domingo, 21 de maio de 2017


Abusos do registo civil religioso


O registo civil até ao seculo XIX foi da iniciativa da igreja católica. Os párocos registavam os batismos, os casamentos e os funerais dos católicos.
Em 1832, o Estado reconheceu a vantagem de tornar extensiva a todos os indivíduos a prática da Igreja relativamente aos católicos, com regras uniformes, que assegurassem a sua regularidade e fiscalização.
Seguiram-se outros diplomas elaborados com objectivos  de secularização do registo, tarefa que confiavam ao administrador do concelho em 1835, 1836 e 1842. Não foi fácil conseguir o objectivo.
O Decreto de 28 de Novembro de 1878 confiou aos administradores de concelho o registo dos actos respeitantes aos não católicos, continuando os párocos a fazer o registo da maioria da população.

Só a partir do Código de 1911 (Decreto de 18 de Fevereiro de 1911)  se estabeleceu o princípio da obrigatoriedade da inscrição no registo civil dos factos a ele sujeitos, abrangendo todos os indivíduos independentemente da sua confissão religiosa; a realização do registo passou a ser feita por funcionários civis privativos e fixou-se a precedência obrigatória do registo civil sobre as cerimónias religiosas.
Desde então muitas alterações têm vindo a ser feitas, mas a base estava definitivamente estabelecida.
Naturalmente que durante a fase de controlo da igreja católica muitas arbitrariedades foram cometidas pelos sacerdotes, sobre os crentes deles dependentes.
A carta aberta que transcrevo a seguir é exemplo disso e foi escrita por José Lopes d’Oliveira ao Bispo de Coimbra e publicada no jornal Resistência, de 20 de Agosto de 1899, a propósito de sua irmã Albertina, minha tia-avó.



 
AO  BISPO-CONDE DE COIMBRA

Ex.mo Rev.mo Sr.

Não quereria eu dirigir-me hoje a v. ex.ª
Nem mesmo o deveria fazer, por inútil para mim e sensabor para si.
Mas, ex.ma sa., há mais que cómodo e relaxado egoísmo na sinceridade da defesa feita dia a dia, por mim, a favor dos desgraçados e infelizes que nunca tiveram justiça cá na terra, nem terão, á falta de dinheiro para comedelas católicas, lugar no céu.
Por isso, sr. Bispo-Conde, não ficará assim entre nós dois e alguns dos seus padres a questão que vãmente eu nunca quis tornar em questão pessoal, nem entre mim e eles, nem entre mim e v. ex.ª; será também ensinamento e exemplo para outros.
O facto da inscrição recente no Registo Civil duma criança, filha de aldeões de Mortágua, Beira, gente rude, enfeudada a senhores, que habita a agreste região d'entre o Caramulo e a Estrela, parece-me mais um passo avançado para a libertação da odiosíssima servidão, há séculos imposta pela Igreja católica ; servidão de quando em quando notabilizada, ou tragicamente como nesses trezentos anos de fogueiras inquisitoriais, ou comicamente como na época que em
Portugal antecedeu as canções burlescas da Santa Religião, e do Rei Chegou; esse acto de revolta e independência, secundado por os homens, dos de mais influência e consideração neste ponto do país,—não tardará a reproduzir-se constantemente.
Por isso, rev.mo sr., as palavras aqui escritas, nesta carta são também para outros as lerem, porque se a v. ex.a elas se dirigem pela responsabilidade que assumiu pelos factos, esses também serão interessados nelas, pela revelação de injustiças defraudantes; mormente o será para a maioria do operariado de Coimbra, ao lado de quem eu estive e estou em luta, e que eu tive sempre em meu apoio, até mesmo v. ex.a o reconhecer, cedendo há tempos completamente ás minhas exigências justas.
Pois bem, sr. Bispo Conde, os factos que motivam esta longa carta são, ainda e sempre, os mesmos que lhe relatei em 31 de julho do corrente ano.
Albertina Lopes da Trindade, minha irmã, corridos os banhos e passados ainda depois dois meses, casou-se catolicamente, em novembro de 1897, com Lúcio Fernandes d'0liveira, na igreja da freguesia de Mortágua, sendo celebrante o pároco sr. Urbano Gonçalves de Abreu Cardoso.
Passado tempo, o mesmo padre chamou-os, avisando-os de que o casamento estava anulado.
Acudiu ao chamamento o Lúcio a quem o sr. Urbano fez esperar mais de duas horas á porta, estando em sua casa talvez a fazer jogos de paciência.
Porém, como o padre-prior não aparecesse, foi-se ele embora.
Talvez ao sr. Urbano lhe recordasse aquele facto de Henrique IV, excomungado pelo Papa, ter esperado vãmente a absolvição, quatro dias com os pés no gelo, fora das muralhas do Castelo de Canossa ....
Tentou então outro expediente mais ardiloso, chamando a mãe de Albertina, a quem disse das penas infernais a que estavam
condenados, ao mesmo tempo que, como bom pastor, lhe indicava a salvação numa Bula «que lhe importaria em 15 $000 réis.»
Mas inutilmente voltou ele de novo á carga, falando com Lúcio Fernandes a quem repetiu a mesma ladainha, pedindo-lhe, para a Bula 18$000 réis.
É bom notar que a ladainha não aumentara, aumentando porém o preço da salvação!
E há poucos dias, no dia 27 do findo mês de julho, Lúcio Fernandes foi falar com o sr. padre-prior para que lhe indicasse dia para o batismo dum filho seu e de sua mulher Albertina Lopes da Trindade, nascido no dia 13 do mesmo mês.
Sem hesitação, sem observação, nem advertência alguma, é bom que se note, ex.mo sr., o sr. pároco anuiu, marcando-lhe dia, e lavrando com antecedência nos livros o assento, já com os nomes dos padrinhos, sem porém dizer a Lúcio do seu conteúdo.
Três dias depois fez esse batismo na mesma igreja onde se realizou o matrimónio, o mesmíssimo padre.
E ao fim, na sacristia, apresentou-me ele o assento, feito dias antes, em que declarava ter batizado um «filho ilegítimo» dos dois cônjuges, por casamento anulado por impedimentos posteriores!!
Agora, ex.mo e rev.mo sr., definamos responsabilidades, delimitemos campos.
Estudemos a moral desses factos em que ressalta o grotesco, mas em que não avulta menos o ódio e a maldade ingénita.
Porque os factos são assim, tal qual aí ficam, de cuja veracidade eu desafio a contestação, publicamente feita, e pelos mesmos meios que eu deles faço a afirmação, e que são todos perfeitamente exequíveis.
V. ex.ª mesmo me poderá ir ajudando neste raciocínio que, assim auxiliado, mais evidentes tornará as coisas . ..

