sábado, 6 de maio de 2017


 João Lopes de Morais
 
Iremos começar a divulgação de alguns artigos sobre o Dr. João Lopes de Morais, em tempos publicados no jornal Sul da Beira, da autoria de prestigiados autores, conhecidos cidadãos de Mortágua. Por agora, faremos apenas a sua transcrição, deixando para depois algumas achegas , e alguns comentários nossos. Comecemos então. Uma pequena chamada de atenção: o Dr. Bráulio Afonso que surge logo no 1º cabeçalho era tio do Dr. Bráulio Afonso, médico e Ex-presidente da Câmara, que todos nós conhecemos. 
 
Dr. João Lopes Morais
Fez na quarta –feira passada, 29 de Outubro, setenta anos que faleceu o Dr. João Lopes de Morais.
Esse grande liberal do século XIX, médico dos mais ilustres do seu tempo, lente, conselheiro, deputado, figura máxima do concelho de Mortágua, é desconhecido da maioria dos seus conterrâneos de hoje.
Tem o seu nome a rua principal da nossa vila – vê-se nos arquivos, pois nem uma placa há a recordá-lo – e, entretanto, poucos o sabem, ignorando muitos desses que a sua vida foi um grande exemplo de virtudes cívicas.
As nossas páginas, dedicadas à causa da Liberdade, cumprem um dever, homenageando o Dr. João Lopes de Morais, que por ela batalhou toda sua existência, com rara firmeza e tenacidade.
 
Jaz em campa modesta, despida de vaidades que nunca teve em vida, no cemitério da nossa terra – que foi a sua. Perante ela nos curvamos hoje, desejando bem que esta homenagem simples, se siga oportunamente uma manifestação grandiosa, que consagre definitivamente entre a mocidade de hoje e do futuro, o grande mortaguense que foi o Dr. João Lopes de Morais.
Homem de ciência e de espírito
O cidadão que hoje se comemora não era apenas um homem de ciência, mas também um espírito Liberal de Grande envergadura. E é sob este aspecto que eu desejo recordá-lo na certeza de que possam aproveitar, à gente moça, alguns dos seus actos e palavras.
É conhecida , creio eu, de todos os mortaguenses, a resposta que deu àqueles que pretendiam arrancá-lo aos cárceres de Almeida, onde o enclausuraram por ser constitucional:
- Doutor: diga que não é liberal e nós o arrancaremos daí – teriam dito esses amigos.
- Mas, como posso eu dizer semelhante coisa, se até as ferraduras do meu cavalo me desmentiriam?
Andava, certo dia, pelas ruas da vila , um devoto como há muitos, pedindo para as almas, com um crucifixo na mão. Chegando à porta do dr. Lopes de Morais, este surgiu e logo o homem de virtude lhe apresentou o crucifixo, para que o beijasse.
Este assim fez, acrescentando:
- Espere aí.
Chegou acima, onde tinha também um crucifixo, velho, destingido e carunchoso em todo o caso, um crucifixo, e descendo com ele, apresentou-o ao zeloso devoto, dizendo:
- Não é tão bonito como o seu, mas tem a mesma virtude. Beije também… E agora estamos pagos. Adeuzinho!
A mais típica, porém, das suas anedotas – que esta não é uma anedota, mas um facto real – passou-se, certa manhã, na povoação de Aveleira, onde meu tio, P.e Joaquim Tomás da Fonseca, o tinha levado, para ver um doente. Finda a visita médica, meu tio, que ali era capelão, levou-o a visitar a capela de Santo Amaro – Grande cirurgião de século 6º - que ali tinha a mais completa documentação do seu poder cirúrgico – os ex-votos oferecidos pela clientela.
Devo dizer que foi principalmente durante os 40 anos em que meu tio ali pregou e disse missa, que os ex-votos aumentaram, aponto de formarem filas e filas, com chouriças num fumeiro, pendentes das paredes, no interior do templo. É que esse meu tio pregador, quando subia a um púlpito, a sua voz e o gesto eram de natureza tal que Deus o ouvia no céu e o Diabo no inferno. Assim como não fazer milagres?
Contava meu pai que uma vez, numa capela do Caramulo, chamou tanta alma para Deus, que o Diabo lhe desconjuntou o púlpito!
