “Centro” também creará diversos cursos regulares, especialmente, um curso de instrução primária para analfabetos».

Depois de ligeira discussão, foi aprovada por unanimidade, na generalidade, divergindo, quanto a conseguir-se a sua efectivação, o Sr. João Pereira de Sousa que disse que era muita coisa para se podesse realizar tudo, mas que estava prompto a contribuir também para que alguma coisa se fizesse. O Sr. João Pereira de Sousa comunicou o oferecimento feito pel Sr. José de Matos, que oferece a sua casa para instalar, desde já, o Centro Democrático de Educação Popular e a sua Biblioteca Popular, oferecimento que foi aceite, votando-se, por unanimidade, um voto de reconhecido agradecimento. Deliberou-se que se tomassem todas as providencias no sentido de abrir definitivamente ao publico, a Biblioteca no dia 12 do próximo mez de Outubro. Por proposta de Julio Baptista dos Reis determinou-se fazer a aquisição d’um livro para actas que seja numerado e rubricado pelo presidente da reunião e que o secretario seja encarregado de as lavrar. O Sr. Francisco Nunes Cordeiro propoz que se votassem  votos de agradecimento aos Srs. Carlos de Lemos, distintíssimo professor do liceu de Viseu; dr. Pereira Vitorino  e José Perdigão, deputados; Tomas da Fonseca, professor e director da Escola Normal de Lisboa; e dr. Lopes de Oliveira, também professor do liceu, pelas valiosas ofertas de livros, que fizeram, quando da tentativa de 1908, e que vão constituir a base da Biblioteca Popular do novo Centro. Foram aprovados por unanimidade, sendo, igualmente, aprovado, pelo mesmo motivo, um voto também de agradecimento ao Sr. Augusto Simões Nunes de Sousa. Em seguida por proposta do Sr. Joaquim Lopes Pereira foi eleita uma Direcção do “Centro Democratico de Educação Popular” que toma, a seu cargo, todos os trabalhos respeitantes á organização e funcionamento da nova sociedade, promova a aquisição de sócios e de livros e trate de elaborar os estatutos para serem aprovados pela autoridade. A eleição recaiu nos seguintes senhores: João Pereira de Sousa, Julio Baptista dos Reis, Francisco de Almeida e Silva, Manuel Soares de Oliveira e Basilio Lopes Pereira, este como secretario. A nova Direcção tomou em seguida posse depois do que foi encerrada a sessão.”
Como vemos “Basilio Lopes Pereira disse que estava na memoria de todos a tentativa infrutífera , levada a efeito em 1908, no intuito de fundar uma associação de instrução e educação popular a que, então, se havia dado o nome de Biblioteca Marmeleirense e que, por conselho do ilustre professor do Liceu Central de Viseu, Sr. dr. Lopes de Oliveira, se substituira por Biblioteca Popular”.
Portanto, nem sequer uma biblioteca foi constituída em 1908.
Em todo o documento nunca é referido o termo Escola-Livre, mas sim, Centro Democrático de Educação Popular.
Contatamos também que não encontramos a designação de Irmânia. Em todos os momentos só se fala de Marmeleira.

Consultamos  os 12 números do jornal Sol Nascente, publicado na Marmeleira entre 1912 e 1915, e que contava como fundador e director, o então estudante Basílio Lopes Pereira. Foi em vão que procuramos qualquer referência a Irmânia, ou a Escola- Livre. 
Encontramos sim, notícias sobre as iniciativas do Centro Democrático  de Educação, nomeadamente,  Conferências que foram grandes êxitos, simpáticas Festas da árvore, e arraiais populares  que se realizavam no Cabeço das Cernadinhas. “.
Deparamo-nos com apelos à participação nas Palestras, repetidos em vários números do jornal:   
“Todos os domingos, no Centro D. de Educação Popular, continuam a haver palestras educativas. Roga-se a comparência de todos, especialmente dos novos”

