A chanfana e a Lampantana na literatura
Visitamos alguns textos literários, procurando encontrar a palavra Chanfana. Tal como já suspeitávamos, depois de consultar os
dicionários, encontramos utilizações
do vocábulo com significados muito diferentes,
frequentemente mal interpretados por várias pessoas que citam os referidos
textos.
Do Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes, editado a primeira vez em 1605, retiramos o seguinte excerto:
«Luta com eles para
mostrar que é mais hábil, e com isso ganhar o respeito e a sobrevivência, com
mostras de competência na arte de manipular a chanfana, na
circunvizinhança dos castelos. Campeava pelos campos das terras dominadas pelos
grandes latifundiários do momento, que se reuniam numa fraternidade
autodenominada Cavaleiros da Távola Redonda…sob o comando de rei Artur.»
Não é difícil perceber que não
era a uma caçoila de chanfana que o autor se referia, mas sim a um tipo de
espada.
Do
mesmo modo, em “Scenas da Foz”,
uma série editada por Camilo Castelo Branco, em
1857 encontramos o diálogo da autoria de João Júnior :
«…—Que quer vossê aqui?
Não quero nada...—gaguejei eu. —Pois então, mude-se.
Eu demorava um pouco a execução do mandado solemne de despejo, quando o homem recalcitrou:
—Mude-se, ou eu o ajudo a mudar.
A ajuda, pelos modos, era uma pranchada de chanfana, que o nosso amigo deixou vêr por debaixo da fimbria do capote. Dispensei o auxilio offerecido, e retirei-me cozido com a parede, scismando nas bellezas appensas a uma noite de lua cheia á beira mar.»
Também aqui a chanfana era de aço e tinha significado igual ao que Cervantes lhe dera.
No romance “A Casa Grande de Romarigães”, publicado em 1957, é a uma estalagem, pensão ou algo semelhante que Aquilino Ribeiro se refere:
« Os senhores procuradores, com P.e Tirteu, dormiram no convento. O prior dos domínicos, como prenunciou Peixoto, tendo em conta de quem se tratava e ao que iam, acedeu de bom grado a hospedá-los nas celas do claustro reservadas aos arcebispos e fâmulos.
Homens
de escolta e postilhões foram pernoitar a um Zé da Calçada, chanfana
muito antiga, bem afreguesada de Verão ao bacalhau frito e vinho verde, cujas
ancoretas iam, na ponta de uma corda, a refrescar ao Tâmega, que corria logo
atrás.»
No seculo XIX vamos encontrar na literatura várias alusões à chanfana, uma delas no semanário "Archivo Pittoresco", que apresenta uma ilustração da figura do Chanfaneiro
António Lobo de Carvalho, poeta também conhecido por "Lobo da Madragoa" no seu livro "Poesias Joviaes e Satyricas" publicado em 1852, conta-nos que D. José, Príncipe do Brasil, terá perguntado:
– Que cousa
é chanfana?
A pergunta foi respondida por vários poetas, sob a forma de sonetos que transcrevemos
NICOLAU
TOLENTINO D’ALMEIDA
Comprada em ascoroso matadouro
Sanguinosa fressura, quente e inteira,
E cortada por gorda taberneira,
Cujo cachaço adorna um cordão de ouro
Sanguinosa fressura, quente e inteira,
E cortada por gorda taberneira,
Cujo cachaço adorna um cordão de ouro
Cabeças d’alhos, com vinagre e louro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira
Co’os indigestos fígados do touro:
Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o demo o atura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o demo o atura
Deu-me o berço, dar-me-ia a sepultura,
A não valer-me a vossa mão augusta.
ANTONIO LOBO
DE CARVALHO ( Lobo da Madragoa) escreveu vários sonetos:
D’alto barrete, á laia de turbante,
Os braços nus, a faca na cintura,
Co’um pano por timão á dependura
Trabalha o Isidro, a turco similhante:
Os braços nus, a faca na cintura,
Co’um pano por timão á dependura
Trabalha o Isidro, a turco similhante:
Do elástico bofe inda pingante,
Da barriga do porco alva gordura,
Faz por tal modo uma tal fritura,
Que aos toneis cheios toca a sé vacante!