1.° Quando o sr. prior de Mortágua teve conhecimento de impedimentos, posteriormente ao casamento efetuado, tinha ou não obrigação de imediatamente o participar a v. ex.a para que fossem dadas providencias ? Tinha.
O próprio rev.mo arcipreste e prior do Sobral, que o sr. Bispo-Conde encarregou de sanar, a seu modo, esta questão, assim mo disse, condenando o modo de proceder do seu colega.
E v. ex.ª , decerto, não tem dúvidas sobre isso.
Cumpriu o sr. prior de Mortágua esse dever ? Não.

2.º Deveria ele exigir dinheiro para a Bula, como tendente a evitar um erro já cometido, e que se o é, o será da única responsabilidade da Igreja, variando até nos preços, e tendo-me ele próprio dito, no dia 30 de julho último, e mais tarde o sr. arcipreste confirmado, ser ela grátis? Não.

3.° Poderia ele fazer o registo do batismo dias antes de ele realizado, falseando e cometendo portanto um crime ? Não.

4.º Poderia, ou teria em si atribuições o rev.º pároco, para, por si próprio, em uma casa, beberricando a sua chazada, pegar dos livros dos assentos matrimoniais lançar, a nota de anulado a um dos
casamentos aí inscritos, que foi feito religiosa, católica e legalmente por ele próprio, como se, com umas penadas, pudesse arranjar á sua vontade aqueles trabalhinhos, lá por casa, de moto-próprio,
fazendo e desfazendo ? Não, ex.mo sr.