No primeiro exemplar que surgiu em 1912, comemorando o 2º aniversário do 5 de Outubro, é Basílio L. Pereira, um dos seus responsáveis,  à data com 19 anos de idade, que afirma: 
 Achámos azada a memorável data de 5 de Outubro para fazermos sair este número único, e oferecer o que pudermos angariar com a sua distribuição, à comissão organizadora d’uma Bibliotheca Popular que se vai instalar em (Mortágua ) Marmeleira e que tomará o nome de Centro  Democrático de Educação Popular. É quanto podémos fazer, e para isso ainda precizámos que alguém nos désse a mão, pois nós, ainda novatos na experiência das coisas, sem esse alento pouco ou nada podíamos.”.
Em 13 de Fevereiro de 1913, o jornal  Sul da Beira noticiava a primeira conferência do Centro D. de Educação Popular  da Marmeleira:
Meia dúzia de denodados rapazes da Marmeleira, sobre os quais citaremos os nomes dos nossos ilustres amigos António Pereira de Souza, Bazílio Lopes Pereira, distintíssimo aluno do 7º ano do liceu, João Pereira de Souza Mello Baptista dos Reis, José de Matos e David Araújo, no intuito mil vezes louvável de levantar a sua terra ao nível a que tem jus, prosseguem no simpático e patriótico programa de fomentar o seu progresso material e moral.
Fundaram ali uma Biblioteca popular, a que deram o nome de «Centro D. de Educação Popular», promovendo uma série de conferências educativas. A primeira dessa série realizou-se, como tínhamos anunciado, no passado domingo, 9 do corrente.
Foi conferente o distinto académico da Universidade de Coimbra, sr. António Campos de Carvalho, cuja conferência versou sobre o tema «Educação». A conferência efetuou-se no teatro daquela localidade, que gentilmente foi dispensado pela sua digna direção. A sala estava repleta, vendo-se numerosa representação do elemento feminino, que dava à sala um particular realce.”…….

…..”O sr. David Araújo, oferece ao Centro os seus préstimos, como professor, prestando-se a lecionar, à noite, alguns adultos que disso careçam.
Ato contínuo, organiza-se um cortejo, com os alunos daquela escola à frente, um dos quais empunhava a sua bandeira,   em direção ao Adro de Santa Rita, onde se realizou a     FESTA DA ÁRVORE, a primeira que neste género se realiza neste concelho. “

 Mas, ao  chegarmos à primeira página do  nº 8 do Sol Nascente, de 8  de Outubro de 1914, num artigo intitulado  A festa da Marmeleira, assinado por J. Cordeiro, surgiu algo que não esperávamos:
“Terra de excepcional beleza topográfica, de encantadores passeios que nos divertem e animam, a Marmeleira,  também conhecida por Vale do Lisa, e intercalada na região Lisiana, em virtude de ser beijada a seus pés pelo serpentino riacho a que chamamos o Lisa……” (realce nosso).

Avançamos para o nº 9 do Sol Nascente , de 8 de Novembro de 1914, e, num artigo intitulado  Centro D. de Educação Popular – A festa de 11 de Outubro de 1914 é referido, a determinada altura:
Ia dar-se princípio a mais uma festa promovida por essa bela instituição que é o Centro D. de Educação Popular da Marmeleira, que insistentemente vem pugnando pelo progresso intelectual e moral, aliado ao progresso material da região Lysiana.”(realce nosso).

Passamos ao nº 10 do Sol Nascente, de 29  de Novembro de 1914, e encontramos:
Uma feira anual na Marmeleira
Falou-se por aí, quando da festa do Centro D. de Educação Popular de 11 de Outubro, em organizar uma feira anual que, servindo toda a região compreendida entre a estrada nacional nº8, rio Mortágua, rio Mondego e serra do Bussaco – Região Lysiana – se deveria fazer na proximidade do Cabeço das Cernadinhas, local escolhido pelo mesmo Centro para arraial das suas festas e de onde se disfruta, sobre a Marmeleira, um encantador panorama “ (realce nosso).

