João Lopes de Morais
Iremos começar a divulgação de alguns artigos sobre o Dr. João Lopes de Morais, em tempos publicados no jornal Sul da Beira, da autoria de prestigiados autores, conhecidos cidadãos de Mortágua. Por agora, faremos apenas a sua transcrição, deixando para depois algumas achegas , e alguns comentários nossos. Comecemos então. Uma pequena chamada de atenção: o Dr. Bráulio Afonso que surge logo no 1º cabeçalho era tio do Dr. Bráulio Afonso, médico e Ex-presidente da Câmara, que todos nós conhecemos.
Dr.
João Lopes Morais
Fez
na quarta –feira passada, 29 de Outubro, setenta anos que faleceu o Dr. João
Lopes de Morais.
Esse
grande liberal do século XIX, médico dos mais ilustres do seu tempo, lente,
conselheiro, deputado, figura máxima do concelho de Mortágua, é desconhecido da
maioria dos seus conterrâneos de hoje.
Tem
o seu nome a rua principal da nossa vila – vê-se nos arquivos, pois nem uma
placa há a recordá-lo – e, entretanto, poucos o sabem, ignorando muitos desses
que a sua vida foi um grande exemplo de virtudes cívicas.
As
nossas páginas, dedicadas à causa da Liberdade, cumprem um dever, homenageando
o Dr. João Lopes de Morais, que por ela batalhou toda sua existência, com rara
firmeza e tenacidade.
Jaz
em campa modesta, despida de vaidades que nunca teve em vida, no cemitério da
nossa terra – que foi a sua. Perante ela nos curvamos hoje, desejando bem que
esta homenagem simples, se siga oportunamente uma manifestação grandiosa, que
consagre definitivamente entre a mocidade de hoje e do futuro, o grande
mortaguense que foi o Dr. João Lopes de Morais.
Homem
de ciência e de espírito
O
cidadão que hoje se comemora não era apenas um homem de ciência, mas também um
espírito Liberal de Grande envergadura. E é sob este aspecto que eu desejo
recordá-lo na certeza de que possam aproveitar, à gente moça, alguns dos seus
actos e palavras.
É
conhecida , creio eu, de todos os mortaguenses, a resposta que deu àqueles que
pretendiam arrancá-lo aos cárceres de Almeida, onde o enclausuraram por ser
constitucional:
-
Doutor: diga que não é liberal e nós o
arrancaremos daí – teriam dito esses amigos.
-
Mas, como posso eu dizer semelhante
coisa, se até as ferraduras do meu cavalo me desmentiriam?
Andava,
certo dia, pelas ruas da vila , um devoto como há muitos, pedindo para as
almas, com um crucifixo na mão. Chegando à porta do dr. Lopes de Morais, este
surgiu e logo o homem de virtude lhe apresentou o crucifixo, para que o
beijasse.
Este
assim fez, acrescentando:
-
Espere aí.
Chegou
acima, onde tinha também um crucifixo, velho, destingido e carunchoso em todo o
caso, um crucifixo, e descendo com ele, apresentou-o ao zeloso devoto, dizendo:
- Não é tão
bonito como o seu, mas tem a mesma virtude. Beije também… E agora estamos
pagos. Adeuzinho!
A
mais típica, porém, das suas anedotas – que esta não é uma anedota, mas um
facto real – passou-se, certa manhã, na povoação de Aveleira, onde meu tio, P.e
Joaquim Tomás da Fonseca, o tinha levado, para ver um doente. Finda a visita
médica, meu tio, que ali era capelão, levou-o a visitar a capela de Santo Amaro
– Grande cirurgião de século 6º - que ali tinha a mais completa documentação do
seu poder cirúrgico – os ex-votos oferecidos pela clientela.
Devo
dizer que foi principalmente durante os 40 anos em que meu tio ali pregou e
disse missa, que os ex-votos aumentaram, aponto de formarem filas e filas, com
chouriças num fumeiro, pendentes das paredes, no interior do templo. É que esse
meu tio pregador, quando subia a um púlpito, a sua voz e o gesto eram de natureza
tal que Deus o ouvia no céu e o Diabo no inferno. Assim como não fazer
milagres?
Contava
meu pai que uma vez, numa capela do Caramulo, chamou tanta alma para Deus, que
o Diabo lhe desconjuntou o púlpito!
Tal
como a Santo António de Lisboa… Pregava assim, esse meu velho tio, cuja fama
perdura em nossos dias. Por isso não admira que os santos obrassem, a seu
pedido, tão grandes e numerosos milagres, como esses, que eu conheci ainda, na
tal capela de Aveleira.
