domingo, 19 de junho de 2016

 O chafariz de Mortágua


O presente artigo foi enviado ao jornal Defesa da Beira, que durante cinco semanas não o publicou, alegadamente por falta de espaço.
Como pensamos que o tema tem alguma actualidade, até porque a Câmara de Mortágua iniciou, entretanto, obras na zona próxima do local de possível implantação do antigo chafariz, decidimos publicá-lo sob a forma de mensagem neste blog.
 


 
De  tempos a tempos, o tema da reimplantação do antigo Chafariz de Mortágua no seu local original surge nas conversas dos Mortaguenses. Há pouco tempo na abertura ao público de uma exposição de pinturas do meu amigo José Jorge Ferreira, efectuada na Biblioteca Municipal de Mortágua, tive oportunidade de ouvir o actual presidente da Câmara, José Júlio Norte, dizer que estaria para breve a reposição do antigo chafariz  num local próximo da sua posição anterior, presumo que substituindo o actual, ao qual foi atribuída pelos mortaguenses uma designação que por pudor não repetirei.
Com o passar do tempo, o número das pessoas que se lembram dele vai diminuindo, restando alguns sentimentalistas, que se recordam com saudade da sua beleza e das vivências relacionadas com o chafariz.
E tanto assim é, que constatamos que os ainda jovens vereadores socialistas se manifestaram, em reunião ordinária da Câmara, de15 de Outubro de 2014, contra a reposição do chafariz, afirmando o Dr. João Pedro Fonseca, em declaração de voto: “ 2 - A implantação de um Chafariz que, na minha opinião, não representa uma recuperação patrimonial, porque intrinsecamente a não possui, mas apenas um reflexo saudosista, de motivações políticas.”
A Dr.ª Márcia Lopes também argumenta em declaração de voto:
“ Porque o concreto Projecto apresentado para aprovação, compromete na sua execução, o espaço onde tem vindo a ser realizada a Feira das Associações e porque, na minha opinião, o local onde se realiza não é alheio ao êxito que ano após ano e sempre em crescendo, tal evento constitui e que o permite assinalar como um evento de referência na promoção do Concelho e no reencontro das suas gentes, voto contra.”
Não querendo eu contestar o interesse, e o êxito da Feira das Associações, permito-me discordar da importância da sua localização actual para o seu sucesso. E atrevo-me mesmo a dizer que se as “ tasquinhas” estivessem na proximidade das casas dos membros do anterior executivo, ou do actual, rapidamente lhes ocorreria alguma razão para a sua mudança.
Mas voltando ao Chafariz, é preciso lembrar alguns factos relacionados com a sua construção para termos a noção aproximada do seu valor simbólico e da importância da sua construção para a Vila de Mortágua . Socorremo-nos para isso de um artigo escrito  pelo Dr. Lopes d’Oliveira, e publicado no jornal Defesa da Beira, de 11 de Setembro de 1960.
Informa-nos ele que:
“ O abastecimento de águas na vila, até 1904, fazia-se por duas fontes de mergulho, uma junto da vala , na quinta dos senhores Saldanhas, outra à borda do rio do Reguengo, perto do pontão da Carreira, e por um poço antigo, pegado ao quintal que então era de Abel Baptista, e hoje pertence ao dr. Augusto Gouveia. Havia também um poço maior, que parece ter sido aberto na ocasião da construção da estrada da Mealhada a Viseu, por 1860, o qual, por motivos que desconheço, raramente era utilizado.”
Conta-nos também que Manuel de Oliveira Júnior, natural do Freixo,  emigrou para o Brasil, e voltou de lá com um pecúlio significativo. Casou e ficou a morar na Vila, mas tendo  bens no Freixo, ia  lá frequentemente no seu cavalo . ” De verão era sempre a sua rota – passado o rio, chegando ao caminho do Barril ao Coval, subia a colina; depois descia-a, atravessava a via férrea e, ladeando o regato, alcançava Vale de Cajados: era por este que se fazia, para os lados do Freixo o trânsito para a Foz-Dão. E isto há muitos séculos: ainda há pouco os velhos de Mortágua diziam – Estrada da Foz-Dão por Vale de Cajados.”
Acontece que um dia, ao passar o valeiro das Serrinhas esporeou o cavalo  e este deu um salto  e caiu, projectando-o para um matagal. Ao levantar-se constatou que estava todo encharcado e que no local onde caíra corria um rego de água.
No dia seguinte Manuel de Oliveira Júnior procurou o dono do terreno, José Martins Pereira, que era tabelião em Mortágua e padrinho de Lopes d’Oliveira, e propôs-lhe a compra do valeirinho.
José Martins Pereira  respondeu-lhe que não venderia, mas que o colocava à disposição dele, se quisesse explorar as águas, para que a vila deixasse de “beber à corda”.
Manuel de Oliveira Júnior iniciou de  imediato a pesquiza e o encanamento da água, o que lhe custaria alguns desgostos. Foi entretanto eleito  Presidente da Câmara  e foi nessa qualidade que inaugurou o Chafariz de Mortágua em Agosto de 1904.
A importância desta realização é tal que Lopes d’Oliveira, que ouviu a história  directamente de Manuel de Oliveira Júnior,  a considera, o facto mais notável sucedido em Mortágua, desde que nela passou o Senhor Dom Afonso Henriques, orando – diz a tradição – numa capelinha com o seu séquito, até à proclamação da República.
Enfim, mesmo duvidando desta afirmação de Lopes d’Oliveira, não será fácil negar a sua importância social e sanitária, numa vila onde não havia água canalizada.
Em 1963, sem que tal fosse necessário, o chafariz foi destruído, no conjunto de modificações que o Estado Novo decidiu empreender para a construção do novo edifício da Câmara Municipal sendo substituído por um outro, deslocado do  sítio inicial, e que nem sequer é bonito, nem tão-pouco original: existe um igual, embora com um enquadramento muito mais bonito, em Lisboa.
 