Ainda no Jornal Sol Nascente nº2, de 26 de Abril de 1914 vamos encontrar um anúncio da “Alfaiataria Lysiana”, dependência da Loja Progresso da Marmeleira pertencente ao Sr. Júlio Baptista Reis, um activista ligado a todas as iniciativas republicanas.
Não sabemos de onde virá este nome  de  Lisa dado à ribeira da Marmeleira, mas sabendo nós que ela nasce na serra do Buçaco,  é possível que tenha a mesma etimologia que Luso.
A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, diz-nos que na Mitologia, Lisa é filha do deus Baco, a que Camões se refere n’ Os Lusíadas:
Esta foi Lusitânea derivada de Luso ou Lisa / Que de Baco antigo filhos eram   III-21.
Seja qual for a etimologia, certa é  a utilização destas designações  de Lisa e Lisiana, para designar a ribeira, a aldeia e a região, pelo menos até ao fim de 1914, não havendo na imprensa local, na qual incluímos todos o números avulsos do jornal Sul da Beira a que tivemos acesso, qualquer menção a Irmânia.

Procuramos também em múltiplos Dicionários e Enciclopédias . Só encontramos a palavra Irmânia no Dicionário da Maçonaria Portuguesa de A. H. de Oliveira Marques, Editorial Delta, que nos diz que  “ Em Irmânia (nome maçónico dado a Mortágua) existiu o triângulo nº 287, do RF, criado em 1930, e que deu lugar, em 1931, à loja João Lopes de Morais, nº 450 desaparecida durante a clandestinidade.
Noutro local do mesmo dicionário, diz-se a propósito de Escola Livre:
“Fundaram-se, fora de Lisboa, outras escolas-livres, como a da Irmânia, em 1908, ainda existente em 1930, e várias outras na Beira que justificaram  a criação de uma Confederação das Escolas-Livres da Província das Beiras, cuja sede era em Oliveira de Azeméis em 1930.”
Como se depreende do que anteriormente escrevemos as informações deste Dicionário não são muito fidedignas.

Fernando  Manuel Carreira Abreu, licenciado em História, no 2º capítulo dos Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua, admite a propósito da Escola Livre da Irmânia:
«…Os dados e documentos conhecidos são exíguos, desapareceram (provavelmente amarelecem em algum sótão?) ou foram, segundo a opinião popular, confiscados pela PIDE»,
mas logo chama a atenção que
«..no espólio desta polícia política, à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não se encontre nada que tenha pertencido à Escola Livre da Irmânia.»

No mesmo livro, Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua, mas agora no 1º capítulo, Maria Zília Gonçalves, também licenciada em História, a propósito do nome de Irmânia, atribuído à Marmeleira diz-nos que no início do Séc XVII, o padre Sebastião do Monte Calvário, contrariado na sua intenção de criar um Mosteiro em honra de Nossa Senhora do Carmo, pela recusa do 6º Conde de Odemira, D. Sancho de Noronha, em perder os benefícios do padroado a favor do  Mosteiro, «instituiu irmandade que em pouco tempo reuniu grande número de irmãos.», e acrescenta uma imaginativa hipótese :
« Poderá ter sido a partir da existência  da irmandade, cujos objectivos eram os da caridade, associação de socorro mútuo, serviços piedosos que poderá explicar o outro nome da povoação da Marmeleira, Vila da Irmânia».