Quando,
pois, o dr. Lopes de Morais ali entrou e soube que todos aqueles braços,
cabeças, pernas, etc., foram postas, endireitadas e curadas por indústria do
santo, à voz do seu amigo P.e Joaquim das Laceiras, sentou-se num
dos bancos da capela e teve esta fala, que meu pai me repetia muitas vezes, com
graciosos comentários:
-
Com que então, cá o figurão ( e
apontava o Santo Amaro) também exerce
clínica? E com que habilidade e largueza! É, decerto, o cirurgião mais feliz de
todo o mundo, porque faz coisas que eu nunca vi fazer, nem tenho ouvido que se
façam.
E
mudando de tom:
-P.e Joaquim: perdoo-te por esta,
mas não tornes a fazer-me outra partida assim. Pois tu tens aqui um mestre
destes e vais buscar-me, lá tão longe, a mim, que nunca fiz a milésima parte do
que ele faz? Não, padre Joaquim: não precisas de mim. Porque é muito mais fácil
curar um vizinho duma pneumonia, mesmo dupla, do que restituir uma cabeça ou
uma perna, como vocês cá fazem, tu e o teu santo.
Esta
passagem da sua vida, absolutamente verídica, vale por uma biografia e por isso
acabo aqui, fazendo votos por que Mortágua tenha assim outros filhos, que a
nobilitem e engrandeçam – mas de cabeça erguida e não em curvaturas de espinha,
como é uso de muitos.
Tomás
da Fonseca.
Dr. João Lopes de Morais
Meus amigos
Dr. Pais Mamede,
Dr. Braulio
Afonso e Alberto Lobo
Importuna
visita das febres africanas me obrigou à cama nos últimos dias: sou forçado ,
pois, pelo prazo impreterível que marcaram, a mandar-lhes simples notas, muito
ao correr da pena. Extractarão o que for aproveitável.
Meu
padrinho, José Martins Pereira, tabelião de notas em Mortágua durante mais de
meio século, que morreu em 1904, depois dos 80, e que me criou e educou tão
caridosamente, foi a primeira pessoa a quem ouvi falar de João Lopes de Morais.
No
seu conceito este era um homem grande – generoso coração, vasto saber,
inteligência rara, rijo carácter, de indomável firmeza. E tão afamado em todo o
reino que, nas lutas liberais, de 1828 a 34, sempre que era preso, logo algumas
das suas relevantes proezas de médico, em prol de algum dos magnates
miguelistas, a contas com a terrível parca, o restituía à liberdade, - porque a
gratidão valesse ainda seu tanto no coração das feras.
Meu
padrinho nasceu em Março de 1824; tinha pouco mais de dez anos quando o duque
da Terceira, na tarde de 6 de Maio de 1834, de passagem para Coimbra, vindo do
Porto por Lamego e Viseu, arrancou Mortágua, definitivamente, ao terror dos
batalhões de voluntários realistas – uma espécie de Legionários actuais; - na infância, do miguelismo não sofrera
afronta nem dano. Mas pertencia a uma família muito ferida (como as dos
Cascões, dos Gouveias, dos Sousas, dos Matos e Frias, dos Reis e dos Neivas)
pelas perseguições crudelíssimas; - a prisão, o exílio e a morte tinham provado
a fé liberal dos do seu sangue.
Por
isso cedo aprendi que o sagrado amor da justiça é capaz de instilar o ódio num
coração de santo, porque meu padrinho era duma bondade que nunca vi igualada, e
todavia o preito ardente que rendia à memória de Lopes de Morais alicerçava-se
no desprezo sem limites, no rancor profundo que votava aos algozes da
liberdade, a D. Miguel e aos seus janízaros.
Este
homem, duma moral tão elevada, tão verdadeiramente evangélica, indulgente,
compassivo, tolerantíssimo, - ao recordar os liberais a monte, sempre na ansiante
inquietação das batidas ao lobo a que os expunha, de contínuo, o zêlo do
banditismo autoritário, as buscas incessantes, os vexames infligidos às
mulheres, as insolências, as provocações mais ultrajantes, as prisões em massa;
e, por fim, não só o arcabuzamento e a forca, mas as hecatombes nas prisões, a
visão da chacina a machado em Estremoz a que sucumbiu o padre José Inácio
Martins Pereira, irmão do seu pai, fixava-lhe na pupila a flama do inapagável
ódio:
“Se
nos quiserem matar, que se há de fazer? É necessário matá-los!”