Tal como a Santo António de Lisboa… Pregava assim, esse meu velho tio, cuja fama perdura em nossos dias. Por isso não admira que os santos obrassem, a seu pedido, tão grandes e numerosos milagres, como esses, que eu conheci ainda, na tal capela de Aveleira.
Quando, pois, o dr. Lopes de Morais ali entrou e soube que todos aqueles braços, cabeças, pernas, etc., foram postas, endireitadas e curadas por indústria do santo, à voz do seu amigo P.e Joaquim das Laceiras, sentou-se num dos bancos da capela e teve esta fala, que meu pai me repetia muitas vezes, com graciosos comentários:
- Com que então, cá o figurão ( e apontava o Santo Amaro) também exerce clínica? E com que habilidade e largueza! É, decerto, o cirurgião mais feliz de todo o mundo, porque faz coisas que eu nunca vi fazer, nem tenho ouvido que se façam.
E mudando de tom:
-P.e Joaquim: perdoo-te por esta, mas não tornes a fazer-me outra partida assim. Pois tu tens aqui um mestre destes e vais buscar-me, lá tão longe, a mim, que nunca fiz a milésima parte do que ele faz? Não, padre Joaquim: não precisas de mim. Porque é muito mais fácil curar um vizinho duma pneumonia, mesmo dupla, do que restituir uma cabeça ou uma perna, como vocês cá fazem, tu e o teu santo.
Esta passagem da sua vida, absolutamente verídica, vale por uma biografia e por isso acabo aqui, fazendo votos por que Mortágua tenha assim outros filhos, que a nobilitem e engrandeçam – mas de cabeça erguida e não em curvaturas de espinha, como é uso de muitos.   
Tomás da Fonseca.
 
 
Dr. João Lopes de Morais
Meus amigos Dr. Pais Mamede,
Dr. Braulio Afonso e Alberto Lobo
Importuna visita das febres africanas me obrigou à cama nos últimos dias: sou forçado , pois, pelo prazo impreterível que marcaram, a mandar-lhes simples notas, muito ao correr da pena. Extractarão o que for aproveitável.
Meu padrinho, José Martins Pereira, tabelião de notas em Mortágua durante mais de meio século, que morreu em 1904, depois dos 80, e que me criou e educou tão caridosamente, foi a primeira pessoa a quem ouvi falar de João Lopes de Morais.
No seu conceito este era um homem grande – generoso coração, vasto saber, inteligência rara, rijo carácter, de indomável firmeza. E tão afamado em todo o reino que, nas lutas liberais, de 1828 a 34, sempre que era preso, logo algumas das suas relevantes proezas de médico, em prol de algum dos magnates miguelistas, a contas com a terrível parca, o restituía à liberdade, - porque a gratidão valesse ainda seu tanto no coração das feras.
Meu padrinho nasceu em Março de 1824; tinha pouco mais de dez anos quando o duque da Terceira, na tarde de 6 de Maio de 1834, de passagem para Coimbra, vindo do Porto por Lamego e Viseu, arrancou Mortágua, definitivamente, ao terror dos batalhões de voluntários realistas – uma espécie de Legionários actuais; - na infância, do miguelismo não sofrera afronta nem dano. Mas pertencia a uma família muito ferida (como as dos Cascões, dos Gouveias, dos Sousas, dos Matos e Frias, dos Reis e dos Neivas) pelas perseguições crudelíssimas; - a prisão, o exílio e a morte tinham provado a fé liberal dos do seu sangue.
Por isso cedo aprendi que o sagrado amor da justiça é capaz de instilar o ódio num coração de santo, porque meu padrinho era duma bondade que nunca vi igualada, e todavia o preito ardente que rendia à memória de Lopes de Morais alicerçava-se no desprezo sem limites, no rancor profundo que votava aos algozes da liberdade, a D. Miguel e aos seus janízaros.
Este homem, duma moral tão elevada, tão verdadeiramente evangélica, indulgente, compassivo, tolerantíssimo, - ao recordar os liberais a monte, sempre na ansiante inquietação das batidas ao lobo a que os expunha, de contínuo, o zêlo do banditismo autoritário, as buscas incessantes, os vexames infligidos às mulheres, as insolências, as provocações mais ultrajantes, as prisões em massa; e, por fim, não só o arcabuzamento e a forca, mas as hecatombes nas prisões, a visão da chacina a machado em Estremoz a que sucumbiu o padre José Inácio Martins Pereira, irmão do seu pai, fixava-lhe na pupila a flama do inapagável ódio:
“Se nos quiserem matar, que se há de fazer? É necessário matá-los!”