Contrariamente ao que afirma Zília Gonçalves, a irmandade de Nª Srª do Carmo, não visava a caridade nem o socorro mútuo.
Vejamos o que nos diz Guilhermina Mota ,  na  sua  publicação na  Revista de História das Ideias, vol.9, Faculdade de Letras, Coimbra, 1987, intitulada A Irmandade da Senhora do Carmo da Marmeleira – Mortágua (Primeira metade do século XVIII), que utiliza como fonte de informação  o Livro da Irmandade de Nossa Senhora do Carmo  do lugar da Marmeleira, existente no Arquivo da Universidade de Coimbra:
«Tanto ou mais importante, era a sua finalidade social de entreajuda material e espiritual. Esta incidia exclusivamente no sufrágio das almas, não tendo qualquer outra função de socorro mútuo»
Ou ainda:
«A sua existência gira à volta de dois polos fundamentais – a festa e a morte. É ao culto da sua padroeira e dos seus mortos que se aplica o principal da sua actividade e se reserva o principal das suas verbas. Tudo o resto é conducente à realização daqueles objectivos: a manutenção e beneficiação da capela, dos ornamentos, dos móveis, a gestão da cera e dos bens de raiz.»
Informa-nos também sobre a proveniência dos membros da Irmandade:
 «Dos que identificamos pela sua origem geográfica (cerca de 60%), o maior contingente provinha do Sobral ( a freguesia que tinha mais moradores). Seguindo-se Mortágua (principalmente a vila) e depois a Marmeleira. Todas as outras com menos: umas são menos povoadas- Almaça, Cercosa, Cortegaça e Vale de Remígio; outras mais afastadas ou de localização pouco favorável – Espinho e Tresói, terras entre montes; só Pála, uma das mais povoadas, tem uma fraquíssima participação, o que talvez se explique pela existência, no lugar, de uma irmandade de grande devoção.»
Falando sobre os sufrágios pelos irmãos falecidos nos 37 anos do estudo, diz-nos que das 220 pessoas falecidas, das quais se conseguiu averiguar a residência de 83,6%: 5 eram de fora dos limites do Concelho; 38,5% da freguesia de Mortágua; 21,2% da freguesia do Sobral; 16,8% da Marmeleira. As outras freguesias entre 3 e 6%; Espinho 1,7% ; Trezói- nenhum
Ora como se vê a maioria dos irmãos nem sequer era da Marmeleira, o que levaria, a acreditarmos na hipótese avançada, a definir a região da Irmânia a partir da freguesia do Sobral, sendo que menos de 20% dos irmãos  eram da freguesia da Marmeleira.
Se a Irmandade chegou a ter alguma pujança, a legislação liberal da segunda metade do sec.XIX, com a introdução de despesas compulsivas que têm que ver com a assistência  pública e não com a vida religiosa para a qual estava vocacionada: como auxílios à instrução primária ou a assistência aos tuberculosos (somando as duas 20% da receita ordinária). Ou ainda a contribuição predial ou os emolumentos pelo julgamento das contas e prémio da remessa das mesmas, veio  provocar um retrocesso.

Em 1857, na «Relação das Irmandades, Confrarias e Misericórdias e seus rendimentos» o administrador do município de Mortágua afirma que a única a merecer menção é a do Santíssimo da freguesia do Sobral:
«No resto das freguesias…á muitas e variadas Confrarias mas são tão pobres que em ninhuma chega a receita para a despeza; foi assim que me informarão todas as Juntas da Parochia».´
Com a República, e a Lei da Separação das Igrejas e do Estado  a situação agrava-se e o administrador concelhio acaba por informar, em Novembro de 1912:

« As irmandades da Senhora do Carmo da freguesia da Marmeleira e das Almas de Pala, estão ha tempos abandonadas… e tendo bens e valores, principalmente a primeira, julgo urgente providenciar o seu destino»

Por outro lado , conhecendo nós as opções religiosas e políticas das pessoas que teriam fundado a Escola Livre e pugnado pela atribuição do nome de Irmânia  à Marmeleira, é muito difícil imaginar que pudessem associar as suas iniciativas a qualquer tipo de associação de cariz religioso.

Continuando a nossa busca, agora na Internet, fomos encontrar no Blog “ressonân(s)ias”, um artigo de David Almeida, datado de 28 de Outubro de  2010, anteriormente publicado no Jornal Frontal, que põe em causa a ligação do nome Irmânia à Irmandade de Nossa Senhora do Carmo e em que chama a atenção para a recente  reedição de um livro de 1912, da autoria de Ângelo Jorge, intitulado Irmânia.
Logo procuramos mais informação sobre o autor do livro e tratamos de obter um exemplar do mesmo para o lermos. O autor do livro é considerado ter uma personalidade complexa, conjugando o livre-pensador, com o naturalista e até o místico, em proporções variáveis consoante a fase da sua vida. Quanto ao livro, trata-se de uma novela naturalista, considerada por vários autores como uma referência  da literatura utópica portuguesa.
Resumindo muito o livro, trata de um náufrago que vai ter a uma ilha desconhecida onde tudo é perfeito. O clima é “temperado e doce ”, é habitada por um “povo livre e feliz”, sem egoísmos, sem constrangimentos desnecessários, onde a posse da terra era comum e cada um colhia os frutos do seu trabalho, as pessoas não comiam carne, eram fisicamente belas e onde falavam uma língua que misturava palavras de várias línguas conhecidas, e teriam sido ensinadas por outro naufrago que em tempos viera ter à ilha ( alusão ao Esperanto?).
Esta ilha imaginária tem todos os ingredientes para simbolizar os ideais de fraternidade, igualdade e liberdade, que Basílio Lopes Pereira gostaria de implantar na sua Marmeleira, e que provavelmente terá escolhido como nome para a aldeia e da Escola Livre, que sucederia ao Centro Democrático por volta de 1924 .
Somos de opinião que David Almeida nos terá dado a chave do mistério.

