domingo, 12 de junho de 2016


A chanfana e a Lampantana na literatura

Visitamos alguns textos literários, procurando encontrar a palavra Chanfana. Tal como já suspeitávamos, depois de consultar os dicionários, encontramos utilizações  do vocábulo  com significados muito diferentes, frequentemente mal interpretados por várias pessoas que citam os referidos textos.
Do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, editado a primeira vez em 1605, retiramos o seguinte excerto:
«Luta com eles para mostrar que é mais hábil, e com isso ganhar o respeito e a sobrevivência, com mostras de competência na arte de manipular a chanfana, na circunvizinhança dos castelos. Campeava pelos campos das terras dominadas pelos grandes latifundiários do momento, que se reuniam numa fraternidade autodenominada Cavaleiros da Távola Redonda…sob o comando de rei Artur.»
Não é difícil perceber que não era a uma caçoila de chanfana que o autor se referia, mas sim a um tipo de espada.
Do mesmo modo, em  “Scenas da Foz”, uma série editada por Camilo Castelo Branco, em 1857 encontramos o diálogo da  autoria de João Júnior :
«…—Que quer vossê aqui?
Não quero nada...—gaguejei eu.
—Pois então, mude-se.
Eu demorava um pouco a execução do mandado solemne de despejo, quando o homem recalcitrou:
—Mude-se, ou eu o ajudo a mudar.
A ajuda, pelos modos, era uma pranchada de chanfana, que o nosso amigo deixou vêr por debaixo da fimbria do capote. Dispensei o auxilio offerecido, e retirei-me cozido com a parede, scismando nas bellezas appensas a uma noite de lua cheia á beira mar

Também aqui a chanfana era de aço e tinha significado igual ao que Cervantes lhe dera.

No romance “A Casa Grande de Romarigães”, publicado em 1957, é a uma estalagem, pensão ou algo semelhante que Aquilino Ribeiro se refere:

« Os senhores procuradores, com P.e Tirteu, dormiram no convento. O prior dos domínicos, como prenunciou Peixoto, tendo em conta de quem se tratava e ao que iam, acedeu de bom grado a hospedá-los nas celas do claustro reservadas aos arcebispos e fâmulos.

Homens de escolta e postilhões foram pernoitar a um Zé da Calçada, chanfana muito antiga, bem afreguesada de Verão ao bacalhau frito e vinho verde, cujas ancoretas iam, na ponta de uma corda, a refrescar ao Tâmega, que corria logo atrás.»

No seculo XIX vamos encontrar na literatura várias alusões à chanfana, uma delas no semanário "Archivo Pittoresco", que apresenta uma ilustração da figura do Chanfaneiro


António Lobo de Carvalho, poeta também conhecido por "Lobo da Madragoa" no seu livro "Poesias Joviaes e Satyricas" publicado em 1852, conta-nos que D. José, Príncipe do Brasil, terá perguntado: – Que cousa é chanfana?
A pergunta foi respondida por vários poetas, sob a forma de sonetos que transcrevemos
NICOLAU TOLENTINO D’ALMEIDA
Comprada em ascoroso matadouro
Sanguinosa fressura, quente e inteira,
E cortada por gorda taberneira,
Cujo cachaço adorna um cordão de ouro
Cabeças d’alhos, com vinagre e louro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira
 Co’os indigestos fígados do touro:
Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o demo o atura
 Isto é chanfana; e sei quanto ella custa;
 Deu-me o berço, dar-me-ia a sepultura,
 A não valer-me a vossa mão augusta.

ANTONIO LOBO DE CARVALHO ( Lobo da Madragoa) escreveu vários sonetos:
D’alto barrete, á laia de turbante,
Os braços nus, a faca na cintura,
Co’um pano por timão á dependura
Trabalha o Isidro, a turco similhante:

Do elástico bofe inda pingante,
Da barriga do porco alva gordura,
Faz por tal modo uma tal fritura,
Que aos toneis cheios toca a sé vacante!

Esta, principe augusto, é que eu aprovo
Chanfana sancta, assás famigerada,
Com que o turco amotina o nosso povo:
O peor é, que lambe de estocada
os peraltas o seu cruzado novo,
Menos a mim que nunca paguei nada!


Descripção da Chanfana
Em pequenas barracas de madeira
No campo do curral vejo espichado
Em torto prego o bofe ensanguentado
Do velho boi, já cheio de lazeira;

Alli de Isidro, Almeida, Talaveira (*)
E de outros taes, a quem ergueu o fado,
Todo o negócio foi principiado
Por indigesta gorda forçureira:
 Alli de bodegões bando infinito
 O seu tassalhão compram de semana,
 Que descalços à porta vendem frito:
A qualquer que ali passa o cheiro engana:
Gasta os seus cobres, e depois afflicto
A vómitos conhece o que é chanfana.

(*)Casas de pasto mui nomeadas em Lisboa.
 Retrato da casa onde se vende a Chanfana.

Em casa terrea com dous bancos sujos,
Meza de pinho a quem um dos pés falha,
D’estopa em cima sórdida toalha,
E de roda fumando alguns marujos:

A porta sempre cheia de sabujos,
E defronte sentada sobre palha
De Guiné, e d’Angola essa canalha,
Vendendo mexilhões, e caramujos:

De louro á porta um grande molho atado,
Cortina rota , e sobre o fogareiro
Da chanfana o banquete costumado:

Pois quem vir isto assim fuja do cheiro,
que se entrar por querer este guisado
Sairá sem comer, e sem dinheiro.