Era uma alucinação!
Nos seus últimos anos, já eu era um homem, quando o via chegar ao estribilho, despertava-o:
-Não diga tal. O senhor iria para a morte como um cordeirinho. Era lá capaz de matar alguém!
E o velhinho olhava para mim muito sério, tomava-me pelos pulsos, e. sacudindo a cabeça embranquecida:
- Cautela! Tem cautela! Sabes que feras são… E tu que clamas sempre! Defende-te! Defende-te!
Quási trinta anos são volvidos depois que te foste deste mundo: tenho atravessado a vida como uma selva obscura; ouvi de perto o bramir das feras, senti o hálito do chacal, rasgaram-me as carnes garras de tigre… Mas, meu santo velhinho, ainda não me mataram!
Alongo-me e insisto, para frisar quanto esta era miguelina, abriu fundo nas almas o desespero da revolta, e gerou a ânsia da Justiça, tocando as raias da Vindicta, como um incontestável direito.
Ainda hoje o frémito dessas horríveis lutas entra nos nossos corações…
Todo um século não bastou a apagar o sulco de sangue e lágrimas, que separou no concelho de Mortágua os partidários da tirania e os da liberdade, como duas raças inimigas.
João Lopes de Morais nasceu na Gândara, a 6 de janeiro de 1783.
Seu pai António Lopes, era um pequeno lavrador; toda a família era de gente humilde.
Doutorou-se em medicina a 29 de Julho de 1817, entrando pouco depois no magistério.
Em 1820 manifestou-se entusiasticamente pelo regime constitucional. Não mudado de ideal político como quem muda de casaca, teve , por isso de sofrer, até 1834, os flagícios do absolutismo. Foi demitido de professor da Faculdade de Medicina pelo Governo de D. Miguel. Várias vezes foi levado aos cárceres. Por duas vezes tentaram assassina-lo na sua casa de Mortágua; e só à sua audácia e valentia deveu a vida.
Reintegrado em 1834, foi eleito em 1837 Deputado às Constituintes, após a Revolução de Setembro.
No “Diário das Côrtes” encontram-se alguns discursos seus. E apresentou a 7 de março um projecto de lei sobre os princípios e bases de organização do Governo ou dos princípios e bases orgânicas do Governo Constitucional. É um trabalho notável.
Desde 1836 até à sua morte não deixou de seguir, no constitucionalismo monárquico, a política mais avançada.
Mas com que bom senso! Este radical, que a flama do ideal conduz sempre, vê-se que não avança sem cuidar do chão que pisa.
Não resisto à tentação de transcrever alguns parágrafos duma carta, em que responde  a um convite do centro eleitoral progressista, de Lisboa, datada de Mortágua, de 1856. Bastarão a revelar o vigor com que a sua velhice sustentava a vida do pensamento!
« Creio num melhor futuro, porque o presente já é melhor que o passado; e mais ainda porque as leis necessárias do progresso social hão-de, no tempo, fazer da liberdade a ordem pública. Mas, nem por isso, creio na política da época. Cada partido pretende regenerar o país segundo os seus desejos e interesses e opiniões governamentais, tudo em contradição entre si: os reacionários sonham regeneração na volta ao passado ou no estacionamento do presente; e os progressistas ardentes, coma mira no poder, precipitam o movimento social, e atrasam o verdadeiro progresso, cuidando que o adiantam. Nem os reacionários advertem que o mundo não para nem anda para trás, nem os progressistas ou revolucionários se lembram de que, quem corre muito, cansa, e anda pouco. Os doutrinários ou ordeiros, escolhendo dos dois o que lhes faz conta, sofismam e corrompem tudo, embaraçando assim o curso do progresso. Todos esquecem que na ordem física, como na moral, nada se regenera, mas tudo se transforma, e que a sociedade se governa por sinas suas transformações.
Toda a situação política é sempre uma evolução social para outra, porque o mundo não para nas suas transformações: porém os homens do poder tendem, pela natureza deste, a conservar cada situação e dirigi-la no sentido da sua dominação. E, como sem povo não pode haver poder, proclamam que tudo fazem para o povo, e que nada por ele deve ser feito.