A primeira lusão que encontramos á Irmânia, após o livro de Ângelo Jorge, trata-se de um artigo de Rocha Martins no jornal FANTOCHES de 5 de maio de 1923, intitulado “D. Cesar ou as ambições de um demagogo” em que ridiculariza Basílio Lopes Pereira, entre outros motivos, pelo nome com que registou o seu filho. Nada mais, nada menos que:
D. Cesar Máximo Fernão da  Hirmânia de Melo Soares de Albergaria de Figueiredo Lobo e Silva e Souza Pacheco de Moscoso e Araújo Lopes Pereira.

Confrontamos com notas dactilografadas por António Lopes de Araújo, irmão de Basílio Lopes Pereira e corrigimos o nome:
D. Cesar Máximo Fernão de Irmânia de Melo Soares de Albergaria de Figueiredo Lobo e Silva e Távora Pacheco de Moscoso e Araújo Lopes Pereira
Dá que pensar, se atendermos a que Basílio era um jurado republicano…

As primeiras aparições da designação de Irmânia que encontramos, referem-se ao passeio  das Escolas Livres a Viseu, em 11 de Junho de 1925, comentado nos jornais da época
Sul da Beira 25.06.1925

«Na verdade, o dr. Bazílio Lopes Pereira, nosso presado conterrâneo, pode orgulhar-se por ter conseguido, o que nunca conseguiu na sua terra. – É que ninguém é profeta na sua terra.

A Escola Livre que fundou em Mortágua, com todas as características da Escola Livre de Azemeis, nunca conseguiu o seu fim, mercê talvez das más vontades que á sua roda se formaram.

Azemeis, ao contrario, compreendeu melhor o alto significado a que visam as Escolas e a prova desta asserção está no interesse desusado que tomou a excursão de estudo a Vizeu, na qual tomaram parte cerca de 2000 pessoas, tendo para isso sido organizados dois extensos comboios especiaes.

Felicitamos o dr. Bazilio pelo excelente êxito desse passeio e pelos progressos que tem alcançado a sua Escola Livre á qual preside com tanto amôr, com tão acendrado carinho e com tanto entusiasmo.»

 Sul da Beira 5.07.1925 (continuação da notícia anterior)

« Em seguida o sr. dr. Monteiro Junior, vereador da Camara, faz um belo discurso, saudando os excursionistas em nome da Camara e do Povo de Vizeu e diz que a velha cidade portugueza não podia receber de outra forma os seus visitantes, porque se outro motivo de regozijo não houvesse, bastava o tratar-se dos seus irmãos das bandas do mar que vieram até á montanha confraternizar e respirar o seu belo ar.
Termina saudando as três Escolas Livres  ali representadas – a de Azemeis, Mortagua e Irmania.
Segue se-lhe no uso da palavra o ilustre presidente da Escola Livre de Azemeis sr. dr. Bazílio Lopes Pereira, que profundamente comovido, agradece em breves palavras aos representantes da cidade de Vizeu os seus cumprimentos e a maneira galharda como foram recebidos, e diz que aquele passeio a Vizeu é uma afirmação do amor á terra.
Ao terminar o seu discurso ouve-se uma prolongada salva de palmas e vivas ao povo de Vizeu, etc.
Depois falaram os srs. Augusto Lobo, presidente da Escola Livre de Mortagua; Dr. Ferreira Gomes, professor do Liceu de Vizeu; e Rui Fernandes Martins, pelos excursionistas de Santa Comba Dão (Estação).
Por ultimo falou o presidente da camara de Oliveira de Azemeis, sr. dr. Albino Reis, que em nome daquela Camara agradeceu a calorosa recepção que foi feita ao povo da sua terra e ao terminar disse que aproveitava aquele momento para em nome da Camara que representa saudar a Escola livre de Azemeis pela organisação daquela excursão, afirmando que ela poderia contar sempre com o auxilio da Camara de Azemeis.»