Da barriga do porco alva gordura,
Faz por tal modo uma tal fritura,
Que aos toneis cheios toca a sé vacante!
Esta, principe augusto, é que eu aprovo
Chanfana sancta, assás famigerada,
Com que o turco amotina o nosso povo:
Chanfana sancta, assás famigerada,
Com que o turco amotina o nosso povo:
O peor é, que lambe de estocada
os peraltas o seu cruzado novo,
os peraltas o seu cruzado novo,
Menos a mim que nunca paguei nada!
Descripção da Chanfana
Em pequenas barracas de madeira
No campo do curral vejo espichado
Em torto prego o bofe ensanguentado
Do velho boi, já cheio de lazeira;
No campo do curral vejo espichado
Em torto prego o bofe ensanguentado
Do velho boi, já cheio de lazeira;
Alli de Isidro, Almeida, Talaveira (*)
E de outros taes, a quem ergueu o fado,
Todo o negócio foi principiado
Por indigesta gorda forçureira:
E de outros taes, a quem ergueu o fado,
Todo o negócio foi principiado
Por indigesta gorda forçureira:
O seu tassalhão compram de semana,
Que descalços à porta vendem frito:
A qualquer que ali passa o cheiro engana:
Gasta os seus cobres, e depois afflicto
A vómitos conhece o que é chanfana.
Gasta os seus cobres, e depois afflicto
A vómitos conhece o que é chanfana.
(*)Casas de pasto mui nomeadas em Lisboa.
Meza de pinho a quem um dos pés falha,
D’estopa em cima sórdida toalha,
E de roda fumando alguns marujos:
E defronte sentada sobre palha
De Guiné, e d’Angola essa canalha,
Vendendo mexilhões, e caramujos:
Cortina rota , e sobre o fogareiro
Da chanfana o banquete costumado:
que se entrar por querer este guisado
Sairá sem comer, e sem dinheiro.
Essa antiga Ribeira, em negras choças
Estão vendendo enlambuzadas moças
Arroz com açafrão, sardinha assada:
Soccos nos pés, as pernas sem ter nada
Roupinhas de baeta, argolas grossas,
Aos tostões dos galegos fazem mossas
Co’o feijão, com a isca , e co’a canada:
Roupinhas de baeta, argolas grossas,
Aos tostões dos galegos fazem mossas
Co’o feijão, com a isca , e co’a canada:
O molle bofe se lhe vai frigindo,
E em prato o pôem, que nunca foi lavado:
Toda a plebe à chanfana vai surgindo;
Mas depois sáem deste coe damnado
Ora dando encontrão ora caindo.
Ora dando encontrão ora caindo.
PEDRO
CAETANO DE MORAIS SARMENTO
Não é esta, senhor, a de que fala,
A chanfana de fígado de touro,
Nem se aduba com alhos, nem com louro,
Como o tal Tolentino quis pintal-a:
A chanfana de fígado de touro,
Nem se aduba com alhos, nem com louro,
Como o tal Tolentino quis pintal-a:
Uma carne que deixam de sangral’a,
Mais ascorosa que a do matadouro,
Com toucinho que o ranço fez cor d’ouro,
E pedregoso arroz, que o dente estala:
galinha que mais conta que anno e dia,
Com os seccos pasteis sem ter picado:
Isto é chanfana, insipido bocado,
Que forjam os cyclopes da ucharia.