Era
uma alucinação!
Nos
seus últimos anos, já eu era um homem, quando o via chegar ao estribilho,
despertava-o:
-Não
diga tal. O senhor iria para a morte como um cordeirinho. Era lá capaz de matar
alguém!
E
o velhinho olhava para mim muito sério, tomava-me pelos pulsos, e. sacudindo a
cabeça embranquecida:
-
Cautela! Tem cautela! Sabes que feras são… E tu que clamas sempre! Defende-te!
Defende-te!
Quási
trinta anos são volvidos depois que te foste deste mundo: tenho atravessado a
vida como uma selva obscura; ouvi de perto o bramir das feras, senti o hálito
do chacal, rasgaram-me as carnes garras de tigre… Mas, meu santo velhinho,
ainda não me mataram!
Alongo-me
e insisto, para frisar quanto esta era miguelina, abriu fundo nas almas o
desespero da revolta, e gerou a ânsia da Justiça, tocando as raias da Vindicta,
como um incontestável direito.
Ainda
hoje o frémito dessas horríveis lutas entra nos nossos corações…
Todo
um século não bastou a apagar o sulco de sangue e lágrimas, que separou no
concelho de Mortágua os partidários da tirania e os da liberdade, como duas
raças inimigas.
João
Lopes de Morais nasceu na Gândara, a 6 de janeiro de 1783.
Seu
pai António Lopes, era um pequeno lavrador; toda a família era de gente
humilde.
Doutorou-se
em medicina a 29 de Julho de 1817, entrando pouco depois no magistério.
Em
1820 manifestou-se entusiasticamente pelo regime constitucional. Não mudado de
ideal político como quem muda de casaca, teve , por isso de sofrer, até 1834,
os flagícios do absolutismo. Foi demitido de professor da Faculdade de Medicina
pelo Governo de D. Miguel. Várias vezes foi levado aos cárceres. Por duas vezes
tentaram assassina-lo na sua casa de Mortágua; e só à sua audácia e valentia
deveu a vida.
Reintegrado
em 1834, foi eleito em 1837 Deputado às Constituintes, após a Revolução de
Setembro.
No
“Diário das Côrtes” encontram-se alguns discursos seus. E apresentou a 7 de
março um projecto de lei sobre os
princípios e bases de organização do Governo ou dos princípios e bases
orgânicas do Governo Constitucional. É
um trabalho notável.
Desde
1836 até à sua morte não deixou de seguir, no constitucionalismo monárquico, a
política mais avançada.
Mas
com que bom senso! Este radical, que a flama do ideal conduz sempre, vê-se que
não avança sem cuidar do chão que pisa.
Não
resisto à tentação de transcrever alguns parágrafos duma carta, em que
responde a um convite do centro
eleitoral progressista, de Lisboa, datada de Mortágua, de 1856. Bastarão
a revelar o vigor com que a sua velhice sustentava a vida do pensamento!
« Creio num
melhor futuro, porque o presente já é melhor que o passado; e mais ainda porque
as leis necessárias do progresso social hão-de, no tempo, fazer da liberdade a
ordem pública. Mas, nem por isso, creio na política da época. Cada partido
pretende regenerar o país segundo os seus desejos e interesses e opiniões
governamentais, tudo em contradição entre si: os reacionários sonham
regeneração na volta ao passado ou no estacionamento do presente; e os
progressistas ardentes, coma mira no poder, precipitam o movimento social, e
atrasam o verdadeiro progresso, cuidando que o adiantam. Nem os
reacionários advertem que o mundo não para nem anda para trás, nem os
progressistas ou revolucionários se lembram de que, quem corre muito, cansa, e
anda pouco. Os doutrinários ou ordeiros, escolhendo dos dois o que lhes faz conta,
sofismam e corrompem tudo, embaraçando assim o curso do progresso. Todos
esquecem que na ordem física, como na moral, nada se regenera, mas tudo se
transforma, e que a sociedade se governa por sinas suas transformações.
Toda a
situação política é sempre uma evolução social para outra, porque o mundo não
para nas suas transformações: porém os homens do poder tendem, pela natureza
deste, a conservar cada situação e dirigi-la no sentido da sua dominação. E,
como sem povo não pode haver poder, proclamam que tudo fazem para o povo, e que
nada por ele deve ser feito.
