O chafariz de Mortágua
O presente artigo foi enviado ao jornal Defesa da Beira, que durante cinco semanas não o publicou, alegadamente por falta de espaço.
Como pensamos que o tema tem alguma actualidade, até porque a Câmara de Mortágua iniciou, entretanto, obras na zona próxima do local de possível implantação do antigo chafariz, decidimos publicá-lo sob a forma de mensagem neste blog.
De tempos a
tempos, o tema da reimplantação do antigo Chafariz de Mortágua no seu local
original surge nas conversas dos Mortaguenses. Há pouco tempo na abertura ao
público de uma exposição de pinturas do meu amigo José Jorge Ferreira,
efectuada na Biblioteca Municipal de Mortágua, tive oportunidade de ouvir o
actual presidente da Câmara, José Júlio Norte, dizer que estaria para breve a
reposição do antigo chafariz num local
próximo da sua posição anterior, presumo que substituindo o actual, ao qual foi
atribuída pelos mortaguenses uma designação que por pudor não repetirei.
Com o passar do tempo, o número das pessoas que se
lembram dele vai diminuindo, restando alguns sentimentalistas, que se recordam
com saudade da sua beleza e das vivências relacionadas com o chafariz.
E tanto
assim é, que constatamos que os ainda jovens vereadores socialistas se
manifestaram, em reunião ordinária da Câmara, de15 de Outubro de 2014, contra a
reposição do chafariz, afirmando o Dr. João Pedro Fonseca, em declaração de voto:
“ 2 - A implantação de um Chafariz que, na
minha opinião, não representa uma recuperação patrimonial, porque
intrinsecamente a não possui, mas apenas um reflexo saudosista, de motivações
políticas.”
A Dr.ª Márcia Lopes também argumenta em declaração
de voto:
“ Porque o
concreto Projecto apresentado para aprovação, compromete na sua execução, o
espaço onde tem vindo a ser realizada a Feira das Associações e porque, na
minha opinião, o local onde se realiza não é alheio ao êxito que ano após ano e
sempre em crescendo, tal evento constitui e que o permite assinalar como um
evento de referência na promoção do Concelho e no reencontro das suas gentes,
voto contra.”
Não querendo eu contestar o interesse, e o êxito da
Feira das Associações, permito-me discordar da importância da sua localização
actual para o seu sucesso. E atrevo-me mesmo a dizer que se as “ tasquinhas”
estivessem na proximidade das casas dos membros do anterior executivo, ou do
actual, rapidamente lhes ocorreria alguma razão para a sua mudança.
Mas voltando ao Chafariz, é preciso lembrar alguns
factos relacionados com a sua construção para termos a noção aproximada do seu
valor simbólico e da importância da sua construção para a Vila de Mortágua .
Socorremo-nos para isso de um artigo escrito
pelo Dr. Lopes d’Oliveira, e publicado no jornal Defesa da Beira, de 11 de Setembro de 1960.
Informa-nos ele que:
“ O
abastecimento de águas na vila, até 1904, fazia-se por duas fontes de mergulho,
uma junto da vala , na quinta dos senhores Saldanhas, outra à borda do rio do
Reguengo, perto do pontão da Carreira, e por um poço antigo, pegado ao quintal
que então era de Abel Baptista, e hoje pertence ao dr. Augusto Gouveia. Havia
também um poço maior, que parece ter sido aberto na ocasião da construção da
estrada da Mealhada a Viseu, por 1860, o qual, por motivos que desconheço,
raramente era utilizado.”
Conta-nos também que Manuel de Oliveira Júnior,
natural do Freixo, emigrou para o Brasil, e voltou de lá com um pecúlio significativo.
Casou e ficou a morar na Vila, mas tendo
bens no Freixo, ia lá
frequentemente no seu cavalo . ” De
verão era sempre a sua rota – passado o rio, chegando ao caminho do Barril ao
Coval, subia a colina; depois descia-a, atravessava a via férrea e, ladeando o
regato, alcançava Vale de Cajados: era por este que se fazia, para os lados do
Freixo o trânsito para a Foz-Dão. E isto há
muitos séculos: ainda há pouco os velhos de Mortágua diziam – Estrada da
Foz-Dão por Vale de Cajados.”
Acontece que um dia, ao passar o valeiro das
Serrinhas esporeou o cavalo e este deu
um salto e caiu, projectando-o para um
matagal. Ao levantar-se constatou que estava todo encharcado e que no local
onde caíra corria um rego de água.
No dia seguinte Manuel de Oliveira Júnior procurou
o dono do terreno, José Martins Pereira, que era tabelião em Mortágua e
padrinho de Lopes d’Oliveira, e propôs-lhe a compra do valeirinho.
José Martins Pereira respondeu-lhe que não venderia, mas que o
colocava à disposição dele, se quisesse explorar as águas, para que a vila deixasse de “beber à corda”.
Manuel de Oliveira Júnior iniciou de imediato a pesquiza e o encanamento da água,
o que lhe custaria alguns desgostos.
Foi entretanto eleito Presidente da Câmara e foi nessa qualidade que inaugurou o
Chafariz de Mortágua em Agosto de 1904.