Eu não creio, porém, que a liberdade possa tornar-se ordem, enquanto o povo não for instruído e educado, de maneira que tudo seja para ele e poe ele, sem exceptuar o seu Governo. Longe virá ainda isso, mas há de ser mais obra das sociedades que dos Governos.
Enquanto na constituição política da Europa, e nas dos seus Estados, persistir o mecanismo político das ordens, na jerarquia das nações e nas das classes dos súbditos de cada Estado, as quais foram fundadas pelo despotismo da fé ou fraude e da espada, mantidos pela obediência cega e obrigada – muito terá ainda que sofrer e que fazer a sociedade moderna, para transformar a política dos governos de mecânica do poder em ciência e arte social ».
Vale a pena ler páginas destas!...
Era João Lopes de Morais um homem de mais que mediana estatura, de forte arcabouço, de cabeça poderosa e semblante que, em repouso, parecia severo, em que transparecia doce benignidade e simpatia, logo que o animava o pensamento – falava a alguém ou alguma ocupação o entretinha. Os seus olhos eram brilhantes, a sua voz cheia e vibrante, o seu andar compassado e firme.
«A sua figura era expressiva e de grande ascendente moral», afirma Teófilo Braga. Uma natural bonomia temperava o caudal da sua estuante ironia. Mas, por vezes, o sarcasmo rompia vivo, irreprimível, sem lhe dar tempo a amenizar o castigat ridendo mores o instinto batalhante do seu espírito.
Por vezes substituía a palavra pelo gesto – para trazer, mais subtilmente, um comento hilariante às coisas da vida.
Às coisas da vida – e às coisas da morte!...
João Lopes de Morais passava por um bom herege. Não praticava, ria dos sacramentos, mofava do Santo Padre, e até a Deus alvejava o ariete da sua dúvida sistemática. Neste particular desmandava-se tanto, que mesmo com pobres cavadores chalaceava sobre a confissão, as bulas e o dogma da trindade!
Contudo não havia ainda a Associação do Registo Civil …
Contou-me meu padrinho que, quando ele viu que era chegada a sua hora, chamara o tabelião, e sentindo que este o encontrava demudado e receava se precipitasse o seu fim, sossegou-o, dizendo:
- Temos tempo de fazer o testamento. Isto não acaba já…
E esteve ditando o testamento, quando, a certa altura, começou a sorrir, porque entrava a determinar o seu católico enterro.
Queria que acompanhassem o féretro uns homens com umas longas e largas vestimentas e com capuzes, mas uns capuzes de certo feitio, que esteve imaginando!
Pediu uma tesoura e um jornal, soergueu-se, e começou a talhar. Não pôde levar a tarefa a cabo, exausto; mas, deixando-se cair na cama, observou:
-Bem, você já percebeu, e como fica por cá, há de fazer-me o favor de dar ordem para que se cumpra, porque tenho empenho nisso, dos capuzes.
E continuou a ditar o testamento, no qual a disposição se encontra, bem explícita. Estava em seu perfeito juízo… E, não podendo evitar que o conselheiro e lente fosse acompanhado de um padre à sua última jazida ( em meados do século 19), o livre pensador João Lopes de Morais juntou-lhe alguns fúnebres palhaços!
Morreu à hora que previra, havendo-se despedido de sua família e de seus amigos sem um desfalecimento. Não se dirá mesmo que morreu com coragem; antes assistia à sua própria morte como a um fenómeno natural, que o não interessava mais do que qualquer outro.
Quem o não conhecesse diria, iludido pela sua serenidade de filósofo, que tinha a alma bem fria. E não houve nessa Beira alma mais ardente, acção mais generosa, mais vasto pensamento!
O que tinha era um temperamento heróico e uma educação estóica.
A sua admirável vida findou a 29 de Outubro de 1860. Ia nos 78 anos.
A tradição do seu nome é ainda vulgar entre a gente de Mortágua.
Na minha meninice existiam ainda muitas pessoas que o tinham conhecido e tratado de perto.
João Lopes de Morais, lente de prima da Universidade, médico do Paço, conselheiro, deputado às Constituintes, era tão altivo para os grandes, como humilde para os humildes. Por isso ele exerceu entre o povo um verdadeiro apostolado.