Eu não
creio, porém, que a liberdade possa tornar-se ordem, enquanto o povo não for
instruído e educado, de maneira que tudo seja para ele e poe ele, sem exceptuar
o seu Governo. Longe virá
ainda isso, mas há de ser mais obra das sociedades que dos Governos.
Enquanto na
constituição política da Europa, e nas dos seus Estados, persistir o mecanismo
político das ordens, na jerarquia das nações e nas das classes dos súbditos de
cada Estado, as quais foram fundadas pelo despotismo da fé ou fraude e da
espada, mantidos pela obediência cega e obrigada – muito terá ainda que sofrer
e que fazer a sociedade moderna, para transformar a política dos governos de
mecânica do poder em ciência e arte social ».
Vale
a pena ler páginas destas!...
Era
João Lopes de Morais um homem de mais que mediana estatura, de forte arcabouço,
de cabeça poderosa e semblante que, em repouso, parecia severo, em que
transparecia doce benignidade e simpatia, logo que o animava o pensamento –
falava a alguém ou alguma ocupação o entretinha. Os seus olhos eram brilhantes,
a sua voz cheia e vibrante, o seu andar compassado e firme.
«A sua figura era expressiva e de grande
ascendente moral», afirma Teófilo Braga. Uma
natural bonomia temperava o caudal da sua estuante ironia. Mas,
por vezes, o sarcasmo rompia vivo, irreprimível, sem lhe dar tempo a amenizar o
castigat ridendo mores o instinto
batalhante do seu espírito.
Por
vezes substituía a palavra pelo gesto – para trazer, mais subtilmente, um
comento hilariante às coisas da vida.
Às
coisas da vida – e às coisas da morte!...
João
Lopes de Morais passava por um bom herege. Não praticava, ria dos sacramentos,
mofava do Santo Padre, e até a Deus alvejava o ariete da sua dúvida sistemática.
Neste particular desmandava-se tanto, que mesmo com pobres cavadores chalaceava
sobre a confissão, as bulas e o dogma da trindade!
Contudo
não havia ainda a Associação do Registo Civil …
Contou-me
meu padrinho que, quando ele viu que era chegada a sua hora, chamara o
tabelião, e sentindo que este o encontrava demudado e receava se precipitasse o
seu fim, sossegou-o, dizendo:
-
Temos tempo de fazer o testamento. Isto não acaba já…
E
esteve ditando o testamento, quando, a certa altura, começou a sorrir, porque
entrava a determinar o seu católico enterro.
Queria
que acompanhassem o féretro uns homens com umas longas e largas vestimentas e
com capuzes, mas uns capuzes de certo feitio, que esteve imaginando!
Pediu
uma tesoura e um jornal, soergueu-se, e começou a talhar. Não
pôde levar a tarefa a cabo, exausto; mas, deixando-se cair na cama, observou:
-Bem, você já percebeu, e como fica por cá,
há de fazer-me o favor de dar ordem para que se cumpra, porque tenho empenho
nisso, dos capuzes.
E
continuou a ditar o testamento, no qual a disposição se encontra, bem
explícita. Estava
em seu perfeito juízo… E, não podendo evitar que o conselheiro e lente fosse
acompanhado de um padre à sua última jazida ( em meados do século 19), o livre
pensador João Lopes de Morais juntou-lhe alguns fúnebres palhaços!
Morreu
à hora que previra, havendo-se despedido de sua família e de seus amigos sem um
desfalecimento. Não se dirá mesmo que morreu com coragem; antes assistia à sua
própria morte como a um fenómeno natural, que o não interessava mais do que
qualquer outro.
Quem
o não conhecesse diria, iludido pela sua serenidade de filósofo, que tinha a
alma bem fria. E
não houve nessa Beira alma mais ardente, acção mais generosa, mais vasto
pensamento!
O
que tinha era um temperamento heróico e uma educação estóica.
A
sua admirável vida findou a 29 de Outubro de 1860. Ia nos 78 anos.
A
tradição do seu nome é ainda vulgar entre a gente de Mortágua.
Na
minha meninice existiam ainda muitas pessoas que o tinham conhecido e tratado
de perto.
João
Lopes de Morais, lente de prima da Universidade, médico do Paço, conselheiro,
deputado às Constituintes, era tão altivo para os grandes, como humilde para os
humildes. Por
isso ele exerceu entre o povo um verdadeiro apostolado.