 « Diz o «Primeiro de Janeiro» que a merenda na Mata do Fontelo foi, sem duvida, um dos interessantes números do programa, por ali confraternizarem beirões de Azemeis, Mortagua, Tábua, Santa Comba, Carregal do Sal, Tondela , Irmania e Vizeu.
Como cumprimos á risca o programa imposto pelos excursionistas e porque sobre nós pesava a responsabilidade de darmos aos leitores do «Sul» um retrato mais ou menos circunstanciado do decorrer das festas, chegamos a Fontelo quando tudo dispersava. Não nos recorda, porém, ter visto que alguns dos povos citados ali fossem confraternizar. Os motivos dessa falta de comparência ignoramol-a nós.»

 « NOTA – Os bombeiros que constituíram o piquete que foi representar a Vizeu a associação dos bombeiros desta vila, foram a expensas do vice-presidente da direcção, sr. dr. Serafim Lopes Pereira

 
No artigo de David Almeida anteriormente citado, são referidos duas notícias publicadas no Jornal de Penacova.
Em 4 de Novembro 1933 deparamo-nos com notícias de “Carvalho da Irmânia” . E diz o correspondente :
“ O titulo que hoje encima as noticias desta terra não tem nada que estranhar porque já é de alguma idade, embora desconhecido da região interessada”.
Acrescenta que a Irmânia “ é assim denominada por realmente ser irmã na desgraça e no desprezo que os poderes públicos lhe têm dado”.

A Irmânia é descrita como limitada a Norte e a nascente pela estrada nº 49; a sul e poente pela Serra do Bussaco e rio Mondego. Abrangia, assim, as freguesias de Carvalho, Cercosa, Marmeleira, Cortegaça e Almaça ( e ainda parte da freguesia de Mortágua).

Em  16 de Junho de 1934 é publicado um poema  popular que volta ao tema:

Nasci nas terras da Irmânia

Junto ao Meiral fui criado

Aí tenho meus amores

 Aí serei sepultado…

…No Seixo e em Gondelim

Em Almaça e Alcordal

 na Lourinha e Lourinhal

 pela região toda enfim

grande amigo da sua terra

 há um povo mourigerado

que de todos é estimado

na Paz, no Amor e na Guerra

e que também sempre berra:

 junto ao Meiral fui criado.”

É chamada a atenção de que outras terras deverão ser incluídas: Benfeita, Caparrosa, Caparrosinha, Cortegaça, Carapinhal, Val da Ovelha, Cerdeira, Pendurada, Cerquedo, Santo António do Cântaro, Carvalho, Caldures, Aveledo, Boas Eiras, Val da Formiga, Carvalhais, Val de Ana Justa, Cunhedo e Senhora do Amparo.
Como vemos ambas as notícias surgem já nos anos trinta do século XX.

Em determinada altura muita da correspondência enviada para a Marmeleira era endereçada para “Vila da Irmânia – Beira Alta “. A mais antiga que conseguimos encontrar no espólio de António Lopes de Araújo era datada de 1935.


Também encontrámos no Boletim Oficial do Grande Oriente Lusitano  Unido nº 7 e 8 , de Julho e Agosto de 1930, a admissão do Triângulo de Vila da Irmânia, em 13 de Agosto de 1930.
Sabemos da existência de cartas enviadas por Basílio Lopes Pereira em 1939, a partir das Cadeias de Caxias e Peniche, nas quais são dadas instruções sobre o modo de conseguir que a Marmeleira fosse reconhecida oficialmente como Vila da Irmânia, mas que o actual proprietário das cartas ainda não quis tornar públicas, embora nos tenha falado delas. Pensamos que seria fundamental a sua divulgação para ajudar a esclarecer a questão.