LUIS JOAQUIM
DA FROTA
Tolentino, senhor, foi quem traçou
Da chanfana o retrato natural;
Bem que sem pimentão, toucinho, e sal
Muito mal o guizado temperou:
Da chanfana o retrato natural;
Bem que sem pimentão, toucinho, e sal
Muito mal o guizado temperou:
Lobo apenas o Isidro nos pintou
De turbante adornado, e de avental;
Posto que uma imagem tal e qual
Da mais fina chanfana nos mostrou:
De turbante adornado, e de avental;
Posto que uma imagem tal e qual
Da mais fina chanfana nos mostrou:
Pinto toma os pinceis da fantasia,
E subindo ao sentido figurado,
Fez colorir as fezes da ucharia:
Se a sua creança fidalguia
Não tivera no quadro respirado!
Como facilmente
se depreende, a descrição que aqui fazem estes autores não corresponde, nem de perto nem de longe ao
que hoje chamamos de Chanfana. Trata-se de um guisado de vísceras, que nem
sequer leva vinho, tradição ao que parece importada de Espanha (tal como a
designação) onde os pastores cozinhavam para si as vísceras e entregavam a carne dos
animais que abatiam aos proprietários dos rebanhos.
Este
prato chegou a ser muito popular em Lisboa, mesmo entre algumas franjas mais
boémias da fidalguia.
Pensamos
que a referência que encontramos na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, descrevendo a Procissão de S. Jorge, por altura do Corpo de Deus de 1610, se refere aos indivíduos que vendiam chanfana em Lisboa:
" No cortejo figuraram o juiz do povo, os procuradores da cidade, vereadores, magistrados, titulares e homens e mulheres de todas as artes e ofícios, com insígnias, estandartes e emblemas ou alegorias das suas classes. Eram os hortelões do Restelo, de Alvalade, da banda Sul do Tejo, de Valverde e Alcântara, com grandes carros figurando as suas hortas com as noras e picotas, canteiros e alfombres; eram ao almocreves, os moleiros os padeiros, os da chanfana, que bailavam em roda de dois mascarados, fingindo de rei e de imperador. E depois vinham os tecelões e os peliceiros com a sua insígnia, um gato montês, a que chamam o gato do paúl; e os oleiros....."
As
descrições que nos sugerem a chanfana, tal como a conhecemos surgem-nos já na segunda metade do século XIX.
Augusto
Sarmento no seu livro “Providência” (Coimbra 1863)faz a seguinte alusão:
“ Subiu
de ponto a curiosidade, quando, chegada a
hora da ceia, veio uma criada da casa collocar sobre a mesa as
fumegantes victualhas o mais simetricamente que sabia — que não era muito — e
os mysteriosos convivas sem apparecerem. Lucena, como se não desse por sua falta, ia transplantando da terrina
para os pratos as recendentes colheradas da chanfana, que por si so
firmou a reputação culinária da tia Diabinha.”
Teófilo Braga na Alma Portuguesa (1905) escreve.:
«…
Celebremos a Cêa Cypriana
Lá na
Adega do velho Tructesindo,
Carrascão
e chanfana
A´
tripa fôrra devorando e rindo!
Não
percas ocasião hoje opurtuna,
Gil
Rodrigues, de ser o heróe da Tuna…»
Miguel Torga no livro Portugal (1950)
refere-se assim á chanfana:
"[...] do caldo de couves faz manjar, do azeite uma tibornada, da lã churra um
cobertor de papa e da carne de cabra uma chanfana de endoidecer... com
tijelada no fim [...]".
Já
quanto á designação de Lampantana só a encontramos em Tomás da Fonseca no seu
livro “A Cova dos Leões” (Lisboa, 1958)
“Há
dois anos passaram pela aldeia um professor catedrático e um notário,
acompanhados por esposas e filhos. Convidei-os a ir ao arraial. Ficaram
desolados! Devotos, apenas uma pobre mulher, ajoelhada em frente do altar, de
olhos fitos na Santa e os lábios a bulir. E, cá fora, duas dúzias de pessoas,
de boca aberta, à espera que amigos ou parentes da terra as convidassem a
saborear o chibo à lampantana, que os visitantes igualmente conheciam
das suas andanças pela serra.»
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