Político,
no verdadeiro sentido da palavra, ele foi de uma coerência absoluta com os
princípios que proclamou: por isso não foi nunca um cacique. E em 1837 aceitou a eleição, mas não a solicitou – “ninguém pede para ser procurador de
outrem”. Porque
era orgulhoso? Mas vaidoso é que nunca foi…
Não
só o seu brio pessoal, mas a sua dignidade cívica não lhe permitiria que
mendigasse votos.
A
sua carta de 1856, que citámos, demonstra que viveu e morreu democrata.
Nunca
as grandezas a que ascendeu pelos seus talentos lhe deram volta à cabeça. Nem
bajulou os poderosos nem lisonjeou as turbas.
“O verdadeiro liberal deve ser franco e
sincero, tolerante e leal”- diz ele na Confissão
Política, - e ainda que fosse um rude plebeu, estas palavras poderiam
servir de timbre a um brazão de fidalguia
intelectual.
Tendo
acompanhado a revolta de 1844( como depois acompanhou a da Patuleia, em
1846-47) – para despertar o setembrismo conimbricense, caído em desânimo pelo
fracasso, Lopes de Morais funda, com os Doutores António Luís de Sousa Henriques
Sêco, António de Freitas, Francisco José Duarte Nazaré e Agostinho de Morais
Pinto de Almeida, lentes de várias faculdades, e com o estudante António
Augusto Teixeira de Vasconcelos ( futuro grande jornalista), o semanário Oposição Nacional, e restabelece a loja
maçónica Audácia (fundada em 1833)
sob a designação de Filadélfia, e
subordinada ao Grande Oriente Lusitano.
Querem
colecionar-se alguns dos seus escritos políticos e sociais? E talvez ainda se
encontrasse alguma da sua correspondência.
Na
Biblioteca da Universidade vi, há trinta anos, um manuscrito seu sobre
medicina, um receituário, talvez de uso na cadeira de Patologia Interna que
regia.
O
seu prestígio, como professor, parece ter sido grande.
Teófilo
Braga diz que João Lopes de Morais era como “clínico, incomparável”, e
que os seus colegas o consideravam como “
maior médico do reino”, “que mais
sucessos contava, e que, pelo seu tino prático, era aclamado de norte a sul”.
Chamavam-no
de todas as províncias. Contava-me António Ferreira, pai de meu compadre Manuel
Ferreira, que ainda novo, o acompanhara (sucedendo já a seu pai), como criado de cavalo, nas suas longas
jornadas. E mil ditos e anedotas alegravam as caminhadas, acordando João Lopes
das suas taciturnidades de meditabundo para desordenados acessos de humorismo,
rebatida sempre, de galhofeiros epigramas, a sua teimosa bronquite de fumador
impenitente.
*
Foi
Martins e Abreu quem fixou, como primacial figura histórica do concelho de
Mortágua, o dr. João Lopes de Morais. E desde 1891 rara será a obra sua em que
se lhe não refira.
Em
1905 uma representação popular levou a Câmara a dar o seu nome à rua onde viveu
(infelizmente nem resta uma fotografia da sua casa!)
Uma
consagração cívica deveria promover a mocidade liberal, trazendo ao espírito de
todos os que nasceram nessa terra o alto exemplo da grande vida do maior
democrata mortaguense.
A
homenagem que no Sul da Beira se promove agora bem poderá ser o primeiro passo
para esse solene preito à memória gloriosa de João Lopes de Morais.
Creiam-me
sempre devotado patrício e amigo.
Parede,(linha
de Cascais), 21-10-1930
Lopes de Oliveira
Notas várias da vida do
dr. João Lopes de Morais
Foi Martins e Abreu quem primeiro
se ocupou de dr. João Lopes de Morais. No seu livro “O meu voto nas próximas
eleições”, publicado em 1906, o grande lutador da emancipação do povo
dedicava-lhe um extenso capítulo, de que transcrevemos alguns períodos:
« Era da Gândara, de família modesta, diz ele. Doutor em medicina e a primeira e mais cultivada capacidade que por
aqui havia então e houve até hoje. Em 1828 moveu-se-lhe uma devassa em que se
apurou o se liberalismo, sendo preso e conduzido às masmorras de Almeida,
abarrotadas de criminosos do mesmo delito.
As ordens que baixavam do Governo Miguelista eram decisivas e
davam largas aos maus para a opressão. Bastava cumpri-las para se cometerem
atrocidades.
Em Almeida morreu o chefe das Matos, apesar dos desvelos de João
Lopes de Morais, que foi uma providência para os presos que atulhavam aquelas
masmorras. Médico insigne, deveu-lhe logo o governador da praça importantes
serviços. Deu-lhe um lugar à sua mesa e de motu-próprio, a cidade por
homenagem.