Alguns anos mais tarde, quando as pessoas puderam emitir livremente a sua opinião, várias contestações foram surgindo.
A Defesa da Beira de 3 de Junho de 1977 dá-nos conta de uma delas:
“ Uma representação dos habitantes desta vila quer avistar-se na próxima sessão da Câmara, com as entidades concelhias e pedir-lhes para que seja erguido de novo, nesta vila, o chafariz que mãos criminosas deitaram abaixo no tempo da outra senhora...
É bem que as entidades camarárias actuais escutem com atenção e atendam a representação dos habitantes, que no próximo dia 23, pelas 17.30 horas estará presente no edifício da Câmara, e com boa vontade de auxiliarem nas despesas da nova colocação.
Assim esperamos a boa compreensão das nossas entidades e que resulte deferimento daquilo que solicitamos”.
No mês seguinte, um cidadão assinou com as iniciais G.N. (António Gouveia Nobre) um artigo intitulado “O chafariz”, publicado a 1 de Julho pelo jornal Defesa da Beira, no qual fala da intensa ligação afectiva que com ele mantinham os habitantes da vila, a quem matava a sede com água  de boa qualidade, e em alguns meses supria as necessidades das povoações mais próximas, o Barril e o Coval.
Recorda  ainda uma revista dos costumes levada ao palco do velho Teatro-Clube, onde assume lugar de destaque  o chafariz “onde de tudo se diz”.
Dá também uma informação importante: “As pedras que o integravam encontram-se guardadas, segundo consta, e ainda bem”.
Termina saudando a iniciativa da Comissão de Mortaguenses que solicitara a recolocação do chafariz no local onde se encontra o lago ou o fontenário, e manifesta o seu desejo de ver o chafariz a jorrar água novamente.
Na edição de 29 de julho de 1977 do mesmo semanário Defesa da Beira, é publicado um artigo assinado com as iniciais A.L. (Afonso Lobo), em que o autor se solidariza com o que foi exposto no artigo anterior e acrescenta algumas notas sentimentais de que fazemos eco:
“ A verdade, contudo, é que o chafariz da vila não se traduzia apenas nas suas duas bicas, por vezes até só uma, quando a seca apertava.
O chafariz era algo mais, de que até, talvez, nem nós dessemos conta: era um monumento, numa terra pobre de legados históricos ou artísticos, onde além dele, só se poderá apontar o Pelourinho, encerrado pela tradição num minúsculo largo, sem o realce que o seu passado, objecto de estudo do Dr. Assis e Santos, talvez impusesse.
Não é uma obra de arte o chafariz? Certamente. Mas era, pode dizer-se, um ser vivente a meio de uma vila, prestes a tornar-se centenário. Para trás dos setenta e tantos anos que agora contaria, quantos acontecimentos se representavam nele, e de todas as naturezas: políticos, românticos, artísticos…
Além de tudo mais, o chafariz, o chafariz representava um padrão de homenagem àqueles que, em 1904, há, portanto, setenta e três anos, realizaram o esforço, notabilíssimo para a época, de trazer desde muitos quilómetros, de Vale de Cajados, através de montes, vales e rios, a água puríssima que, durante muitos decénios matou a sede e serviu toda uma vila sede de concelho.”
Do que acabamos de expor e transcrever, pensamos que seria de inegável interesse reimplantar o velho chafariz num dos locais sugeridos, e nem sequer interferiria com a realização da Feira das Associações.
Há no entanto duas questões que gostaria de ver esclarecidas:
1- Que alterações se pretendem fazer, para além da implantação do chafariz, e a justificação das mesmas. Alterar só por alterar não tem qualquer interesse, e custa dinheiro que pode fazer falta noutro lado.
2- As pedras do velho chafariz existem mesmo, ou trata-se apenas de uma questão de cosmética política, na qual pretendem servir-nos gato por lebre, implantando outra coisa que não corresponde ao anunciado?
É que a demora na execução do prometido, quando, ao que consta, não existem dificuldades orçamentais, faz-nos suspeitar que as pedras originais existam.
Aqui fica o que conseguimos apurar, a nossa opinião sobre o assunto, e as dúvidas que nos causam alguma apreensão.


 

 

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