Retrato do Mal-cosinhado.
 Lá onde d’antes era situada
Essa antiga Ribeira, em negras choças
Estão vendendo enlambuzadas moças
Arroz com açafrão, sardinha assada:
 Soccos nos pés, as pernas sem ter nada
Roupinhas de baeta, argolas grossas,
Aos tostões dos galegos fazem mossas
Co’o feijão, com a isca , e co’a canada:
 Alli de humilde boi já esfolado
O molle bofe se lhe vai frigindo,
E em prato o pôem, que nunca foi lavado:
Toda a plebe à chanfana vai surgindo;
Mas depois sáem deste coe damnado
Ora dando encontrão ora caindo.
PEDRO CAETANO DE MORAIS SARMENTO

Não é esta, senhor, a de que fala,
A chanfana de fígado de touro,
Nem se aduba com alhos, nem com louro,
Como o tal Tolentino quis pintal-a:
Uma carne que deixam de sangral’a,
Mais ascorosa que a do matadouro,
Com toucinho que o ranço fez cor d’ouro,
E pedregoso arroz, que o dente estala:

Carneiro ressequido, e não assado,
galinha que mais conta que anno e dia,
Com os seccos pasteis sem ter picado:

Eis aqui de que fala a fidalguia
Isto é chanfana, insipido bocado,
Que forjam os cyclopes da ucharia.
LUIS JOAQUIM DA FROTA

Tolentino, senhor, foi quem traçou
Da chanfana o retrato natural;
Bem que sem pimentão, toucinho, e sal
Muito mal o guizado temperou:

Lobo apenas o Isidro nos pintou
De turbante adornado, e de avental;
Posto que uma imagem tal e qual
Da mais fina chanfana nos mostrou:
Pinto toma os pinceis da fantasia,
E subindo ao sentido figurado,
Fez colorir as fezes da ucharia:
Seu quadro é bom; seria consumado,
Se a sua creança fidalguia
Não tivera no quadro respirado!
Como facilmente se depreende, a descrição que aqui fazem estes autores  não corresponde, nem de perto nem de longe ao que hoje chamamos de Chanfana. Trata-se de um guisado de vísceras, que nem sequer leva vinho, tradição ao que parece importada de Espanha (tal como a designação)  onde os pastores cozinhavam  para si as vísceras e entregavam a carne dos animais que abatiam aos proprietários dos rebanhos.
Este prato chegou a ser muito popular em Lisboa, mesmo entre algumas franjas mais boémias da fidalguia.
Pensamos que a referência que encontramos na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, descrevendo a Procissão de S. Jorge, por altura do Corpo de Deus de 1610, se refere aos indivíduos que  vendiam chanfana em Lisboa:
" No cortejo figuraram o juiz do povo, os procuradores da cidade, vereadores, magistrados, titulares e homens e mulheres de todas as artes e ofícios, com insígnias, estandartes e emblemas ou alegorias das suas classes. Eram os hortelões do Restelo, de Alvalade, da banda Sul do Tejo, de Valverde e Alcântara, com grandes carros figurando as suas hortas com as noras e picotas, canteiros e alfombres; eram ao almocreves, os moleiros os padeiros, os da chanfana, que bailavam em roda de dois mascarados, fingindo de rei e de imperador. E depois vinham os tecelões e os peliceiros com a sua insígnia, um gato montês, a que chamam o gato do paúl; e os oleiros....."

As descrições que nos sugerem a chanfana, tal como a conhecemos surgem-nos já na segunda metade do século XIX.
Augusto Sarmento  no seu livro “Providência” (Coimbra 1863)faz a seguinte alusão:
“ Subiu de ponto a curiosidade, quando, chegada a  hora da ceia, veio uma criada da casa collocar sobre a mesa as fumegantes victualhas o mais simetricamente que sabia — que não era muito — e os mysteriosos convivas sem apparecerem. Lucena, como se não desse  por sua falta, ia transplantando da terrina para os pratos as recendentes colheradas da chanfana, que por si so firmou a reputação culinária da tia Diabinha.”
Teófilo Braga  na Alma Portuguesa (1905) escreve.:

«… Celebremos a Cêa Cypriana
Lá na Adega do velho Tructesindo,
Carrascão e chanfana
A´ tripa fôrra devorando e rindo!
Não percas ocasião hoje opurtuna,
Gil Rodrigues, de ser o heróe da Tuna…»
Miguel Torga no livro  Portugal (1950) refere-se assim á chanfana:

"[...] do caldo de couves faz manjar, do azeite uma tibornada, da lã churra um cobertor de papa e da carne de cabra uma chanfana de endoidecer... com tijelada no fim [...]".

Já quanto á designação de Lampantana só a encontramos em Tomás da Fonseca no seu livro  A Cova dos Leões” (Lisboa, 1958)


“Há dois anos passaram pela aldeia um professor catedrático e um notário, acompanhados por esposas e filhos. Convidei-os a ir ao arraial. Ficaram desolados! Devotos, apenas uma pobre mulher, ajoelhada em frente do altar, de olhos fitos na Santa e os lábios a bulir. E, cá fora, duas dúzias de pessoas, de boca aberta, à espera que amigos ou parentes da terra as convidassem a saborear o chibo à lampantana, que os visitantes igualmente conheciam das suas andanças pela serra.»  

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