Político, no verdadeiro sentido da palavra, ele foi de uma coerência absoluta com os princípios que proclamou: por isso não foi nunca um cacique. E em 1837 aceitou a eleição, mas não a solicitou – “ninguém pede para ser procurador de outrem”.  Porque era orgulhoso? Mas vaidoso é que nunca foi…
Não só o seu brio pessoal, mas a sua dignidade cívica não lhe permitiria que mendigasse votos.
A sua carta de 1856, que citámos, demonstra que viveu e morreu democrata.
Nunca as grandezas a que ascendeu pelos seus talentos lhe deram volta à cabeça. Nem bajulou os poderosos nem lisonjeou as turbas.
O verdadeiro liberal deve ser franco e sincero, tolerante e leal”- diz ele na Confissão Política, - e ainda que fosse um rude plebeu, estas palavras poderiam servir de timbre a um brazão de fidalguia intelectual.
Tendo acompanhado a revolta de 1844( como depois acompanhou a da Patuleia, em 1846-47) – para despertar o setembrismo conimbricense, caído em desânimo pelo fracasso, Lopes de Morais funda, com os Doutores António Luís de Sousa Henriques Sêco, António de Freitas, Francisco José Duarte Nazaré e Agostinho de Morais Pinto de Almeida, lentes de várias faculdades, e com o estudante António Augusto Teixeira de Vasconcelos ( futuro grande jornalista), o semanário Oposição Nacional, e restabelece a loja maçónica Audácia (fundada em 1833) sob a designação de Filadélfia, e subordinada ao Grande Oriente Lusitano.
Querem colecionar-se alguns dos seus escritos políticos e sociais? E talvez ainda se encontrasse alguma da sua correspondência.
Na Biblioteca da Universidade vi, há trinta anos, um manuscrito seu sobre medicina, um receituário, talvez de uso na cadeira de Patologia Interna que regia.
O seu prestígio, como professor, parece ter sido grande.
Teófilo Braga diz que João Lopes de Morais era como “clínico, incomparável”, e que os seus colegas o consideravam como “ maior médico do reino”, “que mais sucessos contava, e que, pelo seu tino prático, era aclamado de norte a sul”.
Chamavam-no de todas as províncias. Contava-me António Ferreira, pai de meu compadre Manuel Ferreira, que ainda novo, o acompanhara (sucedendo já a seu pai), como criado de cavalo, nas suas longas jornadas. E mil ditos e anedotas alegravam as caminhadas, acordando João Lopes das suas taciturnidades de meditabundo para desordenados acessos de humorismo, rebatida sempre, de galhofeiros epigramas, a sua teimosa bronquite de fumador impenitente.
*
Foi Martins e Abreu quem fixou, como primacial figura histórica do concelho de Mortágua, o dr. João Lopes de Morais. E desde 1891 rara será a obra sua em que se lhe não refira.
Em 1905 uma representação popular levou a Câmara a dar o seu nome à rua onde viveu (infelizmente nem resta uma fotografia da sua casa!)
Uma consagração cívica deveria promover a mocidade liberal, trazendo ao espírito de todos os que nasceram nessa terra o alto exemplo da grande vida do maior democrata mortaguense.
A homenagem que no Sul da Beira se promove agora bem poderá ser o primeiro passo para esse solene preito à memória gloriosa de João Lopes de Morais.
Creiam-me sempre devotado patrício e amigo.
Parede,(linha de Cascais), 21-10-1930
Lopes de Oliveira

 
Notas várias da vida do
dr. João Lopes de Morais
Foi Martins e Abreu quem primeiro se ocupou de dr. João Lopes de Morais. No seu livro “O meu voto nas próximas eleições”, publicado em 1906, o grande lutador da emancipação do povo dedicava-lhe um extenso capítulo, de que transcrevemos alguns períodos:
« Era da Gândara, de família modesta, diz ele. Doutor em medicina e a primeira e mais cultivada capacidade que por aqui havia então e houve até hoje. Em 1828 moveu-se-lhe uma devassa em que se apurou o se liberalismo, sendo preso e conduzido às masmorras de Almeida, abarrotadas de criminosos do mesmo delito.
As ordens que baixavam do Governo Miguelista eram decisivas e davam largas aos maus para a opressão. Bastava cumpri-las para se cometerem atrocidades.
Em Almeida morreu o chefe das Matos, apesar dos desvelos de João Lopes de Morais, que foi uma providência para os presos que atulhavam aquelas masmorras. Médico insigne, deveu-lhe logo o governador da praça importantes serviços. Deu-lhe um lugar à sua mesa e de motu-próprio, a cidade por homenagem.