A importância desta realização é tal que Lopes
d’Oliveira, que ouviu a história
directamente de Manuel de Oliveira Júnior, a considera, o facto mais notável sucedido em Mortágua,
desde que nela passou o Senhor Dom Afonso Henriques, orando – diz a tradição –
numa capelinha com o seu séquito, até à proclamação da República.
Enfim, mesmo duvidando desta afirmação de
Lopes d’Oliveira, não será fácil negar a sua importância social e
sanitária, numa vila onde não havia água canalizada.
Em 1963, sem que tal fosse necessário, o chafariz
foi destruído, no conjunto de modificações que o Estado Novo decidiu empreender
para a construção do novo edifício da Câmara Municipal sendo substituído por um
outro, deslocado do sítio inicial, e que
nem sequer é bonito, nem tão-pouco original: existe um igual, embora com um
enquadramento muito mais bonito, em Lisboa.
Alguns anos mais tarde, quando as pessoas puderam emitir
livremente a sua opinião, várias contestações foram surgindo.
A Defesa da
Beira de 3 de Junho de 1977 dá-nos conta de uma delas:
“ Uma
representação dos habitantes desta vila quer avistar-se na próxima sessão da
Câmara, com as entidades concelhias e pedir-lhes para que seja erguido de novo,
nesta vila, o chafariz que mãos criminosas deitaram abaixo no tempo da outra
senhora...
É bem que as
entidades camarárias actuais escutem com atenção e atendam a representação dos
habitantes, que no próximo dia 23, pelas 17.30 horas estará presente no
edifício da Câmara, e com boa vontade de auxiliarem nas despesas da nova
colocação.
Assim
esperamos a boa compreensão das nossas entidades e que resulte deferimento
daquilo que solicitamos”.
No mês seguinte, um cidadão assinou com as iniciais
G.N. (António Gouveia Nobre) um artigo intitulado “O chafariz”, publicado a 1
de Julho pelo jornal Defesa da Beira,
no qual fala da intensa ligação afectiva que com ele mantinham os habitantes da
vila, a quem matava a sede com água de
boa qualidade, e em alguns meses supria as necessidades das povoações mais
próximas, o Barril e o Coval.
Recorda
ainda uma revista dos costumes levada ao palco do velho Teatro-Clube,
onde assume lugar de destaque o chafariz
“onde de tudo se diz”.
Dá também uma informação importante: “As pedras que o integravam encontram-se guardadas, segundo
consta, e ainda bem”.
Termina saudando a iniciativa da Comissão de
Mortaguenses que solicitara a recolocação do chafariz no local onde se encontra o lago ou o fontenário, e manifesta o seu desejo de ver o chafariz a
jorrar água novamente.
Na edição de 29 de julho de 1977 do mesmo semanário
Defesa da Beira, é publicado um artigo
assinado com as iniciais A.L. (Afonso Lobo), em que o autor se solidariza com o
que foi exposto no artigo anterior e acrescenta algumas notas sentimentais de
que fazemos eco:
“ A verdade,
contudo, é que o chafariz da vila não se traduzia apenas nas suas duas bicas,
por vezes até só uma, quando a seca apertava.
O chafariz
era algo mais, de que até, talvez, nem nós dessemos conta: era um monumento,
numa terra pobre de legados históricos ou artísticos, onde além dele, só se
poderá apontar o Pelourinho, encerrado pela tradição num minúsculo largo, sem o
realce que o seu passado, objecto de estudo do Dr. Assis e Santos, talvez
impusesse.
Não é uma
obra de arte o chafariz? Certamente. Mas era, pode dizer-se, um ser vivente a
meio de uma vila, prestes a tornar-se centenário. Para trás dos setenta e
tantos anos que agora contaria, quantos acontecimentos se representavam nele, e
de todas as naturezas: políticos, românticos, artísticos…
…
Além de tudo
mais, o chafariz, o chafariz representava um padrão de homenagem àqueles que,
em 1904, há, portanto, setenta e três anos, realizaram o esforço, notabilíssimo
para a época, de trazer desde muitos quilómetros, de Vale de Cajados, através
de montes, vales e rios, a água puríssima que, durante muitos decénios matou a
sede e serviu toda uma vila sede de concelho.”
Do que acabamos de expor e transcrever, pensamos
que seria de inegável interesse reimplantar o velho chafariz num dos locais
sugeridos, e nem sequer interferiria com a realização da Feira das Associações.
Há no entanto duas questões que gostaria de ver
esclarecidas:
1- Que alterações se pretendem fazer, para além da
implantação do chafariz, e a justificação das mesmas. Alterar só por alterar
não tem qualquer interesse, e custa dinheiro que pode fazer falta noutro lado.
2- As pedras do velho chafariz existem mesmo, ou
trata-se apenas de uma questão de cosmética política, na qual pretendem servir-nos
gato por lebre, implantando outra coisa que não corresponde ao anunciado?
É que a demora na execução do prometido, quando, ao
que consta, não existem dificuldades orçamentais, faz-nos suspeitar que as
pedras originais existam.
Aqui fica o que conseguimos apurar, a nossa opinião
sobre o assunto, e as dúvidas que nos causam alguma apreensão.
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