Em  24 de Dezembro de 1944, a Junta de Freguesia da Marmeleira, apesar da sua aderência ao Estado Novo, publica assinado pela mão do seu presidente José Pereira de Sousa, uma exposição intitulada  MEMORIAL - Estradas da Região da Irmânia”, em que reivindica a execução de várias estradas consideradas essenciais ao desenvolvimento da Região da Irmânia, que define com requintes nunca antes vistos:
“ Vila da Irmânia, ou só Irmanai como alguns lhe chamam para simplificar, é uma aldeia na margem esquerda da Ribeira da Sóidade, que fica ao sul e a 5.800 metros da estação ferroviária de Mortágua na linha da Beira Alta. Irmanai, propriamente, que fica um pouco ao lado, para poente, e ao cimo da colina, entre Santa-Rita e Vale de Eicaide, fica a 5.700 metros.
Marmeleira, que dá o nome à freguesia, fica a 5.250 metros também da mesma estação. É a norte da Vila da Irmânia. “

Só agora nos apercebemos que Vila da Irmânia e Marmeleira são duas coisas diferentes, e apesar de a Marmeleira dar o nome à freguesia, a Irmânia é que dá o nome à região. Interessante !…
Curiosamente, em 10 de julho de 1947  é entregue ao Ministro das Obras Públicas, em sessão solene realizada na Câmara Municipal do Concelho de Mortágua, uma Exposição intitulada “Comunicações Rodoviárias entre a Beira Alta e a Beira Litoral através de Mortágua”, escrita por José Assis e Santos, na qual nunca é referida a Vila ou a Região da Irmânia…

Em jeito de Conclusões diremos, sem grande receio que nos provem o contrário, e se tal acontecer estamos sempre disponíveis para reconhecer os nossos erros:

1- Nunca, até 1912, alguém ouviu falar em Irmânia.

2- Em 1915 a Marmeleira e a região envolvente era conhecida por Região Lysiana.

3- Em 1908 não foi iniciada nenhuma Escola Livre. Só houve uma tentativa de criar uma Biblioteca, que não resultou.

4- Em 1912 foi iniciada a formação do Centro Democrático de Educação Popular e não da Escola Livre.

5- Basílio Lopes Pereira, possivelmente influenciado pela leitura do livro “Irmânia” de Ângelo Jorge, idealizou esse nome para a sua terra.

6- A primeira vez que aparece escrita palavra Irmânia é no nome do filho de Basílio Lopes Pereira: César Máximo Fernão da Irmânia…..etç.

7- A primeira estrutura a ter o nome de Escola Livre no concelho de Mortágua foi a Escola Livre de Mortágua fundada em 9 de Abril de 1919.

8- Basílio Lopes Pereira fundou a Escola Livre de Oliveira de Azeméis e só depois disso começou a atribuir o nome de Escola Livre da Irmânia ao Centro Democrático de Educação Popular. O sobrescrito em que aparece o nome de Escola Livre da Irmânia e a indicação de “iniciado em 1908” não passa de uma mistificação desmentida por documentos do próprio Basílio.

9 – É a partir de Basílio Lopes Pereira que surge a campanha para o reconhecimento do nome, que chegou a ter o apoio da junta de freguesia da Marmeleira, afecta ao Estado Novo, a ponto de escrever nas datas dos documentos “ 24 de Dezembro de1944, ano XIX da R.N.” (Revolução Nacional).

10- O próprio correio, a partir de certa altura, aceitou  e fez chegarão seu destino cartas endereçadas para “Vila da Irmânia – Beira Alta ”. Desconhecemos o que terá levado os correios a aceitar a correspondência assim endereçada. Também desconhecemos o que levou as pessoas a deixarem de utilizar o mesmo endereço.

11- Do que acabamos de descrever, até às afirmações erróneas que estão em voga, foi um breve momento que se iniciou logo após o 25 de Abril de 1974.

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