Contudo, depois de 4 anos de prisão, e apesar de negar-se a justificar o seu liberalismo, foi solto em março de 1833 – não porque não fosse “criminoso”, mas por ter expiado a culpa com o tempo de prisão.
João Lopes de Morais, um sábio e homem superior, ficou desarmado com a vitória.
…..o liberalismo é a tolerância, o perdão, a generosidade, sob os quais se abrigaram os que em 6 anos foram seus algozes»
*
O admirável espírito do dr. João Lopes de Morais, aparece-nos também claramente no livro de Martins e Abreu.
Conta ele:
«Estando sua irmã a emprestar a Ana Castelhana, da Póvoa, uns enfeites de andor, viu ele umas setas e perguntou o que era.
Explicaram-lhe que era para espetar em S. Sebastião, ao que ele tornou a sério: - Mas olhem cá: se o diabo do santo se pôe a berrar, que lhe hão de vocês fazer?»
*
« Na patuleia, seu filho foi preso com Cascão e outros, por tentarem tirar um preso político a uma escolta. Escreveu ao Costa Cabral uma carta aberta célebre, em que ia pouco mais ou menos:
Tenho hostilizado o seu Governo, porque, como liberal, odeio os tiranos; e não creio que ao nosso país convenha um Governo de arroxo. Mas meu filho não nasceu para estas lutas, já expiou a sua falta, se a houve, e tem cá muito que fazer. Mande-mo.
O Ministro obedeceu.»
*
Ainda da boca de Martins e Abreu ouvimos  hà dias, na casa Cimeira, um outro episódio da sua vida de médico:
« Meu pai além de ser irmão de Maria Inácia, criada do doutor e 30, era enteado de António Santos, pedreiro habitual da casa, durante anos, e tinha relações com o lente.
Contava-me ele que um trabalhador daqui, sentindo-se apoquentado com um sofrimento qualquer, o consultou, trazendo da botica uma garrafa que lhe receitara. Já bom, encontrou mais tarde o dr. João Lopes:
- Como passa Vossa Senhoria?
- Adeus José. Saraste?
- Desta estou escapo.
- Pois aí tens. Não querias tomar remédios da botica, mas, às vezes, curam.
- Ó sr. Doutor! A garrafa é milagrosa; coloquei-a, lacrada como ma deu o boticário, em cima de um cortiço ao pé da cama e, só de olhar para ela, sarei…
- Vai para o diabo!... rematou o dr. João Lopes entre gargalhadas.»
***
Nos seus “Apontamentos para a História Contemporânea”, Joaquim Martins de Carvalho ocupa-se também do sr. dr. João Lopes de Morais.
Vemos ali que, por carta régia de 5 de Dezembro de 1823, foi criada em Coimbra a «Junta expurgatória», « com o fim único de representara el-rei, depois de maduro exame, quais os lentes, opositores e empregados da Universidade que deviam ser excluídos dos lugares dela, pelas suas doutrinas…», etc.
Esta junta celebrou 26 sessões e foi a que expulsou o Dr. João Lopes.
Vejam-se as suas conclusões a respeito do nosso conterrâneo:
 
« João Lopes de Morais, opositor em medicina. Reconhecendo a pluralidade da Junta que este opositor é um dos mais distintos da sua faculdade, não pôde resistir à fama das notícias, de que ele é tido por ímpio no distrito de Mortágua, onde ele costuma residir; e por isso fez tirar informações por alguns membros da junta, e via que todas coincidiam com aquelas primeiras notícias, e acrescentavam factos demonstrativos das suas opiniões livres em assuntos religiosos
*****
Colaboração
Aos nossos queridos amigos Tomás da Fonseca e dr. Lopes de Oliveira, os nossos agradecimentos pela preciosa colaboração que nos enviaram para as páginas de hoje.
Os nossos agradecimentos vão também para Martins e Abreu, pela maneira gentil de sempre como nos recebeu há dias, e os esclarecimentos que nos prestou sobre o dr. João Lopes de Morais.
Não esquecemos também a amabilidade dos ex.mos  drs. Alexandre Cancela de Abreu e Aníbal Dias, facultando-nos a única fotografia existente do Dr. João Lopes de Morais, e permitindo-nos, assim, a sua publicação nesta página.
A todos muito obrigado. 

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