Contudo, depois de 4 anos de prisão, e apesar de negar-se a
justificar o seu liberalismo, foi solto em março de 1833 – não porque não fosse
“criminoso”, mas por ter expiado a culpa com o tempo de prisão.
João Lopes de Morais, um sábio e homem superior, ficou desarmado
com a vitória.
…..o liberalismo é a tolerância, o perdão, a generosidade, sob os
quais se abrigaram os que em 6 anos foram seus algozes»
*
O admirável espírito do dr. João
Lopes de Morais, aparece-nos também claramente no livro de Martins e Abreu.
Conta ele:
«Estando sua irmã a emprestar a Ana Castelhana, da Póvoa, uns enfeites
de andor, viu ele umas setas e perguntou o que era.
Explicaram-lhe que era para espetar em S. Sebastião, ao que ele
tornou a sério: - Mas olhem cá: se o diabo do santo se pôe a berrar, que lhe
hão de vocês fazer?»
*
« Na patuleia, seu filho foi preso com Cascão e outros, por
tentarem tirar um preso político a uma escolta. Escreveu ao Costa Cabral uma
carta aberta célebre, em que ia pouco mais ou menos:
Tenho hostilizado o seu Governo, porque, como liberal, odeio os
tiranos; e não creio que ao nosso país convenha um Governo de arroxo. Mas meu
filho não nasceu para estas lutas, já expiou a sua falta, se a houve, e tem cá
muito que fazer. Mande-mo.
O Ministro obedeceu.»
*
Ainda da boca de Martins e Abreu
ouvimos hà dias, na casa Cimeira, um
outro episódio da sua vida de médico:
« Meu pai além de ser irmão de
Maria Inácia, criada do doutor e 30, era enteado de António Santos, pedreiro
habitual da casa, durante anos, e tinha relações com o lente.
Contava-me ele que um trabalhador
daqui, sentindo-se apoquentado com um sofrimento qualquer, o consultou,
trazendo da botica uma garrafa que lhe receitara. Já bom, encontrou mais tarde o
dr. João Lopes:
- Como passa Vossa Senhoria?
- Adeus José. Saraste?
- Desta estou escapo.
- Pois aí tens. Não querias tomar remédios da botica, mas, às
vezes, curam.
- Ó sr. Doutor! A garrafa é milagrosa; coloquei-a, lacrada como ma
deu o boticário, em cima de um cortiço ao pé da cama e, só de olhar para ela,
sarei…
- Vai para o diabo!... rematou o dr. João Lopes entre gargalhadas.»
***
Nos seus “Apontamentos para a História Contemporânea”, Joaquim Martins de
Carvalho ocupa-se também do sr. dr. João Lopes de Morais.
Vemos ali que, por carta régia de
5 de Dezembro de 1823, foi criada em Coimbra a «Junta expurgatória», « com o
fim único de representara el-rei, depois de maduro exame, quais os lentes,
opositores e empregados da Universidade que deviam ser excluídos dos lugares
dela, pelas suas doutrinas…», etc.
Esta junta celebrou 26 sessões e
foi a que expulsou o Dr. João Lopes.
Vejam-se as suas conclusões a respeito
do nosso conterrâneo:
« João Lopes de Morais, opositor em medicina. Reconhecendo a pluralidade
da Junta que este opositor é um dos mais distintos da sua faculdade, não pôde
resistir à fama das notícias, de que ele é tido por ímpio no distrito de Mortágua,
onde ele costuma residir; e por isso fez tirar informações por alguns membros
da junta, e via que todas coincidiam com aquelas primeiras notícias, e
acrescentavam factos demonstrativos das suas opiniões livres em assuntos
religiosos.»
*****
Colaboração
Aos nossos queridos amigos Tomás
da Fonseca e dr. Lopes de Oliveira, os nossos agradecimentos pela preciosa
colaboração que nos enviaram para as páginas de hoje.
Os nossos agradecimentos vão
também para Martins e Abreu, pela maneira gentil de sempre como nos recebeu há
dias, e os esclarecimentos que nos prestou sobre o dr. João Lopes de Morais.
Não esquecemos também a
amabilidade dos ex.mos drs.
Alexandre Cancela de Abreu e Aníbal Dias, facultando-nos a única fotografia
existente do Dr. João Lopes de Morais, e permitindo-nos, assim, a sua
publicação nesta página.
A todos muito obrigado.
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