 
(Continua)

 

 

 (Continuação)

 

AO BISPO-CONDE DE COIMBRA

(CONCLUSÃO)
O grotesco aqui adensa-se mais, e torna-se um crime, e crime previsto e punido nas leis do nosso país, e nas de todas as nações civilizadas.
O Código Civil Português, na Parte Livro 2.0, Título 2.0, Capítulo 1.°,
Secção 4.ª, é bem evidente e preciso; e não tendo sido revogado nem alterado nesta parte é portanto a única lei, sobre o assumpto vigente, em Portugal.
O artigo 1:087.° diz que: a jurisdição do Juízo Eclesiástico,— (que segundo o artigo 1 :086.° é o único tribunal que pôde por sentença produzir a anulação)—limita-se todavia, ao conhecimento a julgamento da nulidade; e todas as diligências ou actos de indagação, que devam praticar-se, serão deprecadas á competente autoridade judicial civil», e o art. 1 :088.° dispõe que á autoridade eclesiástica só competirá transmitir ao pároco, perante quem tiver sido celebrado o casamento, uma certidão de sentença para ser averbada á margem do respectivo registo.»
Não parece isto a v. ex.ª claro como água límpida, rev.mo sr. ?
E formou-se o processo até hoje ?
Inquiriram-se testemunhas ?
Foram os cônjuges chamados a prestar declarações ? Não, sr. Bispo-Conde; o sr. prior engrolou tudo isto.
Como é, pois, que impunemente, e sem que v. ex.ª providencie e castigue, se cometem, no seu bispado, tais coisas, únicas no género, em território português, pelo seu cunho de originalidade ?
Para mim e para muita gente, como leigos, poderia ainda existir a dúvida que as leis canónicas não estivessem de acordo com a lei civil, apesar de que isso seria um princípio de rebelião contra o veto régio de Sua Majestade, a quem certamente v. ex.ª rev.ma não quisera ofender nem contestar direitos.
Mas não. O sábio jurisconsulto e publicista Dias Ferreira diz no Comentário ao Código Civil, e exatamente nas nótulas ao artigo 1:087.° que a lei canónica está de acordo com a lei civil.
E temos ainda mais, rev.mo sr., que o sr. prior de Mortágua, Urbano Gonçalves d'Abreu Cardoso não feriu somente a autoridade, pelo que parece, superior de v. ex.ª e do Juízo Eclesiástico; foi muito alem disso, sr. Bispo-Conde,—violando as leis do reino, assumiu, com manifesto agravamento e pretensa exautoração para eles, funções e direitos exclusivos do poder e das autoridades civis.
É isto assim nú e crú, verdadeiro e evidente.
Impõe-no a legislação.
Apesar disso, apesar da extrema gravidade deste crime, v.ªex.ª rev.ma parece aceitar solidariamente com o sr. prior de Mortágua, a responsabilidade dele.
Porque o sr. Bispo-Conde consente que exista ainda intacto, tendo-se negado até hoje a mandá-lo substituir, um registo de batismo ilegal e criminoso em face de leis portuguesas, promulgadas, defendidas e sustentadas por o regímen que v. ex.ª preconiza e apoia, sendo um dos seus esteios; registo em que um padre chama ilegítimo ao filho dum casamento realizado por ele próprio e que até então, e até agora não foi anulado.
E a implícita acusação a uma mulher casada de barregã prostituída a seu marido, além de ser burlesco, é imoral e infame ; e constituindo uma calúnia e um insulto, é também um caso criminoso previsto no Código Penal do nosso país.
E a solidariedade de v.ª ex.a rev.ma nestes actos, a mim mesmo, que não sigo os dogmas nem as prescrições católicas, me admira e me repugna, como sendo indigna do caracter de v. ex.ª.
lludiriam-no? Não creio que ao sr. Bispo-Conde alguém pudesse iludir.
Demais não poderia v. ex.ª ir além do indulto, pela sua parte, aos factos praticados, caso o sr. padre Urbano invocasse a seu favor a ignorância absoluta, classificando-se de ignorantão e irresponsável, o que é pouco digno para um homem e talvez menos para um sacerdote, ainda e sempre, os crimes restariam tais quais eram, ou mais graves pela recusa terminante, injusta e decisivamente feita de remediar o mal cometido.
E v.ª ex ª, solidário com o prior de Mortágua, sr. Bispo-Conde, para mim e para toda a gente, mesmo para os que não lhe convém manifestá-lo, ficará no mesmo campo e plano que elle, responsável de factos que a lei em Portugal condena e pune.
Para mim, rev.mo  sr . , não deveria haver, nem outro campo nem outro plano para v. ex.ª, nesta questão, porque o que historio garanto-o sob minha palavra d'honra; para os outros a reabilitação far-se-á talvez pelos desmentidos ou pela justiça tardiamente feita.
E caso a Igreja não se julgue bem, e gloriada com tais factos, todos isso esperam, e eu o espero, Ex.mo Rev.mo Sr. Bispo-Conde.

Lopes d'Oliveira

 

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